quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Antóno Araújo, o Liberalismo e eu (2).


 
 

Tendo recebido de António Araújo resposta ao meu último texto aqui publicado, e sendo já esse meu texto uma resposta à sua crónica no DN, venho pelo presente dar continuidade a este muito estimulante ping-pong digital, essa espécie de epistolografia que teve o seu momento de glória nos primeiros anos da blogosfera e que se encontra agora, infelizmente e talvez por culpa do Sr. Zuckerberg, moribunda.
Não é certo, porém, que tenha as competências necessárias para prolongar indefinidamente este debate, pelo que, perante eventual nova resposta daquele que é um dos literatos portugueses que mais admiro, talvez me limite a convidá-lo para jantar e a apresentar-lhe os meus argumentos diante de um copo de vinho e longe dos olhares de terceiros. Como reza aquela frase que toda a gente conhece e quase ninguém aplica, por vezes é melhor ficar calado e suspeitarem que somos uns tontos do que abrir a boca e acabar com todas as dúvidas.
Nos primeiros parágrafos que escreve, António Araújo, astuciosamente, desvia-se do ringue em que o quis colocar e convoca-me para um outro, bastante mais escorregadio para o tipo de calçado que uso neste momento. De qualquer forma, mesmo correndo o risco de me estatelar, aceito passar para o interior dessas cordas e discutir a problemática da coabitação neste blogue. Aqui vai: considero que o Chega não é flor que se cheire e tenho pena que a Cristina Miranda, com quem partilho este espaço, não tenha o olfacto afinado pelo mesmo diapasão com que temperei o meu. Posto isto, não acho que essa divergência constitua motivo suficiente para me afastar do Blasfémias e muito menos, obviamente, para pedir à Cristina que dê ela esse passo (da mesma forma que as afirmações do centrista Nuno Fernandes Thomaz sobre possíveis entendimentos do CDS com o Chega, uma opinião pessoal que António Araújo evoca no seu texto, não levaram a que ninguém, voluntariamente ou empurrado, batesse com a porta no Largo do Caldas). E também não acho que seja justo ler, como li no Malomil, que estou “ao lado do Chega”. Seria como se eu, “esticando” mais um pouco essa lógica, dissesse que o António, por partilhar a editora Tinta-da-China com o diplomata Franco Nogueira, ministro e biógrafo de Salazar, está ao lado do Estado Novo.
Claro que não vou dizer que seria normal, no Blasfémias, a publicação de um texto apologético de Estaline ou de Mao Zedong. Possível, era, pois ninguém tem de pedir autorização prévia para escrever o que lhe apetece, mas causaria manifesta estranheza dentro e fora de portas, aos colegas de blogue e a todos os que o lêem. Qual será então a diferença para o caso actual, o tal post da Cristina Miranda sobre o André Ventura? (E admito que haverá, de facto, alguma diferença, mesmo sabendo, como sei, que o António Araújo não foi o único a franzir o sobrolho perante as palavras da minha colega.)
A diferença, pelo menos em parte, está já identificada na resposta do António: ao contrário do que se passa em relação ao comunismo e ao fascismo “não diluídos”, nos quais ninguém, por mais imaginação que tenha, consegue desencantar pontos de contacto com o liberalismo, existem outras correntes, menos puras, que às vezes baralham a audiência. Não me refiro, naturalmente, aos diversos graus e nuances que podem (e devem!) coexistir no pensamento liberal, nem sequer ao célebre “conservadorismo liberal” que João Carlos Espada disseca, quase todas as semanas, no Observador. É certo que existem tensões nesse conceito, mas não me parecem irresolúveis (atenção: “conservadorismo liberal” é uma coisa, ter Abel Matos Santos e Adolfo Mesquita Nunes debaixo de um tecto comum que vale neste momento 4,22% dos votos é outra totalmente diferente – uma espécie de “iliberalismo liberal” muito mais difícil de gerir), e fico genuinamente contente com a diversidade e com as divergências: o liberalismo não deve ser rígido, sectário e dogmático, uma vez que a realidade é complexa e exige mais pragmatismo do que demonstrações de pureza ideológica.
Refiro-me, sim, a todas aquelas correntes que se dedicam a esquartejar o conceito de liberdade em pedaços, aproveitando os que consideram mais saborosos e deitando ao lixo os restantes, e que continuam a chamar “liberdade” aos sobreviventes do esquartejamento. E uma dessas correntes parece ser, sem dúvida, o Chega, existindo outras, à esquerda, que embora com uma escolha diferente dos pedaços a descartar, têm um comportamento semelhante.
