Heróis, santos e mártires – hoje (redefinindo conceitos)
“Todo o conhecimento (Kenntnis) é reconhecimento (Erkenntnis).”
G.W.F. Hegel
“Forte é a alma, e sábia e bela:
As sementes do poder divino ainda
estão em nós;
Deuses somos nós, bardos, santos,
heróis, se quisermos.”
Matthew Arnold
Façamos uma reflexão
sobre o conceito de heróis, santos e mártires nacionais hoje, nestes começos do
séc. XXI, submetendo-o a uma leitura crítica e europeia actual. Uma das poucas
tentativas de inventariar os principais heróis e mártires de Portugal foi feita
por Francisco Rocha Martins (1879-1952), prolífico autor e jornalista
apaixonado pela História, numa série de folhetos que se reuniram em (pelo menos) oito volumes, sob o
título de Heróis, Santos e Mártires da
Pátria (Lisboa, Colecção Histórica, s.d., anos 30? 40?), neles abordando,
em textos que não excediam sessenta e tantas páginas cada, figuras tão diversas
como a rainha Santa Isabel, o Condestável, D. João de Castro, o Védor de Sagres,
o Infante Santo, o Conde de Abrantes (vol. 1), o Decepado, Santa Joana, Vasco
da Gama, Afonso de Albuquerque, Camões, os falsos D. Sebastião (vol. 2), Santo
António de, D. Francisco de Almeida, os jesuítas martirizados, os heróis
restauradores de 1640, o Duque de Caminha e D. Duarte de Bragança (vol. 3), o
Conde de Vila Flor, D. Manuel de Portugal (o irmão de D. João V), os Fuzilados
de Campo de Ourique em 1830, o marechal Saldanha, o Duque da Terceira (vol. 8),
etc. Havia ainda outros folhetos de Rocha Martins dedicados a Inês de Castro, ao
Venturoso, à madrasta de D. João II, à neta da Rainha Santa, etc.: em suma, a
mais acabada listagem do cânone tradicional do que seriam os heróis e santos
lusos.
A simples leitura desta
lista comprova o que seria de esperar, ou seja, que poucos conceitos são tão
datados e, nessa medida, mutáveis ou conceptualmente voláteis com o tempo e as
formas político-ideológicas vigentes em cada época como os de santidade, martírio e heroicidade
nacionais. Se alguns dos nomes evocados dessa tríplice lista ainda seriam hoje
catalogados numa panóplia identitária do imaginário nacional, a verdade é que
quase todo o elenco proposto pelo combativo jornalista monárquico e adversário
da Ditadura salazarista chamado Rocha Martins está irremediavelmente caduco e
abandonado como referencial totémico do nosso país, esquecido até, não servindo
doravante para integrar uma lista de heróis, santos e “mártires da pátria”,
pois até esta última designação nos custa hoje a aceitar, nesta Europa globalizante
do Estado pós-nacional ou em vias de
caminhar para uma “nação europeia”, no seio da qual seria mais fácil aceitar
Jean Moulin, Willy Brandt, Mozart, Schubert, Mahler, Francisco de Assis, Miguel
Servet, Giordano Bruno, Erasmo, Bulgakov, Goethe, Shakespeare, Tintin,
Cervantes, Anne Frank, Churchill, Ulisses, Peter Ustinov, John Gielgud, René
Clair, W.H.Auden, Jean Moulin, Fritz Lang, Charlie Chaplin, Thomas Mann,
Leonardo da Vinci, Vermeer, Turner, Rembrandt e Van Gogh como figuras supremas
dum novo imaginário englobante, composto por artistas, génios, políticos,
figuras mitológicas e até os tais santos, heróis e mártires, elenco cada vez
menos nacional (ou menos nacionalista). Em suma, cada vez mais europeu. Se, por exemplo, um Viriato não
logra suscitar em espíritos coevos portugueses a mínima empatia ou
familiaridade identitária, já um Erasmo ou um Da Vinci ou até um Picasso nos
parecem mais próximos da nossa sensibilidade essencial, europeia e até tribal
do que tantos outros santos e heróis domésticos que nada têm a ver connosco,
com os portugueses aqui e agora. É evidente que nesta atitude não há qualquer
desejo de sanear um elenco de antigos oragos e maiores lusos que deixaram de
nos seduzir, nos inspirar ou nos motivar como modelos de acção, de pensamento
ou de qualquer outra qualidade possível num mundo cada vez mais globalizado e,
antes de mais, europeizado, não paroquial, não limitado aos pequeninos emblemas
de um passado que realmente passou, ou seja, que não deixou fascínio bastante
para nos aliciar. Se por acaso fosse necessário colocar numa praça nova um arco
de triunfo semelhante ao monumento de Veríssimo João da Costa, de 1873, no
começo da rua Augusta, aberto para a Praça do Comércio, em Lisboa,[1]
decerto que talvez ali figurasse ainda a inscrição latina – virtutibus majorum ut omnes sit documento (“às
virtudes dos nossos maiores para servir a todos de testemunho”) –, embora fosse
duvidoso que se mantivessem o mesmo elenco de símbolos nacionais como Viriato,
Nuno Álvares Pereira, Vasco da Gama, Pombal e os emblemas geográficos Tejo e
Douro, sendo antes de esperar que a europeidade se acrescentasse com a presença
de rios como o Danúbio, o Reno ou o Ródano, ou os maiores incluíssem um Goethe,
um Shakespeare, um Espinosa ou um Erasmo, para só citar alguns nomes óbvios. A
verdade é que a heroicidade cultural, ética ou anímica tem hoje, aos nossos olhos
e mentes menos estreitamente paroquiais, um sentido diferente daquele de que ainda
há um século atrás dispunha.
