A relação dos comunistas com o dinheiro é peculiar.
Ainda há pouco, quando os ministros das finanças europeus decidiram que o
Chipre deve nacionalizar parcialmente os depósitos bancários, os comunistas
portugueses, ortodoxos, bloquistas e outros, decidiram defender os interesses
dos pequenos aforradores gregos e dos grandes aforradores russos. Enternecedor.
Afinal, basta atentar no discurso dos comunistas portugueses para nos
apercebermos de que se transformou num partido pequeno-burguês. Como se
explica, afinal, o seu afã a defender a pequenas empresas? Noutros tempos, os
comerciantes eram os intermediários que exploravam o povo. Hoje já são as
vítimas do capitalismo.
Mas voltemos à origens, à tomada e consolidação do
poder que terão sido grandemente facilitadas por financiamentos cuja fonte
ainda hoje se discute. A discussão tem início precisamente em 1917 mas a
polémica nasceu bem antes.
O sistema financeiro e o capital imperialista deram um
sólido apoio à revolução desde os tempos em que Lenin organizou um grupo,
dentro do próprio Centro Bolchevique, com o propósito de financiar a
organização através do produto de assalto a bancos. Os bolcheviques,
eufemisticamente, davam-lhe o nome de expropriações, esquecendo,
convenientemente, que os expropriados por interesse revolucionário acabavam, em
última linha, por ser, não os capitalistas, mas os aforradores privados. Enfim,
se tinham depósitos bancários seriam burgueses e o assunto, à época, estava
resolvido a contento.
Esses assaltos eram perpetrados por um grupo
ultra-secreto dentro da própria organização bolchevique. Tratava-se, afinal, de
uma primeira formulação da vanguarda proletária leninista. Descontada a ironia,
o segredo era bem necessário, por questões de credibilidade interna. Os
sociais-democratas, a cujo partido, pelo menos nominalmente, os bolcheviques
continuariam a pertencer até 1912, tinham proibido expressamente as acções
ilegais. Lenin, pelo seu lado, precisava do dinheiro para reforçar a sua
liderança mas sabia, simultaneamente, que se fosse demasiado evidente que
incentivava essas acções poderia ser apeado pelos seus opositores.
Koba
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O mais bem-sucedido desses grupos era chefiado por um
tal Koba. Infelizmente, era dotado do mesmo nome próprio do signatário destas
linhas. E ficou para a História conhecido por outro nome artístico: Stalin. O
assalto que comandou ao banco de Tiblissi, capital da sua Geórgia natal, em Junho
de 1907, foi um sucesso sem precedentes. Implicou a morte de cerca de quarenta
pessoas, permitiu a arrecadação do equivalente hoje a cerca de três milhões de
euros de receita revolucionária e fez com que, infelizmente, o tal Koba tivesse
de deixar a sua província para sempre, depois de ter sido expulso pelo Partido
Social-Democrata georgiano, acolhendo-se sob a asa protectora de Lenin e aí
iniciando a sua bem-sucedida carreira, com as consequências conhecidas.
Allen Dulles, quando jovem
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Anos depois, o jovem Allen Dulles, depois de ser
aprovado no exame diplomático de 1916, foi colocado na embaixada americana em
Viena. Quando, em 6 Abril de 1917, os Estados Unidos declararam guerra ao Império
Austro-Húngaro, Dulles foi transferido para Berna. Aí chegado, não sabiam bem o
que fazer com ele, pelo que o colocaram no sector onde menos ondas poderia
fazer: o das informações. Mais prosaicamente, significava ler os jornais e
fazer um relatório semanal sobre atividades de espiões e revolucionários. Assim
começou a carreira do futuro diretor da CIA.
No primeiro dia de trabalho, ao fim da tarde, é
recebido um telefonema suspeito. Remeteram-no, claro, para o jovenzinho das
informações. Era um tal Vladimir Ilitch Ulianov que afirmava, em tom urgente:
"- Tenho de falar com alguém ainda hoje." Dulles
entendeu que não havia nada de tão urgente que não pudesse esperar pelo dia
seguinte. Contou depois esta estória muitas vezes, acrescentando que se arrependeu
para sempre da sua displicência.
Pois foi precisamente na manhã seguinte, do dia 9 de Abril
de 1917, que partiu o comboio especial que transportou, de regresso à Rússia,
Lenin, vários outros bolcheviques expatriados e alguns opositores tresmalhados.
