quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O mistério do deputado absentista.





 

 

Salazar escreveu sobre si próprio, no prefácio do livro de entrevistas concedidas a António Ferro em 1932: “Este homem que é governo, não queria ser governo. Foi deputado: assistiu a uma única sessão e nunca mais voltou”. A primeira afirmação é duvidosa: Salazar receava a política e a governação, mas quem o conheceu bem, nos anos 20, sabia da sua grande ambição de mandar. A segunda afirmação é certa, mas o facto em causa, ocorrido em 1921, não dependeu da sua decisão nem da sua vontade. Salazar não explicou a razão por que “nunca mais voltou” ao parlamento republicano. O seu panegirista inglês F. C. C. Egerton, no livro Salazar Rebuilder of Portugal (1943), encomendado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, arriscou como justificação para tal acto que os “procedimentos do parlamento” eram, para Salazar, “demasiado fúteis”. Teria sido mais exacto dizer que, para ele, o parlamento era, em si mesmo, uma futilidade, já que o seu desejo profundo era chefiar o governo de um rei absoluto ‒ como um dia confessou ao Cardeal Cerejeira. Mais tarde foi fabricada uma lenda para sustentar a imagem de um Salazar horrorizado pelas baixezas e violências que teria presenciado na Câmara dos Deputados, como observou o insuspeito biógrafo Franco Nogueira, acrescentando: “O próprio Oliveira Salazar, durante toda a sua carreira política, aprovou e mesmo encorajou esta versão. Mas ela não corresponde à verdade histórica.”[1]   

Durante a 1.ª República, Salazar foi três vezes candidato a deputado do Centro Católico. A primeira em 1919, por Viana do Castelo, saindo derrotado. Depois da sua eleição, em 1921, e de uma única comparência no parlamento dessa breve legislatura, não se recandidatou nas eleições de 1922. Foi pela terceira vez candidato do partido católico em 1925, por Arganil, sendo novamente derrotado, para seu provável alívio. No ano seguinte, com o triunfo do 28 de Maio, aceitou com bastante relutância ser ministro das Finanças no frágil governo de Mendes Cabeçadas, que durou uns dias. Rejeitou o convite de Gomes da Costa para a mesma pasta no segundo governo da Ditadura Militar. Voltaria, muito pressionado e receoso, a aceitar a pasta das Finanças em Abril de 1928. Não queria prejudicar a sua carreira de catedrático coimbrão e receava que as coisas lhe corressem mal, segundo confessou. Acabou por ficar, perdendo aquele “ar de lhe ser indiferente estar ou ir” e ganhando definitivamente aquele ar de “estar”, até 1968.

O Centro Católico elegeu em 10 de Julho de 1921 dois deputados (José Maria Braga da Cruz, por Braga e António de Oliveira Salazar, por Guimarães). Um terceiro deputado católico, António Lino Neto, por Portalegre, não teve o seu mandato validado. As eleições tinham sido ganhas pelo Partido Liberal, rival do Partido Democrático. Salazar, que até à última hora ansiou por não ser eleito, apenas compareceu no dia de abertura, 25 de Julho, na sessão em que foram eleitas as comissões de verificação de poderes, não tendo voltado ao parlamento até à dissolução da Câmara de Deputados. Ele e vários outros deputados absentistas nunca justificaram as faltas. Não obstante, em Agosto, o ausente Salazar foi eleito com o máximo de votos para três comissões parlamentares (Orçamento, Estatística, Instrução Superior) e nomeado pelo presidente da Câmara para uma quarta comissão (Contas Públicas). Braga da Cruz foi mais assíduo de início e também ele foi eleito para três comissões. Foi ele quem interveio em nome do Centro Católico para saudar a eleição do presidente da mesa, dizendo que o seu partido não estava ali para fazer política, deixando de comparecer na Câmara em meados de Agosto. Durante esse mês foram discutidas várias propostas de lei e foram apresentados pelo presidente do ministério e ministro das Finanças, Barros Queirós, o programa de governo e o orçamento rectificado para 1921-1922. Entretanto, o governo não conseguiu obter um empréstimo externo de 50 milhões de dólares que tinha sido anunciado, o que o desacreditou irremediavelmente. Muitos deputados faltavam ao parlamento e várias sessões tiveram de ser encerradas por falta de quórum. Um novo ministério, chefiado pelo líder liberal António Granjo, tomou posse a 30 de Agosto.

