Apresentação de A Queda de Salazar,
de José Pedro Castanheira, António Caeiro e Natal Vaz
(Tinta da china, 2019)
de José Pedro Castanheira, António Caeiro e Natal Vaz
(Tinta da china, 2019)
Foi com muita honra – ou, como
antigamente se dizia, foi com subida
honra – que aceitei o convite dos autores deste livro para qui vir falar dele,
para mais na companhia de Maria Inácia Rezola, de quem sou amigo e admirador há
muitos anos.
Honra que advém de ser amigo, também há
muitos anos, do José Pedro Castanheira, e admirador das incursões orientais de
António Caeiro. À Natal Vaz, que não conhecia, digo apenas que neste livro,
como sabe melhor do que eu, se juntou a dois nomes grandes do nosso jornalismo
e das nossas letras e com eles formou uma trindade, porventura santíssima.
Uma trindade de jornalistas que se
caracterizam pela sua maturidade e pela sua senioridade, com isto não querendo
dizer ao público aqui presente, e que saúdo, que estejamos perante uma brigada do reumático do jornalismo
português, longe disso.
Estamos, isso sim, perante três
profissionais da escrita com provas dadas e créditos mais do que firmados,
autores de peças jornalísticas que ainda retemos na memória pois são
verdadeiros ensaios de história contemporânea (e permitam-me um aparte
recorrente nas minhas conversas com o José Pedro Castanheira para o exortar uma
vez mais, e desta feita em público, a reunir as suas reportagens no Expresso e publicá-las em livro).
Sobre a queda e morte de Salazar já
existiam diversas obras. Além das biografias gerais, de Franco Nogueira ou de Filipe
Ribeiro de Menezes, a agonia do ditador gerou um processo judicial entre os
herdeiros de Eduardo Coelho e Vasconcelos Marques, um livro de Eduardo Coelho e
de seu filho, Eduardo Macieira Coelho, um tratado detectivesco do catedrático
de Direito Paulo Otero, e uma investigação jornalística de Miguel Pinheiro.
Os autores deste livro quiseram
demonstrar – e conseguiram-no – que, apesar de já tanta tinta ter corrido sobre
a queda de Salazar, com engenho, faro e, sobretudo trabalho, é sempre descobrir
dados novos, elementos surpreendentes, de que falarei mais adiante.
Mas, por ora, gostaria de começar por
uma perplexidade que me assaltou todas as vezes que li este livro: o que é que
levou estes três autores, jornalistas de créditos firmados que nada precisam de
provar a ninguém, o que é que levou estes três autores a regressarem a este
Forte de Santo António da Barra? Existindo já tanta coisa publicada e dita, o que os
motivou nesta empresa?
Decerto, não um fascínio apologético
ou, se quisermos, admirativo pela figura do ditador, já que as credenciais
democráticas dos nossos autores são conhecidas de todos.
Também, por certo, não foi um objectivo
de marcar pontos e criar bibliografia numa trajectória profissional ascendente,
pois José Pedro Castanheira, António Caeiro e Natal Vaz, longe de se
encontrarem numa trajectória descendente, atingiram já os cumes da consagração
e não precisam de juntar fama à muita e boa fama que já têm.
Decerto também não foi com intuitos
comerciais ou de lucro, ainda que nunca devamos esquecer o famoso dito de
Richard Nixon segundo o qual «ganhar dinheiro é bom», e saibamos todos que
Salazar, que tinha fama de sovina, está agora a dar dinheiro a ganhar a muita e
muita gente, nem sempre gente escrupulosa e rigorosa nos seus trabalhos.
Sem querer forçar o escândalo nem
instilar a provocação, creio que o motivo maior que animou esta empresa foi o
fascínio que Salazar desperta.
E, fazendo-lhe nós um museu, ou não, em
terras de Santa Comba, importaria perceber a razão pela qual Salazar desperta
esse fascínio, tantos anos volvidos sobre a sua queda, política e física. Um
fascínio que, nada tendo de laudatório, pelo menos para os que se encontram aqui
hoje, tem o seu quê de voyeur e de
algum deslumbre.
