Christopher Payne, Asylum
|
Por
vil e puro egoísmo, tenho muita pena que Oliver Sacks tenha morrido. É que os
seus livros são tão incrivelmente bons, tão incrivelmente bons de ler, que até
faz pena. É certo que, sobretudo nos mais autobiográficos e clínicos, como este
Tudo no Seu Lugar, acabadinho de sair, os casos e as patologias
se repetem um pouco e quem leu os livros todos ou a maioria deles sente-se
demasiado em casa. É certo, também, que sempre me interroguei se seria ética e
deontologicamente correcto estar a contar histórias assim, com nomes e tudo. E
também é certo que me questiono se não haverá aqui algum voyeurismo, dele e
nosso, como se as enfermidades da mente fossem expostas numa galeria de
monstros, uma nova e desprezível forma de teratologia. Mas, depois, há a escrita.
Maravilhosa. E a jóia de viver de Sacks, prodigiosa, contagiosa. E os casos contados, como o da filha de Michael Greenberg (recomendo
muito, apesar de não estar em português, o tremendo e perturbador, mas tão
belo, Hurry Down Sunshine / Até ao Amanhecer).
Além
de despejar ditirambos sobre este último (literalmente) livro de Sacks, há um
ponto que me interessa muito e que tem que ver com um dos capítulos, em que o
nosso Oliver questiona, e muitíssimo bem, o movimento de
«desinstitucionalização» que levou ao esvaziamento e abandono de centenas de
hospitais psiquiátricos em todo o mundo. Eles eram tenebrosos, as «instituições
totais» de que falava o grande Goffman, com guardas e cuidadores sádicos e ditadores,
regras bárbaras e tudo o mais. Convém, todavia, não generalizar a negro. É que,
como bem observa Sacks, ali também havia amparo e carinho, tratamento
medicamentoso a horas certas, terapia ocupacional (Sacks nota que foi uma
estupidez abolir o trabalho nesses hospitais a pretexto de ser uma «exploração»
dos pacientes, pois na maioria dos casos
esse trabalho era salvífico, redentor). Tenho pensado muito na convergência que
houve entre uma certa esquerda crítica da ditadura dos «asilos» e uma certa
direita neoliberal que, nos anos 80 da era Reagan e Thatcher, advogou a redução
dos custos do assistencialismo. A crítica da esquerda libertária serviu-lhe
como uma luva, e assim foram fechados muitos hospitais, largados nas ruas
milhares ou milhões de seres humanos, sem garantia de acompanhamento regular e
tratamento médico (e medicamentoso) imprescindível. Oliver Sacks fala em Geel, na Bélgica, uma cidade que desde a Idade Média acolhe
pessoas com problemas psíquicos. Ainda que haja alguns casos similares, a experiência
não parece replicável, é pena. E também ninguém sugere o regresso aos tempos do
Voando Sobre um Ninho de Cucos, ou o retorno dos hospitais-prisões. Mas seria
possível, e muito desejável, que entre o extremo da prisão de ferro e o extremo
do deus-dará nas ruas, se encontrassem formas equilibradas e sensatas de tratar
de um dos mais graves problemas do nosso tempo. E com tendência para
agravamento, por colateral efeito do aumento da esperança de vida.
Seria
importante fazer-se um debate sério e a sério desta questão da saúde mental (um
problema de saúde igualzinho a outros, sem tirar nem pôr). Não estivéssemos nós
tão embrenhados nas andanças do Bruno de Carvalho ou no golo de cabeça do
Ronaldo, esse debate era importante, fundamental. Mas duvido que ocorra, duvido
mesmo. E os «loucos» são os outros? Raios (e coriscos).
Jóia de viver--joie de vivre ? Alegria de viver?
ResponderEliminar