Era este o cenário, um governo claudicante e um parlamento de maioria liberal desertado por numerosos deputados, incluindo os dois católicos, quando em 4 de Setembro o arcebispo de Évora, D. Manuel Mendes da Conceição Santos, a terminar as férias nas termas da Quinta da Torre, em Entre-os-Rios, tomou a caneta para escrever um cartão endereçado ao Doutor A. D’Oliveira Salazar, m.mo Lente de Direito, Santa Comba Dão.
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Diz assim o cartão, que é inédito:


Torre – Entre os Rios – 4-9-921

Meu Caro Doutor

Quase com o pé no estribo, venho importuná-lo ainda. Peço que não deixe de ir ao parlamento: faz lá falta uma voz católica na câmara dos deputados, e a ausência dos nossos é mal apreciada.

Será um sacrifício para o meu Amigo; mas Deus lho pagará.

Creia-me sempre

                            Seu muito Amigo

                            + Manuel, Arcebispo de Évora

 


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D. Manuel da Conceição Santos era então uma das figuras mais influentes da Igreja em Portugal. Fora nomeado bispo de Portalegre em 1915 e, após ser recebido em Roma por Bento XV, foi feito arcebispo de Évora em 1920. De convicções monárquicas e irredutível opositor da Lei de Separação, esteve muito envolvido na génese do Centro Católico, lidando pessoalmente com os seus militantes mais destacados, entre eles Salazar, Cerejeira e Lino Neto. Durante a Grande Guerra, defendeu perante o governo que capelães dessem assistência ao Corpo Expedicionário Português.[2] Obteve esse triunfo para a Igreja, mas que, de certo modo, também a associava à República. Em 1927 convidará o célebre padre Mateo, conselheiro secreto do papa que se encontrava em Portugal, a visitá-lo em Évora, aonde acorrerá também, para o conhecer, o padre Cerejeira, vindo de Coimbra. [3] Mateo deslocar-se-ia depois a Coimbra, onde esteve semanas hospedado na casa dos Grilos com Salazar e Cerejeira. O conselheiro do papa veio a ter influência talvez decisiva na nomeação deste como arcebispo de Mitilene em 1928, seguida logo em 1929 da sua nomeação como patriarca de Lisboa.



D. Manuel Mendes da Conceição Santos, arcebispo de Évora



No cartão enviado a Salazar a 4 de Setembro de 1921, o arcebispo de Évora pedia, pois, ao deputado que ocupasse o seu lugar na Câmara dos Deputados, porque a ausência dos deputados católicos era mal apreciada (principalmente pelos governantes e deputados liberais, como parece óbvio). Insistia que o deputado fosse lá, apesar do sacrifício que para ele isso significaria, mas Deus lhe pagaria. Salazar, porém, não satisfez o pedido de Conceição Santos e demorou mais de duas semanas a responder-lhe. Sobre o envelope do arcebispo, o destinatário anotou ter respondido a 22 (ou 24?) de Setembro. Quando o fez, já os trabalhos da Câmara tinham sido suspensos (17 de Setembro), não voltando a ser retomados. O governo de António Granjo estava a ser alvo de grande contestação. Após a revolução do 19 de Outubro, no decurso da qual António Granjo foi assassinado, a Câmara de Deputados acabaria por ser dissolvida (6 de Novembro). Novas eleições seriam realizadas em 1922.