Não deixa de ser curioso, aliás, que
durante décadas a oposição tenha retratado Salazar como um homem tacanho e
desinteressante, um provinciano de vistas curtas, e agora, como numa vingança
póstuma, o ditador demonstre ser uma personagem tão sedutora post-mortem como foi para alguns – ou
algumas – nos seus quase 80 anos de existência.
O
passado é um estranho lugar, como disse alguém, numa frase já estafada, de
tão usada. Mas o passado, e, neste caso, o passado recente, um pretérito que
ainda é nosso, não o sendo, o passado recente é um território de fascínio e de
refúgio, creio eu, porque vivemos desalentados com o presente e muito inseguros
quanto a um futuro que tem inscrita a terrível possibilidade, cada vez menos
remota, de extinção em massa da espécie humana.
O passado abre-se, assim, à nossa
vontade de poder e domínio, à nossa sede de controlo e poder, pois conseguimos
conhecer o passado sem que esse conhecimento nos ameace ou ponha em causa. E conseguimos
moldá-lo, remodelá-lo e conhecê-lo de acordo com as nossas prioridades ou, como
agora se diz, com a nossa «agenda».
Não é isso que sucede com o presente e
com o futuro. Por muito que eu não queira saber mais notícias de Bolsonaro e de
Trump ou das alterações climáticas, o presente e o futuro impõem-se contra a
nossa vontade, e somos bombardeados com notícias da televisão ou dos jornais
sobre coisas que não queremos saber, ou que gostávamos de não conhecer.
Com
o passado não é assim, posso escolher saber ou não a história dos meus avós ou
fixar-me na época dos Descobrimentos, nas batalhas da 2ª Guerra ou nas colónias
africanas. Passado, modos de usar,
como disse o historiador Enzo Traverso.
O passado é diferente do presente, é
moldável, abre-se à viagem, à escolha do destino e do percurso, à selectividade
dos gostos, e talvez seja interessante notar que não é por acaso que a história
e o turismo são dois tópicos essenciais do nosso tempo. Como não é por acaso
que nas livrarias encontramos, lado a lado, livros como este, de indiscutível
qualidade, romances históricos de gosto duvidoso e cartões de oferta com
«experiências» e viagens.
O
passado é, ele próprio, uma «experiência», uma experiência nostálgica. Não
necessariamente para figurarmos o passado como um lugar idílico, mas por sermos
incapazes de ler, como lemos neste livro, que a governanta de Salazar, a temível
Dona Maria, não confiava nas capacidades profissionais de uma médica por ela
ser mulher e fumar, somos incapazes de ler isto, dizia, ou ler pormenores sobre
o dia-a-dia de Salazar, as suas rotinas e as suas liturgias, as dinastias
médicas de outrora e coisas assim, somos incapazes de ler tudo isso sem um
trejeito nos lábios e um sorriso condescendente, com uma certa complacência
paternalista da nossa parte, como se os homens do passado, por mais ditadores e
poderosos que fossem, fossem, afinal, mais pueris do que nós. Até por isso,
este livro, abundante em pormenores, é uma leitura instrutiva mas também muito,
muito recreativa.
Desculpem esta deriva algo etérea e
metafísica mas penso que devemos reconhecer que a nossa curiosidade pelo
passado exprime, ao cabo e ao resto, uma pulsão de domínio e um desejo de
segurança que não andam longe dos desígnios políticos do doutor António de Oliveira
Salazar…
E Oliveira Salazar foi também alguém
que fez um uso manipulatório de passado, presente e futuro. No seu pessimismo
antropológico, estava consciente – e disse-o a vários confidentes – que a sua
obra não lhe sobreviveria, no que em parte estava enganado. Tinha, pois, uma
visão pouco optimista sobre o futuro próximo e, talvez por isso, buscou no
passado, exactamente como nós, o refúgio para as desventuras do presente. Mas
foi mais longe, converteu o passado em programa político, mobilizou-o como
ideal de propaganda, tentou fazer com que o passado se fizesse a todo o instante
presente, que um pretérito idealizado retirasse a liberdade de, a cada momento,
podermos escolher o que queremos.