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O difícil, nesta
perspectiva de fôlego mais vasto, mais generoso e de alma menos tribal, está em
escolher os “santos” e os “mártires”. Escolheríamos, por exemplo, Miguel Servet[2], o
humanista e médico, negador da divindade de Cristo e da Trindade, fugido à
Inquisição espanhola para ser, depois, queimado pelas chamas calvinistas, em
Genebra, em 1553? Ou o antigo dominicano e herege panteísta Giordano Bruno,
queimado pela Inquisição italiana na praça pública, em Roma, em 1600? Ou São
Tomás More, decapitado, em 1535, na civilizada Inglaterra de Henrique VIII? Ou
Galileu, obrigado a abjurar das suas convicções científicas, tidas pela
Inquisição romana como heréticas, por elas condenado a prisão perpétua, de que
o salvou o duque da Toscânia, que lhe permitiu viver em Siena e em Florença o
resto dos seus dias? Ou ainda os franceses, russos, checos e membros de tantas
outras nacionalidades, os fuzilados pelos nazis durante a Segunda Guerra
mundial ou os chacinados em Lídice, Katyn ou Oradour-sur-Glane? Ou os milhões
de soldados caídos nas trincheiras da Flandres durante a guerra europeia
anterior, todos vítimas duma leva-da-morte que, no fundo, para nada servia?[3] Ou as
vítimas sem conta dos campos de concentração nazis ou do gigantesco arquipélago
de Gulag soviético? Ou ainda, dando uma passada mais ampla, não seria de
incluir nessa lista nomes trans-europeus, como Gandhi ou Mandela?
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Discurso de Malraux, na homenagem a Jean Moulin
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Muitos destas figuras,
como o acima referido resistente Jean Moulin, torturado e morto pelos algozes
hitlerianos que ocupavam a sua pátria – ao qual André Malraux, na sua inspirada
oração fúnebre, no Panteão de Paris, em 1964, diante do general De Gaulle,
chamou “pobre rei supliciado das sombras.”[4] –,
são, sem qualquer dúvida, verdadeiros mártires duma causa europeia e até
mundial que transcende o país pelo qual então se batiam e por causa dele
morreram no meio de bárbaros horrores e sevícias. Não será ele, o dirigente
interno da Resistência gaulesa, um verdadeiro “santo” laico, moderno – como Gandhi
o foi na Índia –, um santo da ideia democrática, patriótica europeia, da nação
europeia de que falava, já no séc.XVIII, o abade de Saint-Pierre? Ou terão o
martírio e a santidade de serem exclusivos das confissões religiosas? Anne Frank
morreu por ser judia, apenas como judia da Torah ou pela pátria judaica? É
evidente que morreu sobretudo como santa europeia, como mártir europeia – e mártir
da humanidade, universal –, vítima do ódio dos psicopatas da suástica, como a
judia católica Edith Stein (esta, sim, acolhida no rol dos santos canónicos
pelo chefe da Igreja, o papa João Paulo II, para grande escândalo dos judeus).
O facto cada vez mais inegável é que certos heroísmos, martírios patrióticos e
santidades do passado, mesmo recente, se dissolvem nas memórias como neves de
outrora, deixando tão só vestígios “arqueológicos” no registo dos profissionais
de Clio. A simpatia apaixonada, assim como o ódio convulso, são sempre
passageiros, como o comprova o caso dos regicidas Buíça e Costa, cujo culto
popular como “mártires” – as aspas estão aqui para marcar algum cepticismo
diante desta expressão, uma vez que estes dois homens foram mortos pela polícia
depois de terem assassinado o monarca, em 1908[5] –
durou algumas semanas apenas, pois era difícil perpetuar sobre um gesto
homicida tão sangrento uma noção sustentável e continuada de martírio, mesmo
num grupo político fanatizado e açulado pela liturgia do ódio – na qual os
poetas de serviço demagógico tiveram forte responsabilidade, entre eles
avultando o ribombante e enfático Guerra Junqueiro –, num dos períodos mais
conturbados da nossa História. Como o diz o provérbio árabe, “o sangue dos
mártires vale menos do que a tinta dos sábios”.