Concordo, pois, com a essência deste texto que António Araújo publicou no Malomil, e se escolhi criticar o que escreveu no DN em vez de me dedicar ao Chega, isso deveu-se a ter ficado surpreendido com o seu conteúdo (que me diz directamente respeito e sobre o qual já reflecti longamente), a considerar que o autor merece que gaste tempo com ele, e a não me apetecer entrar em polémicas com um partido que procura avidamente as polémicas para se destacar e crescer. Respeito quem votou no Chega, compreendo muitas das preocupações e irritações dos eleitores do Chega, mas prefiro não falar demasiado do Chega, uma escolha que já está a correr mal dado o número de vezes que disse a palavra só nesta frase.
No entanto, em minha defesa, recorro a uma pequena recensão que publiquei no Observador em Maio deste ano e que recaiu sobre o livro Juntos, somos quase um 31. Liberais à solta! editado pela Alêtheia / Oficina da Liberdade. Nesse texto, apesar de ter elogiado a heterodoxia do volume, sublinhei o carácter controverso da inclusão de um capítulo dedicado ao programa económico de Paulo Guedes, ministro do Governo de Jair Bolsonaro. E se fiz esse sublinhado, foi precisamente por considerar que não basta estimular a liberdade económica para que um regime seja denominado liberal ou para que mereça elogios frontais ou velados. O caso de Hayek, que no meio de brilhantes contributos para a causa do liberalismo encontrou espaço para umas inacreditáveis afirmações sobre o Chile de Pinochet, devia ter servido de exemplo.
Na segunda parte da sua resposta, António Araújo, aproximando-se já do ringue escolhido por mim, aborda a problemática da difusão das ideias liberais em Portugal, começando por questionar a opção (julgo que atribuída à Iniciativa Liberal) de se querer começar por cima (“alcançar o centro do poder do Estado para a partir daí iniciar uma «revolução liberal»”) em vez de se começar por baixo, da sociedade para o Estado, através da formação de associações, publicação de livros, organização de seminários e conferências, etc. Não sou militante da IL, apenas simpatizante e eleitor, e por isso não sei se existe algum plano secreto para desencadear um golpe que coloque o João Cotrim de Figueiredo na posição de D. Pedro IV após o desembarque no Mindelo, quando este membro da Casa de Bragança sentiu necessidade de ameaçar os portugueses com um inopinado e infausto “Não me obriguem a libertar-vos!”. Até ver, não me parece que a eleição de um deputado signifique que a IL alcançou o “centro do poder do Estado” nem vislumbro qualquer sucesso numa eventual tentativa de iniciar uma “revolução liberal” a partir da cadeira solitária conquistada no Palácio de São Bento. Agora, se devidamente aproveitada, creio que a eleição de Cotrim de Figueiredo pode ajudar bastante no enraizamento da tal “cultura liberal” referida por António Araújo. Uma cultura que, definitivamente, não nasceu com a IL, e que contou, desde o 25 de Abril, com vários impulsos, dos quais vou destacar, sem pretensões de exaustividade, o Grupo de Ofir liderado por Francisco Lucas Pires, os textos que Pedro Arroja publicou na imprensa nas décadas de 80 e 90 (não desvalorizo as excentricidades e até um ou outro disparate, mas foi indiscutivelmente um “influencer” avant la lettre) e o surto de blogues liberais nascidos na primeira década do séc. XXI (não fiz parte desse surto, comecei a escrever no Blasfémias em Fevereiro de 2017, já a “grande festa” da blogosfera tinha acabado há muito).
Ao contrário de António Araújo – e ao contrário, também, de muitos liberais –, não menosprezo o que foi alcançado até hoje no campo da difusão de ideias. Concordo que o liberalismo ainda tem uma expressão pouco relevante em Portugal, mas não sei se, após décadas de uma ditadura antiliberal de direita (que só tinha como oposição organizada um partido antiliberal de esquerda) seguidas de mais uns longos anos em que só a liberdade política (e nunca a económica) podia ser defendida sem se ser insultado, era possível um cenário diferente. Os portugueses não são masoquistas, claro, mas são, como todos os outros povos, permeáveis ao discurso político dominante. E esse, tendo sido de direita até 74 e de esquerda depois, foi quase sempre, adaptando o conceito de Gramsci, hegemonicamente antiliberal. Como já lembrou neste blogue o actual presidente da IL, num congresso do PSD em 1995, ou seja, 6 anos depois da 2ª Revisão Constitucional, o congressista Luís Filipe Menezes não encontrou melhor do que “liberal” para baptizar pejorativamente os seus adversários internos. E a dimensão da vaia com que foi presenteado mostra bem o carácter insultuoso que se atribuía à palavra. Por isso, apesar da lentidão (que era, na minha opinião, inevitável), julgo que as ideias têm percorrido o seu caminho.
