terça-feira, 1 de outubro de 2019

Assim, não.



https://www.nasa.gov/press-release/nasa-releases-detailed-global-climate-change-projections





Peço imensa, imensa, desculpa por estar sempre a voltar ao mesmo assunto, mas o que se vai escrevendo e lendo na imprensa portuguesa a isso obriga. Um homem informado e esclarecido, editor que prezo e admiro, Manuel S. Fonseca, assinou uma crónica com o título «O garrafão da demagogia». A dado passo, diz o seguinte: «Há aquecimento global, os humanos contribuem, mas a ciência não sabe, hoje, se os humanos são a causa dominante. Agir sem saber é demagogia» Como, Manuel?

É curioso que esta crónica tenha saído na mesma edição do Correio da Manhã em que, a toda a largura de duas páginas, se noticia: «Seca severa reduz reservas de água». E depois: «mais de 95 % do território regista falta de água nos solos». Mais à frente ouve-se a opinião de um cientista, Filipe Duarte Santos, que diz: «as situações em número crescente de seca em Portugal são um resultado das alterações climáticas que tiveram origem nas emissões de gases com efeito de estufa.»

É claro que, tendo saído na mesma edição do Correio da Manhã em que opinou, Manuel Fonseca não pode ter lido esta notícia. E também outra, no jornal i, que diz que o Ministério da Agricultura prolongou até ao dia 10 de Outubro o período crítico de incêndios, dada a existência de «temperaturas com valores acima do que é padrão para a época». E, já agora, uma notícia do Público em que outro cientista, Ricardo Trigo, da Faculdade de Ciências de Lisboa, refere como possível que o furacão Lorenzo tenha a sua origem nas alterações climáticas.

Seria útil ler o relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, ou ele não é «ciência»? E o que lá diz, sem tirar nem pôr?  Human-induced warming reached approximately 1°C (likely between 0.8°C and 1.2°C) above pre-industrial levels in 2017, increasing at 0.2°C (likely between 0.1°C and 0.3°C) per decade (high confidence).


É dispensável transcrever o resto do relatório, mas convém lê-lo, pois demonstra à saciedade que são os humanos a causa principal do aquecimento global. Human-induced warning. Posso traduzir, mas creio que Manuel Fonseca acompanha a língua inglesa. O mais lamentável, porém, nem sequer é isso, é a frase seguinte: «Agir sem saber é demagogia».


          Quer dizer, caríssimo Manuel, o melhor, portanto, é não fazer nada? Aguardar que os cientistas concluam (como se o não tivessem feito já...) que o aquecimento global é causado por humanos, e só depois é que se iria actuar? Mas, mesmo que a causa fosse outra, não se deveria actuar já? É melhor a inacção prudencial, esperar para ver? Esperar quantos mais tufões e furacões, quantas mais inundações? 


O que espanta é que se aconselhe prudência antes de agir, mas não se tenha idêntica cautela antes de escrever e de opinar. O que tem sido dito nas últimas semanas na nossa imprensa, com uma subida de tom à medida que a discussão sobre o clima se intensifica e aquece, é bem o espelho, o triste e baço espelho, do pessoano caso mental português. Discordem da existência das alterações climáticas, menosprezem o aquecimento global, apedrejem a Greta e o Guterres, mas, por favor, sejam um bocadinho mais sofisticados na argumentação. Assim, não.  








2 comentários:

  1. o Homem, como ser coletivo inteligente e capaz de tomar decisões em nome da humanidade, não existe. O que existem são homens com poder. Esses estão sempre ao serviço de interesses económicos (às vezes disfarçados de interesses políticos altruístas).
    Por isso, mesmo que fosse inquestionável a origem antropomórfica do aquecimento global, nunca seria possível a humanidade unir esforços para fazer algo que combatesse as alterações climáticas.
    Até porque essa ação concertada, a existir, contrariava a lei da natureza que dá pelo nome de "tragédia dos bens comuns". E ninguém consegue contrariar as leis da natureza. Seria equivalente a contrariar a lei da gravitação universal.

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  2. É curioso, a minha última crónica no Diário de Notícias fala justamente da «tragédia dos comuns»: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/28-set-2019/interior/a-tragedia-dos-comuns-11343906.html?target=conteudo_fechado

    Mas, se me permite, o que de mais sintomático existe na visão de Manuel S. Fonseca (e outros) é algo um pouco diferente. Recomendo-lhe, muitíssimo, que leia o livro The Uninhabitable Earth, de David Wallace-Wells, acabado de sair. Logo no início (na página 30, para ser mais preciso), diz-se, e bem, que os que no passado negavam a existência de alterações climáticas - e que não podem mais fazê-lo, tantas são as evidências - adoptaram agora uma nova atitude, dizendo que «as suas causas são pouco claras e sugerindo que as mudanças que estamos a assistir resultam sobretudo de ciclos naturais, mais do que de actividades ou intervenções humanas».

    Meu caro Manuel Galvão: o novo negacionismo, incapaz de iludir as evidências, tenta dissimular as suas causas. E é mesmo de negacionismo que se trata: se a temperatura do planeta aumentar 2 graus, em vez de 1,5 graus, 150 milhões de pessoas irão morrer só por causa da poluição atmosférica (não falemos de outros desastres). O equivalente a 25 Holocaustos. Mais do dobro de todas as mortes da 2ª Guerra. Três vezes os mortos do Grande Salto em Frente, do agora celebrado Mao Zedong.

    Por isso me parece pertinente falar em Holocausto e em negacionismo, mas cada um saberá escolher as palavras mais certas.

    António Araújo



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