O que motiva o fascínio por Salazar é
também, creio eu, o seguinte paradoxo: em vida, e como se diz logo na primeira
linha deste livro, Salazar cultivou a distância e a reserva, desenvolveu até
aquilo a que José Gil chamou a «retórica da invisibilidade». No entanto, deixou
um legado documental gigantesco, milhares e milhares de papéis onde ainda se
descobrem factos surpreendentes. Nesse sentido, e este ponto é curiosíssimo,
Salazar parece ter desejado o confronto com a História e não mostrou
aparentemente qualquer temor perante o futuro.
Através de um espólio acumulado ao
longo de décadas, Salazar tem muito mais visibilidade do que Marcello Caetano,
por exemplo. Marcello Caetano foi muito mais visível em vida, aparecia na
televisão, que ajudou a fundar e que mobilizou como instrumento de propaganda.
Salazar, ao invés, tinha aparições fugazes, fazia-se invisível, a ponto de uma
mulher idosa de poucas letras, ao ver Marcello Caetano na rua, já como chefe de
Governo, ter dito «este Salazar é mais simpático do que o outro»... Mas, mercê
do seu arquivo, Salazar adquiriu uma visibilidade e, podemos dizê-lo, uma
«transparência» que não encontramos na personalidade torturada e sombria de
Marcello Caetano.
É claro que – e este ponto é também
curioso – a dimensão e o conteúdo do Arquivo
Salazar decorrem também da sua extraordinária longevidade política (décadas a
acumular papéis de Estado) e da forma como o Presidente do Conselho caiu e
morreu. Se acaso tivesse passado os últimos dias na sua terra natal, a arrumar
e a selecionar papéis, a destruir documentos, tudo seria diferente. Ainda
assim, e salvo um ou outro papel mais comprometedor, não creio que Salazar tivesse
destruído muita coisa. Ou destruiria tudo, num exercício místico de total apagamento,
ou teria mantido o espólio mais ou menos como está.
E, nesse espólio, existe o «Diário» de
Salazar. Não com anotações íntimas ou confissões assombrosas, mas com o registo
factual, quase telegráfico, dos trabalhos e dos dias de um consulado político
de muitas décadas, vividas compassadamente ou, como ele diria, vividas habitualmente («és um animal de
hábitos!», disse-lhe Cerejeira, ainda nos tempos dos Grilos de Coimbra)
O Diário tem uma importância
extraordinária para a historiografia do salazarismo, para uma historiografia
séria, rigorosa, feita com apoio em documentos e em trabalho árduo, antes de avançar
«interpretações» ousadas mas construídas no vazio e na ignorância dos factos.
Temos, pois, de saudar e agradecer o
trabalho paciente e beneditino de Madalena Garcia, que ao longo de décadas conviveu
de perto com a «caligrafia diabólica» de Salazar (a expressão «caligrafia
diabólica» também, creio, de Cerejeira).
É
através do Diário que os nossos autores puderam descobrir um dos factos
inéditos mais surpreendentes deste livro, muito falado aquando do seu
lançamento, as famosas injecções de Salazar, tomadas a um ritmo impressionante.
As doenças e as nosografias dos
poderosos, e dos ditadores em particular, sempre motivaram grande interesse. Há
um belíssimo ensaio de Sergio Luzatto sobre o corpo de Mussolini, sabe-se que pedaços
do cérebro do Duce chegaram a ser levados para a América para tentar provar-se,
sem sucesso, que padecia de sífilis ou de outra doença venérea, e que era essa
a causa do seu comportamento «louco». Também em relação a Hitler, e basta ler-se
a biografia de Allan Bullock, por exemplo, se fala recorrentemente do facto de
padecer de monorquismo, isto é, de só ter um testículo, como se refere que o
seu ódio aos judeus derivava do facto de ter contraído uma doença venérea com
uma prostituta judia em Viena. E falou-se também das injecções ministradas pelo
doutor Morell (este livro também fala do doutor Morell, na busca de um
paralelo entre Hitler e Salazar)
Confesso que tenho o maior receio
destas incursões. Não pelo seu voyeurismo
mas pelo risco que criam de se gerar uma explicação «clínica» para
comportamentos muito mais complexos, como se o Holocausto e a morte de 6
milhões de judeus se pudessem explicar por uma noite num prostíbulo austríaco.