Ninguém soube nunca o que teria Lenin para dizer aos americanos. O seu
objetivo, em qualquer circunstância, era regressar à pátria, mas não lhe
agradava ser patrocinado pelo Império Alemão, ainda em guerra com a Rússia. Por
outro lado, enquanto franceses e ingleses, melhor informados, percebiam que os
bolcheviques eram a única força política que poderia retirar a Rússia da guerra
e, por isso, impediam que o seu líder regressasse através dos territórios por
si controlados, as autoridades americanas, menos informadas e escassamente sensíveis
às minudências políticas europeias, talvez permitissem o seu regresso, como
permitiriam, em Maio, o de Trotsky (sendo certo que este, na altura, não se
identificava com os bolcheviques, sendo uma espécie de menchevique em
transição).
A viagem terá ocorrido sem quaisquer peripécias de
nota. Pelo menos, é o que ficou registado. Recordo o livro de Michael Pearson, The
Sealed Train (Putnam, Nova Iorque, 1975), no qual este tentou provar, sem o
conseguir, que Lenin, ou talvez Karl Radek ou mesmo Fritz Platten a mando
daquele, teriam, numa das centrais ferroviárias de Berlim, falado com enviados
do Alto Comando germânico. Nessa reunião ter-se-ia discutido a concessão de
apoio financeiro aos bolcheviques. É muito interessante notar que se alega que,
da parte alemã, tais questões seriam tratadas, não por governantes, mas por
militares. Muito se discute a preponderância então, no Segundo Reich, de uma
ditadura militar protagonizada por Hindenburg e por Ludendorf. Deixemos essa
questão para outras calendas.
Lenin e Fritz Platten, 1919
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Fritz Platten, 1930
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Fritz Platten, um bolchevique suíço, organizou a
viagem do comboio selado, ao qual foi atribuído estatuto extraterritorial pelas
autoridades alemãs. Nos termos acordados, Platten era o único que podia manter
contacto com alemães. Na União Soviética, Platten associou a sua sorte a Lenin,
de tal modo que até partilhava o carro deste quando foi alvo de um atentado, em
Petrogrado, em Janeiro de 1918. Quando o tiroteio começou, forçou-o a
deitar-se, sendo o próprio Platten atingido numa mão. Salvar Lenin, porém, não
o salvou. Em 1938 foi preso, tendo sido executado em Abril de 1944 sem ter
revelado nada de especial sobre eventuais financiamentos alemães.
O caso de Karl Radek é mais interessante. De nacionalidade
austríaca, tinha receio de ser preso durante a viagem, pelo que se sentiu mais
seguro quando Lenin, que sempre se sentiu mais protegido na clandestinidade,
decidiu que todos os viajantes seguiriam com falsas identidades. Parece pouco
provável que Radek tivesse discutido o que quer que fosse com oficiais alemães.
No entanto, em homenagem à ingenuidade revolucionária dos bolcheviques, Radek
voltou à Alemanha logo no início de 1919 durante a intentona spartakista, tendo
sido detido mas poupado, ao contrário de Rosa Luxemburg e Liebknecht.
Karl Radek
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Ficou preso durante um ano. O primeiro a visitar o
detido Karl Radek foi um tal Karl Moor, outro comunista suíço, mas este um
frequentador da alta finança e apreciador do requinte do luxo, de que
voltaremos a falar. Foi Moor que lhe levou Eugen Freiherr von Reibnitz, colega
de Ludendorf no Corpo de Cadetes. É verdade: na prisão, Radek entrou em
contacto com a elite militar alemã. Tudo indica que não com o próprio general
von Seeckt, mas seguramente com dois dos seus mais próximos ajudantes. É um
facto histórico que foi aí que nasceu a colaboração militar entre os derrotados
de Versalhes: a Alemanha de Weimar e a União Soviética. Mas, mais do que o novo
regime democrático alemão, importa notar que quem fez uma aliança com o
Exército Vermelho foi a direita militarista alemã. Foi na cela de Radek, antes
de Rapallo, que se começou a desenhar o Pacto Ribbentrop-Molotov.
