segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Une mort très douce.

 
 
 
 

          Era eu muito miúdo, uns doze anos ou assim, e num livro sobre a Renascença li uma frase que ficou gravada: todos vamos morrer; e, no entanto, vivemos como se fôssemos viver para sempre. A frase, de Guicciardini, não é bem essa, mas parecida, e só muitos anos depois, ao ler o grande livro de Pocock, soube quem era Francesco Guicciardini e que era companheiro de tertúlias de Maquiavel no grupo florentino dos Orti Oricellari, mesmo à beirinha de Santa Maria Novella, da farmácia afamadíssima.
          Vem isto a propósito do extraordinário Une mort très douce (1964), de Simone de Beauvoir, que ontem li. Há uma tradução portuguesa e boa, mas esgotada, li no francês o relato dos últimos dias da mãe de Beauvoir. Um cancro galopante. Frases poderosas: qu’on l’imagine céleste ou terrestre, l’imortalité, quand on tient à la vie, ne console pas de la mort.
          Françoise de Beauvoir viveu e morreu como se fosse viver para sempre. Na missa do funeral, Simone, uma ateia inabalável, sentiu um frémito de emoção e saudade quando o padre pronunciou o nome da sua mãe, o nome de alguém que em vida sempre permaneceu na penumbra, do marido e das filhas, e que só ali, antes de descer à terra, era lembrado em voz alta, perante uma plateia de amigos.
          Simone e a irmã, como era costume na época, esconderam a doença da sua mãe moribunda, dizendo que tinha uma peritonite, ocultando o tumor maligno. Como ela diz, se a doença se tivesse prolongado por dois ou três anos seria impossível a encenação piedosa. E, em casos galopantes como aquele, devemos mesmo ponderar se o melhor mesmo é nada dizer, deixar o doente partir na ilusão e em paz. Mas, no caso de Simone de Beauvoir, que com Sartre sempre exigiu a «verdade» e a «autenticidade» e a liberdade e o dever de nos confrontarmos com o nosso existencial destino, ter ocultado à sua mãe a natureza da doença é algo singular. Quase se pode dizer, sem receio de exagero, que Beauvoir contradisse toda a sua filosofia – e a sua filosofia de vida – quando teve de enfrentar a dureza da realidade. Em nome do amor, do amor filial, da compaixão pela sua mãe, não actuou, de forma alguma, de acordo com os princípios que proclamou ao longo de toda a vida – e retirou à sua mãe a liberdade e o direito de agir como entendesse. É curioso, este triunfo do amor sobre o pensamento. Quanto ao mais, um livro extraordinário.
 
 
 
 

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