Que fez Salazar entre a primeira sessão parlamentar, ocorrida a 25 de Julho, e a data de suspensão da Câmara, a 17 de Setembro? Sabemo-lo pela biografia de Franco Nogueira com algum pormenor.[4] No final da primeira sessão, em que apenas foram eleitas as comissões de verificação de poderes destinadas a validar os mandatos, Salazar despediu-se do seu colega Braga da Cruz, dizendo-lhe: “Ature-os por cá, que eu vou para férias. Em Outubro talvez fale”. Regressou de imediato a Coimbra, tendo gasto 85$80 na sua estadia em Lisboa. Não renunciou ao mandato, portanto, e até fazia tenções de falar em Outubro. A partir de então, Salazar gozou, se o termo se aplica, umas longas férias, em que esteve quase sempre deprimido e várias vezes adoentado. Primeiro em Coimbra, por onde se atardou, ocupando-se de pequenos afazeres, como os assuntos da Misericórdia ou a Festa da Flor. Queria dedicar-se nesse verão ao seu trabalho académico, mas não se sentiu com cabeça para isso. Foi então para a sua casa no Vimieiro, junto a Santa Comba Dão. Era de perfeito desânimo o seu estado de espírito, como ressalta das cartas que então escreveu à amiga Glória Castanheira. Em Agosto, um colega de Coimbra, José Alberto dos Reis, convidou-o para um passeio de automóvel de cinco dias pelo Alto Minho. A companhia era agradável, mas Salazar não tinha entusiasmo por nada, sentia-se “morto”, além de ter gasto um conto e duzentos com o passeio. Regressado a casa, continuou deprimido. Desejou então ir animar-se para a praia da Figueira da Foz na companhia de Glória e das suas joviais companheiras, mas a amiga já tinha partido para as Pedras Salgadas. Preocupava-o profundamente a sua qualidade de deputado: “Continua a magoar-me, a doer como um espinho que dia e noite tivesse cravado em mim”, confessou a Glória. Encarava a política, a sua grande fonte de ansiedade, como um perigo em que se metera e como uma ameaça ao seu equilíbrio e integridade: “Sinto que a política me há-de fazer infeliz; parece até que já começo a atolar-me na lama”. Neste estado anímico, em Setembro sofreria ainda uma gripe e sucessivas enxaquecas que o prostraram.

A resposta de Salazar ao arcebispo de Évora, que talvez repouse no arquivo do arcebispado, deve alegar em sua defesa apenas os padecimentos físicos e psíquicos, omitindo o temor da “lama” política, a alergia ao parlamentarismo e a necessidade de cuidar da sua carreira professoral, que seriam diferentes formas de confessar a sua incompetência para deputado católico. Do desejo de férias na praia em gentil convivência feminina é que a resposta ao arcebispo não tratou certamente. Em 22 de Setembro, com um governo caído, outro em queda anunciada e o parlamento entretanto suspenso, Salazar já não sentiria tanta culpabilidade por ter faltado como deputado e desobedecido como militante católico ao arcebispo. Dali a pouco chegaria a noite sangrenta de 19 de Outubro, que lhe deve ter causado calafrios e reforçado a sua alegação perante o arcebispo.

Anos depois, D. Manuel Mendes da Conceição Santos viria tornar-se no protagonista inicial da chamada crise dos sinos (verão de 1929), que terminaria com a demissão do ministro Mário de Figueiredo e a queda do governo do general Vicente de Freitas. Daí colheria a antipatia do meio próximo de Salazar e até críticas de figuras católicas, que o acusaram de imprudência e má convivência com as autoridades da Ditadura, no seio das quais pontificavam muitos militares republicanos conservadores. Essa história custar-lhe-ia, como hoje se sabe, o lugar para que chegou a estar indigitado como patriarca de Lisboa, sendo preterido a favor do amigo de Salazar, Cerejeira. A fama de inimigo da República, de integrista e até de “intriguista” persegue Conceição Santos através dos tempos, mas circunstâncias várias apontam para que o arcebispo de Évora se tenha submetido, de facto, à filosofia do ralliement e procurado com boa-fé um modus vivendi com as autoridades republicanas, antes e depois do 28 de Maio. “Faz lá falta uma voz católica na Câmara dos Deputados, e a ausência dos nossos é mal apreciada”. 
 