Ficou célebre um discurso de Radek ao plenário do
Comité Executivo da Internacional Comunista, em Junho de 1923, na qual ele
elogiava um mártir proto-nazi, Leo Schlageter, abatido pelos franceses quando
cometia actos de sabotagem contra os ocupantes do Ruhr. É um discurso que o
aproxima muito dos nacionais-bolcheviques, demonstrando uma notável empatia
pelo modo de pensar dos operários nacionalistas. Algo que seria corporizado por
aqueles que pretendiam ser os verdadeiros nacionais-socialistas
revolucionários, como Gregor Strasser. Na rua, os nazis e os comunistas tanto
se combateram como se aliaram no afã de derrubar a República de Weimar. Em
português, temos uma expressão para isto que diz tudo: os extremos tocam-se.
Pois Radek, o bolchevique heterodoxo, crítico da moral
burguesa e adepto do amor livre, incauto ao ponto de tomar partido por Trotsky
contra Stalin, seria julgado em 1937, num julgamento menor, o Segundo
Julgamento de Moscovo, o do chamado Centro Trotskista Anti-Soviético.
Curiosamente, o principal acusado seria precisamente Radek. Mas, caso
extraordinário, tinha-lhe sido previamente garantido que, uma vez mais, teria a
vida poupada. De tal modo que o sanguinário Vishinsky, o algoz de Stalin, foi
especialmente moderado para com Radek. O que serviu a um daqueles providenciais
idiotas úteis ocidentais para invocar, em obra com alguma difusão, o julgamento
de Radek como o exemplo que demonstrava o carácter misericordioso de Stalin
(Dudley Collard, The Soviet Justice and the Trial of Radek and Others,
Londres, 1937). Vejam lá que o mestre do Kremlin, reencarnação de Ivan o
Terrível, permitia julgamentos justos dos tenebrosos inimigos da revolução...
O marechal Mikhail Tukachevsky
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Parece que Radek, que aprendera a lição, já teria
denunciado algumas novas vítimas de que Stalin se queria ver livre. Um deles
terá sido o marechal Tukachevsky, precisamente um dos militares mais envolvidos
na colaboração com a Alemanha, o próximo a ser eliminado no julgamento dos
generais que decapitou o Exército Vermelho, o que foi sobremaneira conveniente
para Hitler em 1941 (mas também o enganou: a surpreendente ineficácia soviética
contra a frágil Finlândia contribuiu decisivamente para o convencer de que
derrotá-los seria coisa de poucos meses; na guerra, muito espaço oferece mais
tempo e Stalin teve tempo para inverter a situação). Radek, esse, ganhou algum
tempo, mas não muito. Seria eliminado, alguns anos depois, na prisão por ordem
de Beria. Sem ter aberto a boca sobre os financiamentos alemães aos
bolcheviques.
José Luís Moura Jacinto
Um comentário ao título .
ResponderEliminarSerá "financiei" ?
É uma alusão implícita ao livro «Eu financei Hitler», de Fritz Thyssen...
ResponderEliminarObrigado pelo comentário mas do Fritz Thyssen só conhecia o "Eu financiei Hitler " , com o "i" ali no meio ...
ResponderEliminarSuponho só ter sido editado no Brasil pois não encontrei alguma vez uma edição de Portugal .
Já agora aproveito para perguntar se existiu .
Desculpe, não tinha percebido que se referia à gralha, que já está corrigida, muito obrigado!
EliminarHá uma edição portuguesa, da Sociedade Nacional de Tipografia, de 1945, com o título «Eu Paguei a Hitler». O ponto interessante é que a tradução é de Carlos Ferrão, cuja biblioteca se encontra disponível na Biblioteca-Museu República e Resistência (Núcleo Cidade Universitária).
O livro encontra-se também na Biblioteca Nacional.
Cordialmente, muito grato
António Araújo
Muito agradeço a sua informação , sem ela provávelmente nunca lá chegaria ou muito trabalho me daria .
ResponderEliminarTendo em conta a história que o livro conta e o percurso difícil do "autor" na Alemanha nazi , é curiosa a sua publicação em Portugal nessa altura ainda que não me esqueça que Salazar estaria em pleno período de mostrar que nunca tinha "gostado deles" , dos caídos em desgraça um ano antes .
Que tenha sido Carlos Ferrão - grande especialista / comentador dos tempos da WW II - a traduzi-lo é mais uma razão para o procurar .
Provávelmente também terá contribuído para que a edição fôsse autorizada .
Eu é que lhe agradeço o prazer que é vir aqui todos os dias .
P.S. - Pus autor entre aspas porque o senhor em causa sempre disse que não tinha dito aquilo , como sabe melhor que eu .