E note-se que a ideia de que Mussolini,
Hitler ou sobretudo Salazar não se encontravam no uso das suas faculdades pode
até, no limite, funcionar como um expediente desculpatório e desresponsabilizante
para os seus gestos.
Bem sei que não é essa a perspectiva
dos nossos autores e que a questão das injecções não ocupa sequer um lugar
central na estrutura deste livro.
No entanto, e como esse tema foi o mais
falado aquando do lançamento do livro, talvez em parte devido à avidez de
sensacionalismo da imprensa, importa dizer que esta obra não é, não é apenas, o
tratado das dependências viciosas do Senhor Presidente do Conselho.
O livro tem revelações tão ou mais
importantes do que esta – por exemplo, a visita de Marcello Caetano a Salazar,
na Cruz Vermelha, contrariando tudo o que se sabia e disse até aqui sobre a
omissão de Marcello nessa hora decisiva, ou a publicação na íntegra da acta do Conselho
de Estado que tratou da sucessão – o livro, dizia, tem revelações importantes –
e, para mais, revelações num terreno que, como disse, já tinha sido revolvido
por muitas mãos, incluindo as de um jornalista talentoso e sério como o Miguel
Pinheiro, que teve acesso, por exemplo, ao espólio de Anselmo da Costa Freitas.
Por isso, creio ser meu dever resgatar
este livro do seu teaser publicitário
e dizer, no que não sei se sou acompanhado pelos autores, que a questão das
injecções é muito curiosa mas não terá a relevância histórica que alguns podem
querer atribuir-lhe.
Da
dependência das injecções ninguém duvida, bastando ver a longevidade e a
regularidade com que Salazar era picado pelo enfermeiro Merca.
Mas
não se sabem três coisas essenciais:
(1) em
primeiro lugar, para que fim e com que propósito médico se ministravam as
injecções, qual a patologia que visavam tratar ou debelar (a resposta a essa
pergunta, de um milhão de dólares, foi levada para o túmulo pela reserva e pela
deontologia do dr. Eduardo Coelho ou do dr, Bissaia Barreto);
(2) em
segundo lugar, não é seguro, de modo algum, que a substância ministrada tenha
sido, ao longo do tempo, sempre a mesma e, menos ainda, sempre o fármaco
Eukadol;
(3) em
terceiro e último lugar, o ponto mais decisivo: não há provas consistentes nem
testemunhos de que esta dependência tenha afectado o comportamento pessoal e,
sobretudo, a acção política de Salazar. Esta terá sido afectada pelo desgaste
dos anos e pela natural perda de faculdades que a idade implica, pela solidão
progressiva, terrível, em que mergulhou, mas não há, creio eu, qualquer indício
de que Salazar tenha sido influenciado, negativa ou positivamente, pelas
injecções intramusculares – não intravenosas, sublinhe-se – que tomou com muita
regularidade.
Do
ponto de vista historiográfico, esta questão das injecções tem interesse, isso
sim, para a compreensão da personalidade do Presidente do Conselho. Salazar é
um homem que vem de um tempo em que a doença – e sobretudo a doença crónica –
se convertia frequentemente em elemento da identidade pessoal, até mesmo em
elemento preponderante, hegemónico e exclusivo da identidade pessoal. Uma
menina de família apanhava uma tuberculose e tornava-se na «tísica de
estimação», rodeada de mil cuidados, não casava, vivia a entrar e sair de
sanatórios ou estâncias de repouso, o facto de ser tísica acompanhava-a até ao
fim dos seus dias. Se lermos um best-seller
hoje esquecido, o Livro de San Michele,
de Axel Munthe, encontramos muitas descrições, algumas até caricatas, de
senhoras aristocratas ou da alta burguesia que assumiam a doença como segunda
pele, como sua identidade, muitas vezes imaginária ou hipocondríaca.
No
livro, os autores entrevistam o psiquiatra José Gameiro e lembro-me de uma
conferência dele num colóquio sobre o Estado Novo em 1986, há mais de 30 anos
(isto para verem há quantos anos ando a receber injecções de Salazar e salazarismo!).