 
José Barreto

 


[1]  Franco Nogueira, Salazar, t. I, pp. 332, nota 1.
[2]  António Araújo, Sons de sinos, p. 354.
[3]  Franco Nogueira, op. cit., t.I, pp. 328-329.
[4]  Idem, pp. 231-234.

4 comentários:

  1. Nada neste, fora isso, excelente post permite a conclusão inicial de que o facto de Salazar só ter assistido à sessão inaugural do Parlamento "não dependeu da sua decisão nem da sua vontade". A frase "ature-os você" é aliás lapidar a esse respeito.
    Obrigado por tudo o resto.
    Cumps,
    Buiça

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  2. Caro Buiça: na frase que cita, depois do "ature-os você", Salazar previa a hipótese de voltar ao parlamento em Outubro e, mesmo, de "falar", ou seja, intervir nos debates. Quer isto dizer que, se não tivesse havido uma revolução em 19 de Outubro, acontecimento que não dependeu da decisão nem da vontade de Salazar e que, como sabemos, conduziu à dissolução da Câmara, o deputado por Guimarães teria provavelmente voltado ao parlamento depois das suas férias de verão. Pelo menos, deixou claramente aberta essa possibilidade. Logo, o "nunca mais voltou" não dependeu da sua decisão nem da sua vontade. Além do mais, como Franco Nogueira também sublinha, Salazar não renunciou ao mandato.
    José Barreto

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  3. Excelente post.
    se imaginarmos como foi a 1ª república, é muito natural a aversão de salazar ao parlamento.
    e á política
    as constantes revoltas e golpes de estado, as prisões arbitrárias...(FORMIGA BRANCA.) muito piores do que no salazarismo, os assassinatos de figuras públicas.
    tudo isto deixava qqer um deprimido

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  4. Enfim, são detalhes, mas de um "em Outubro talvez fale" até ao "fazia tenção de falar" vai alguma distância e muita conjectura.
    O post ilustra bem o que sente um "tecnocrata" (como se chama agora), alguém com os conhecimentos técnicos e vontade de fazer alguma coisa pelo País, quando o inserem no decadente jogo político em todo o seu lodo de lutas de poder pelo poder. Ilustra bem como tiveram que o arrastar para alguma vez aceitar algum cargo desses. E o desprezo e desilusão por constatar o nível da lama em que teria de mergulhar para alguma vez chegar perto sequer de conseguir fazer alguma coisa de útil era, como é hoje, mais do que suficiente para virar as costas à lama sem sequer se preocupar em deixar uma renúncia por escrito. Afinal de contas alguém que hoje em dia nos seus 30 ou 40 anos, que tenha basta formação, largo conhecimento, experiência prática e toda a vontade de se aplicar pelo bem do país, o que julga que pensa ao chegar a um partido e ver que por uma ou outra razão há 5 mil inúteis à sua frente à espera de vez desde os 16 anos sem mais nada terem feito na vida?
    Outra coisa completamente pacífica é um ministro da Propaganda perante as várias interpretações possíveis escolher a mais conveniente.
    Mas se procuramos adivinhar a vontade de Salazar quando virou as costas ao parlamento, ela é facilmente compreensível na sua simplicidade: fugir daquela lama o mais rápido possível. Quanto a decisões, concordo que o impulso da sua vontade nesse momento não fez provavelmente parte de uma decisão estratégica, mas entre o tempo que teve para pensar e o passar da oportunidade para voltar nessa legislatura, o mais provável é ter chegado à conclusão de que haveria outro caminho, igualmente incerto mas sem dúvida mais do seu agrado. Que foi o que acabou por seguir.
    Cumps,
    Buiça

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