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Buíça e Costa
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Ao pedir aos povos que se
unissem e aos homens que fossem humanos, o citado sacerdote francês, que deplorava
a hecatombe de 14-18 – na qual as nossas tropas participaram com o seu tributo
inútil de sangue e de duvidosa glória –,
exprimia, afinal, do modo mais perene o fundo comum do humanismo europeu
e ocidental, do ideário libertador das Luzes e do melhor da herança
ético-espiritual judeo-cristã: a consciência de que só é santo, glorioso e
justo o que serve para unir os homens e torná-los mais livres e mais humanos,
em suma, melhores.
Teria razão Bertolt
Brecht quando, pela boca do insubmisso mas prudente e porfiado herói da ciência
Galileu, garantia que só seriam felizes as nações que não precisassem de
heróis, ou seja, quando dispensavam modelos excelsos martirizados na praça
pública ou em masmorras secretas? Ou ainda, como pateticamete suplicava ao
criador Joana d’Arc, a donzela de Orleães que seria queimada em Rouen pelos
ingleses e seus apaniguados franceses: “Ó Deus que fizeste esta bela terra,
quando é que ela estará pronta para receber os teus santos?” (George Bernard
Shaw, Santa Joana, epílogo, 1923).
Isto é, quando é que a terra e os seus habitantes estarão maduros para receber,
ver e ouvir os seus santos sem os vilipendiarem e queimarem, mesmo que depois,
passados alguns séculos após o momento em que as fauces ígneas os devoraram,
canonizassem por fim as suas vítimas? Estas perguntas têm um recorte idealista
ou utópico, já que a história dos homens é uma interminável estrada juncada de
cadáveres trucidados pela injustiça dos que não querem ouvir as prédicas dos
santos que Adonai manda em auxílio dos homens para os guiar durante esse
pesadelo sangrento e tumultuoso no qual, por via de regra, todos o que dizem a
verdade são sacrificados, pagando com tormentos infames e até com as suas vidas
breves os exemplos de nobreza, rectidão e generosidade de alma que intentam dar
aos seus irmãos, e não por esta ou aquela pátria, por esta ou aquela bandeira
ao vento, mas pela raça humana na sua integralidade de viventes, pela
humanidade total, aquela que continua a precisar sempre de santos, heróis e mártires.
João Medina
Texto
publicado na 1ª edição de Portuguesismo(s)(Acerca
da identidade nacional), Lisboa, Centro de História, 2006, ilustr.,
pp.199-202,
agora revisto e aumentado com vista a uma reedição desse livro
-
[1] Veja-se Gustavo de Matos
Sequeira, Os Arcos de Triunfo,
Lisboa, C.M. de Lisboa, s.d.
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[2] Sobre
este humanista queimado em Genebra por Calvino, vejam-se os estudos de Roland
H. Bainton, Hunted Heretic. The life and death of Michael Servetus, 1511-1553, Boston, The Beacon Press, 1960;
e Georges Haldas, Passion et Mort de Michel Servet. Chronique historique et dramatique,
Paris, l’Âge d’Homme, 1975.
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[3] Um
filme francês recente, evocando uma trégua natalícia celebrada pelos exércitos
francês, inglês e alemão, em Dezembro de
1914, exemplifica este remorso europeu pela alucinante sangria da guerra 14-18:
referimo-nos ao filme de Christian Carion, Joyeux
Noel (2005). Na igreja francesa de Notre-Dame-de-Lorette há uns versos
escritos por Monsenhor Julien, fundador do cemitério local das vítimas da
guerra, onde se lê: “Vous qui passez en
pèlerins près de leurs tombes /Gravissant leur cadavre et ses sanglants chemins
/Ecoutez la clameur qui sort des hécatombes /Peuples, soyez unis – hommes,
soyez humains.”
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[4] André
Malraux, Oraison funèbres, Paris,
Gallimard, 1971, p.134.
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[5] Veja-se , no nosso estudo “Oh!...a República!...”. Estudos sobre o republicanismo e a Primeira
República Portuguesa, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação
Científica, 1990, o exame que fazermos dos regicidas e do seu acto, pp.34-39 (
com os depoimentos de Junqueiro e Manuel Laranjeira).
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