Como referiu José Gameiro, Salazar sempre teve uma relação muito especial com a
mãe e, acrescento eu, desde muito cedo assumiu, também ele, a persona pública de homem enfermiço,
débil, adoentado, cansado, desejoso de repouso em Coimbra ou no Vimieiro, um
intelectual com constantes achaques, alguns deles reais, muitos imaginados. O
ponto é relevante até para a caracterização do regime e para a eterna questão
do fascismo ou não fascismo em Portugal, Quanto a mim, não é irrelevante que o
dirigente máximo do Estado Novo português, ao contrário de um militar garboso
como Franco ou de um macho alfa atlético como Mussolini (que se fazia
fotografar em tronco nu, a saltar a cavalo, vestido de marinheiro ou de aviador),
não é irrelevante, dizia eu, que o regime fosse dirigido – e dirigido
ditatorialmente – por alguém que interagia com o rótulo de pessoa frágil e
adoentada. Talvez fruto da sua natureza ciclotímica, neurasténica ou depressiva
(não quero entrar muito por estes caminhos…) essa era a autoimagem de Salazar,
que saudava a mocidade que praticava desporto e fugia do vício dos cafés – e
tem um interessante e pouco falado discurso sobre isso – mas que não era, ele
próprio, um líder que dominasse pela fisicalidade. O que não significa, obviamente,
que o regime deixasse de ser «fascista» por causa disso (Goebbels era
deficiente e nem por isso o nazismo deixou de ser o que foi). Mas o ponto é
importante para perceber a natureza muito sui
generis do regime português, julgo eu.
O
segundo aspecto que interessa realçar neste livro, em traços largos, tem a ver
com a atenção dada ao humano. Talvez este livro seja humano, demasiado humano, como diria Nietzsche, mas o que é facto é
que, por um lado, ele convoca o fascínio que os relatos terminais sempre
despertam (e há uma vastíssima «literatura terminal», da Morte de Ivan Ilitch à Cerimónia
do Adeus, de Beauvoir, até livros mais recente, como o impressionante
relato autobiográfico de Tobny Judt). Mas, por outro lado, e é esse o ponto que
quero realçar, este livro convoca, como disse, o aspecto humano, em que os
traços de carácter e de personalidade dos protagonistas têm o peso devido – não
um peso excessivo, pois esta não é uma novela psicológica, mas o peso devido.
Nem
sempre foi assim. Durante anos, vivemos dominado pelo paradigma da Nova
História e da Escola dos Annales em que os protagonistas não interessavam, só
importavam as «estruturas» e os «processos», a «longa duração». Felizmente, houve
um recentramento na história política e, sobretudo nos últimos anos, há uma
redescoberta muito intensa, até por razões comerciais, do género biográfico.
E
ele é importante, como o livro o demonstra. É importante, por exemplo, vermos
como são díspares e até contraditórios os olhares dos protagonistas, o que nos
deve levar a questionar o valor excessivo tantas vezes atribuído a relatos
memorialísticos ou similares, como os de Franco Nogueira. Sobre o último Conselho
de Ministros do salazarismo – ou seja, sobre uma reunião que não foi
propriamente de somenos – dois ministros têm memórias conflituantes, bem
plasmadas nas páginas 82 e 83 deste livro. José Hermano Saraiva diz que Salazar
fez uma intervenção demorada sobre os reflexos do Maio de 68 em Portugal.
Franco Nogueira, pelo contrário, afirma que Salazar não proferiu qualquer
intervenção nesse Conselho…
São
pormenores como este que, sem explicarem tudo, explicam muita coisa. Não é
possível compreender a ascensão de Marcello Caetano ao poder sem sabermos que Américo
Thomaz estava agastado com Salazar, até por este não ter elevado a ministro da
Marinha o seu amigo Tenreiro, como é importante sabermos que uma parte da
família próxima do Presidente da República se opunha à nomeação de Caetano.