Na terceira parte da sua resposta, António Araújo entra, definitivamente, na questão que deu origem ao meu texto. Parece-me que este trecho vai ao encontro de algumas das coisas que eu disse, o que me deixa contente, sendo que eu também concordo com alguns dos novos argumentos trazidos à discussão.
O caso de António Filipe é interessante e estive para falar nele no meu post original. Ao contrário do que aconteceu com Ricardo Robles, esta polémica, relacionada com um dos mais experientes parlamentares do país, não “pegou”. Foi plantada, regada, podada e acarinhada e, mesmo assim, não deu frutos. E esse insucesso (insucesso para os opositores do PCP, claro) não se deveu à falta de ataques de António Filipe à família Mello/hospitais CUF; deveu-se, isso sim, à inteligência com que António Filipe (que sabe mais de política a dormir do que Ricardo Robles acordado) conduz as suas lutas, dirigidas contra a falta de investimento no SNS e contra as manobras de bastidores dos grupos privados ligados à saúde e não através de ataques aos utentes das clínicas e hospitais particulares, pois estes, humanos que são, limitam-se a tentar evitar os constrangimentos do sector público e a agir de acordo com os incentivos (palavra-chave importantíssima, essencial para se compreender o pensamento económico liberal) existentes. António Filipe só não se “tramou” porque não existia uma verdadeira contradição, tal como, acredito eu, ela não existe no caso dos liberais funcionários públicos. A não ser, claro, que esses liberais direccionem as suas críticas aos próprios funcionários, em vez de as direccionarem ao sistema político-económico que os enquadra.
Vasco Pulido Valente, que António Araújo chama aos seus textos, escreveu em 2006 o seguinte: “a sociedade portuguesa assenta numa «classe média de Estado», que não se tenciona suicidar por puro amor à consolidação financeira”. Também escreveu, nesse mesmo ano, um veemente e espirituoso “as classes médias nunca vão legislar contra os seus interesses. Estamos a pedir às putas que reformem o bordel”, com o qual não concordo, mas já lá vamos, depois de tratarmos do “suicídio”.
Exageros à parte, estaríamos perante uma situação desse género se eu decidisse, por uma questão de escrúpulo liberal obsessivo, despedir-me da função pública. A não ser que a causa do liberalismo precise de mártires, e não me parece que precise, qual é a vantagem, para o país, de eu sair num dia e ser substituído por outra pessoa no dia seguinte, mantendo-se todo o sistema exactamente igual? Coisa diferente seria uma reforma profunda que, apostando na liberalização do meu ramo de actividade (através de privatizações, ou de uma maior abertura ao mercado, ou de um aumento das parcerias com privados, etc.), me transformasse em trabalhador do sector privado. Eu estou disposto a apoiar essa reforma e, nesse caso, sendo português e acreditando que uma economia mais liberal melhorará a vida dos portugueses, o meu interesse próprio e o interesse geral do país estarão alinhados e em sintonia.
É por isso que não concordo com a frase em que VPV menciona os problemas da gestão estratégica de um prostíbulo. Se olharmos para a palavra “interesse” apenas numa lógica imediatista, a afirmação tem lógica. Mas o interesse, próprio ou geral, deve ser apreciado tendo em conta o curto, o médio e o longo prazo. Não estou a desprezar o dia de amanhã, pois ele inclui três refeições que me interessam e que terei de pagar, estou somente a dizer que não devo avaliar o meu interesse olhando unicamente para ele. O que o liberalismo precisa, pois, mais do que de D. Quixotes solitários a autoflagelarem-se pela causa, é de homens e mulheres que, acreditando nela, a tentem transmitir da melhor maneira, convencendo outros dos seus benefícios, para que esta possa reunir o apoio público e eleitoral necessário ao seu aprofundamento. E também precisa, naturalmente, de “tropas” no Estado, pessoas como Cotrim de Figueiredo e Mesquita Nunes, que, curiosamente no mesmo sector – o turismo –, trabalharam em prol da liberalização do país. Se, por exigência moral desproporcionada, estes dois liberais se tivessem recusado a “vencer mensalmente pelo Orçamento do Estado”, Portugal estaria hoje muito mais pobre, e o “bordel”, para voltarmos a Pulido Valente, estaria eventualmente a ser reformado, à força, por “putas” de fora, vindas directamente do Banco Central Europeu, da Comissão Europeia e do FMI.
 
(para o António Araújo, com um abraço amigo e votos de um bom feriado)
 
 
Sérgio Barreto Costa



 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

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