sexta-feira, 18 de outubro de 2019

No centenário de Jorge de Sena (2).

 
 
 
 
 
JORGE DE SENA “SEPARA-SE” DA MÉCIA
 
          Foi em Madison, Wisconsin, pelas dez e meia da noite do ano do Senhor de 1969. Era Inverno e chovia quase torrencialmente.
         Estava eu em casa do Prof. António Salles, a discutir com ele o meu “paper” para o seminário anual de Linguística, quando alguém bate estrondosamente à porta. O Salles vai abrir e quem havia de estar à porta, com uma capa de oleado a escorrer água? – Jorge de Sena. Nem mais nem menos.
         Entra e enquanto o Salles o ajuda a tirar a capa, Jorge de Sena profere estas palavras:
         -  Ó Salles, separei-me da Mécia. Dás-me dormida em tua casa?
          -  Para já, senta-te aí nessa poltrona, toma um uísque e depois discutimos essa questão da separação e da dormida.
            E o Salles pegou dum copo e pôs-lhe duas pedras de gelo; depois pegou duma garrafa de Johnñy Walker, abriu-a e preparou um uísque bem generoso a Jorge de Sena. E bebido esse uísque, o Salles serviu-lhe outro. E enquanto Jorge de Sena saboreava os uísques em silêncio e com ar ensimesmado, o Salles e eu íamos notando, pelo rabo do olho, que a pequena raiva que Jorge de Sena trazia, ao entrar na casa do Salles, localizada junto do Capitólio, ia diminuindo a olhos vistos.
         Tendo observado essa transformação, o Salles perguntou-lhe então se de facto queria dormir em casa dele. Se sim, que esperasse uns minutos, enquanto ia mudar os lençóis na cama dele, e preparava uma cama para ele, Salles, no sofá. Foi então que Jorge de Sena, com ar ligeiramente sereno e visivelmente enternecido, perguntou ao Salles se podia usar o telefone dele. Com certeza. Estava à sua inteira disposição. E coloca-lho nas mãos. Jorge de Sena levanta o auscultador, disca um número, e passados momentos, com uma voz mais mansa que a de um cordeiro, profere estas palavras:
          - Ó Mécia, se eu voltar para casa, tu ainda me aceitas aí?
         E mais não disse. Decorridos brevíssimos instantes, pousou o auscultador, agradeceu a hospitalidade e o uísque, levantou-se da poltrona, pediu a capa de oleado e disse que ia para casa, que já era tarde e a Mécia estava à espera dele, muito preocupada.
 
            António Cirurgião
 

3 comentários:

  1. O homem habitando o portento. Se não tresleio, na Conta Corrente Vergílio Ferreira anotou: Sem a Mécia aquele homem desmoronava-se.
    Grato pelas recordações.

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  2. Prezado Sr. José,
    Como é gratificante esta sintonia de mentes! Explico-me. Ao enviar esta vinheta sobre Jorge de Sena a pessoas amigas, dei-lhe por companhia estas palavras: "De longe em longe o monstro sagrado descia do Monte Parnaso ou levantava-se do mesa do café do Minotauro e dava um breve passeio pelo mundo prosaico dos homens".
    Obrigado e cordiais saudações
    do
    Cirurgião

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  3. Agradeço-lhe a atenção.
    O convívio com o Minotauro tinha uma condição:-Se um dia me esquecer de tudo. Em todo o caso precisava da materialidade do café(forte) e do "dedo sujo de investigar as origens da vida".
    Esse ano da "separação" seria,se não erro, o da "peregrinação" à Europa e do (livro) Peregrinatio.
    Envio-lhe os melhores cumprimentos.
    José

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