Como, já agora, é importante saber que, ao contrário do que muitas vezes se
disse, Marcello Caetano esteve no Hospital da Cruz Vermelha, visitou Salazar no
seu estertor. O livro mostra quem desfilou por lá, desde 35 funcionárias da
PIDE a Eusébio ou a Amália, de Alfredo Marceneiro ao duque de Bragança,
passando pelo célebre cirurgião sul-africano Christian Barnard. Amália até
versejou: «Ponha-se bem depressa / Meu querido presidente/ Depressa, que essa
cabeça/Não merece estar doente». Seria estranho que Marcelo Caetano não tivesse
lá ido… Estranho é, isso sim, o silenciamento da sua visita.
Igualmente
me parece estranha a afirmação atribuída a Marcello Caetano de que não se
deveriam gastar recursos excessivos no tratamento a Salazar, que o sistema de
saúde tinha outras prioridades... Na perspectiva da sucessão, e Marcello Caetano
era um homem de grande inteligência, seria um erro grosseiro revelar um tal
desprezo pelo antecessor venerando e seria um erro revelar uma tal ambição de poder.
No fundo, aquela frase é má demais para ser verdadeira, e, como já disse pessoalmente
ao José Pedro Castanheira, receio que tenha sido posta a circular, antes ou
depois do 25 de Abril, pelos adversários «ultras» direitistas de Marcello
Caetano, os que eram próximos de Thomaz e os que, após o 25 de Abril, o
consideraram o coveiro do império e do regime (lembre-se, por exemplo, o livro Acuso Marcelo Caetanom, saído nessa
altura). Não é descabido supor que esse retrato de Marcello Caetano, e
sobretudo essa frase que lhe atribuem, seja uma fake news posta a circular pelos seus detractores.
Indiscutivelmente,
Marcelo Caetano era o candidato mais bem preparado à sucessão. A todos os
níveis: prestígio académico, experiência política, inteligência e cultura,
conhecimento da máquina do Estado, etc., etc. E era também o que, ao longo de
décadas, mais bem se preparara para suceder a Salazar, quer nas proximidades
quer nos distanciamentos face ao ditador (e a correspondência entre ambos
mostra-o), quer no uso de novos meios de comunicação, quer na formação de uma
clique em seu redor, o «grupo da Choupana» com ramificações poderosas aos
centros de propaganda e difusão de informação, quer nas «pontes» estabelecidas
com os meios intelectuais nem sempre afectos ao salazarismo.
Não
é possível percebermos o final do regime sem compreendermos esta ambição
pessoal – e legítima – de Marcello Caetano, como não é possível percebermos a
«ditadura catedrática» de Salazar sem percebermos o peso das redes de
sociabilidades das elites, a importância de Coimbra, etc.
O
livro tem outro mérito, com o seu olhar «jornalístico», no melhor sentido desta
palavra. Nas linhas e entrelinhas, esta narrativa do Portugal provinciano numa
Europa atravessada pelo Maio de 68 e por outros grandes acontecimentos, da Primavera
de Praga até á ida à Lua. O livro é um retrato do Portugal periférico e
paroquial, um país que era e é pequeno geograficamente, mas que a ditadura
tornava ainda mais pequeno e ainda mais periférico. O Portugal da governanta
Maria de Jesus (que pensava ainda ser possível «tratamento domiciliário» para o
seu patrão…), o Portugal da cunha e dos empenhos (o arquivo de Américo Thomaz
na Presidência da República está cheio de empenhos e agradecimentos), das
leituras francófonas do dinossauro
excelentíssimo (leituras muito mais modernas e heterodoxas do que muitos julgam),
das intrigas e das coscuvilhices (que Salazar, feminino, adorava, sabendo até
que o médico Vasconcelos Marques era casado com uma espanhola da Andaluzia),
dos chás e lanches do Chefe do Estado e família, do glamour da Linha, dos restaurantes do Guincho, dos cuidados
delicados calista Hilário, dos príncipes da medicina com consultório aberto na
Baixa de Lisboa, com clientela passada de pais para filhos. O Portugal que
recebia com deslumbramento mas com receio e reserva o sábio vindo da América,
com quem Salazar tem um diálogo inolvidável, mostrando ser, até ao fim, um
beirão matreiro que a Providência colocara à frente dos destinos de um país – e
de onde só saiu pela queda de uma cadeira, em data que não se sabe ao certo,
sendo possível, até provável, que não esteja correctamente indicado o dia dessa
ocorrência na placa que vemos lá fora, neste Forte.
Há
poucos dias – e desculpem-me este aparte – li um livro sobre alterações
climáticas chamado Losing Earth, de
Nataniel Rich. Pode parecer estranho que fale desse tema a propósito de
Salazar, mas o livro é um relato do que podia ter sido feito, e não foi, nesse
domínio do combate às alterações climáticas, e que acção – que acção perniciosa
– tiveram certas pessoas, colocadas em lugares-chave. Para o que agora vivemos
em matéria de alterações climáticas não foi indiferente que uma personalidade
como John Sununu tivesse sido chefe de gabinete de George Bush na Casa Branca.
Provavelmente, poucos sabem quem é John Sununu, mas peço que vão ver, e
sobretudo vejam o modo como sabotou os compromissos dos EUA em matéria
ambiental.
Só
mencionei este caso para que percebamos a importância do valor pessoal, que o
facto de num certo lugar estar a pessoa A ou B faz a diferença (no caso Béjart,
como se mostra neste livro, não era indiferente a presidência da Gulbenkian
pertencer a Azeredo Perdigão, que Salazar respeitava e até temia). E, a essa
luz, á luz da importância do lado humano, da personalidade, podemos talvez
concluir que desde o início Marcello Caetano era o sucessor óbvio e natural de
Salazar, nenhum dos rivais tinha a mínima hipótese de êxito. Soares da Fonseca,
só para dar um exemplo, era demasiado próximo de Américo Thomaz para poder ser
designado. Nomes como Gomes Araújo também eram descartáveis, por razões
diametralmente opostas. A Franco Nogueira, um dos mais bem posicionados mas
muito concentrado na diplomacia e na ambiência das Necessidades, faltava a
experiência política, sobretudo a diversificação da experiência política de
Marcello Caetano e a sua «ambiguidade construtiva», o facto de ser um homem do
regime, inquestionavelmente, mas capaz de gestos de algum distanciamento e
relativa independência.
Num
certo sentido, a lógica de «presidencialismo de 1º ministro» inscrita na
Constituição de 1933 e sobretudo na prática política sedimentada em décadas,
essa lógica não condicionou apenas o exercício do poder em vida de Salazar –
condicionou também a forma como se processou a sua sucessão. Este ponto é muito
curioso: Thomaz, que em lágrimas anunciara na televisão o fim político de
Salazar, se queria ser fiel ao seu legado tinha de nomear… Marcello Caetano.
Como
sempre sucede, houve opiniões discrepantes e compassos de espera, mas esses
ritos, esses tempos, são inerentes à política, fazem parte da sua encenação e
do seu mistério. Para que Marcello Caetano fosse nomeado a final era
imprescindível que não parecesse logo que viria a sê-lo. Se também isto se
passa em democracia, passava-se sobremaneira no Estado Novo, um regime de
fachada constitucional, em que a prática do sistema era divergente da letra da
Constituição. Daí a importância das aparências, dos protocolos cénicos, dos
dispositivos figurativos.
O
desfile de individualidades na Cruz Vermelha, onde se incluíram ministros
vindos à pressa de um baile faustoso de um milionário estrangeiro (outra
metáfora do fim de um regime austero e frugal), o desfile de individualidades,
dizia, inscreve-se precisamente nessa lógica de teatralização e encenação
política – e ética, como o caso Ballets Roses viera mostrar em termos mais ou
menos escandalosos.
Este
livro acompanha pari passu este drama
shakespeariano, ou este filme de Kurosawa decorrido entre o Forte de Santo
António da Barra, os grupos políticos da Linha do Estoril, o Hospital da Cruz Vermelha do
quarto 68 e a residência oficial do chefe do governo em São Bento.
O
Parlamento, como sempre, esteve arredado do que se decidia sobre os destinos da
nação.
Lá
fora, ao longe, os portugueses aguardavam o desenlace de tudo, mantidos à
distância por um prudente cordão sanitário, feito de ignorância e de medo.
Portugal
era então um país desfasado do mundo e do tempo.
E
António de Oliveira Salazar, quando morreu, era a personificação desse
anacronismo.
Haverá
destino mais cruel do que esse?
Muito
obrigado.
António Araújo
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