Era eu muito miúdo, uns doze anos ou
assim, e num livro sobre a Renascença li uma frase que ficou gravada: todos vamos morrer; e, no entanto, vivemos
como se fôssemos viver para sempre. A frase, de Guicciardini, não é bem
essa, mas parecida, e só muitos anos depois, ao ler o grande livro de Pocock,
soube quem era Francesco Guicciardini e que era companheiro de tertúlias de Maquiavel no
grupo florentino dos Orti Oricellari, mesmo à beirinha de Santa Maria Novella, da
farmácia afamadíssima.
Vem isto a propósito do extraordinário
Une mort très douce (1964), de Simone de
Beauvoir, que ontem li. Há uma tradução portuguesa e boa, mas esgotada, li no
francês o relato dos últimos dias da mãe de Beauvoir. Um cancro galopante. Frases
poderosas: qu’on l’imagine céleste ou
terrestre, l’imortalité, quand on tient à la vie, ne console pas de la mort.
Françoise de Beauvoir viveu e morreu
como se fosse viver para sempre. Na missa do funeral, Simone, uma ateia
inabalável, sentiu um frémito de emoção e saudade quando o padre pronunciou o
nome da sua mãe, o nome de alguém que em vida sempre permaneceu na penumbra, do
marido e das filhas, e que só ali, antes de descer à terra, era lembrado em voz
alta, perante uma plateia de amigos.
Simone e a irmã, como era costume na
época, esconderam a doença da sua mãe moribunda, dizendo que tinha uma
peritonite, ocultando o tumor maligno. Como ela diz, se a doença se tivesse
prolongado por dois ou três anos seria impossível a encenação piedosa. E, em
casos galopantes como aquele, devemos mesmo ponderar se o melhor mesmo é nada
dizer, deixar o doente partir na ilusão e em paz. Mas, no caso de Simone de
Beauvoir, que com Sartre sempre exigiu a «verdade» e a «autenticidade» e a
liberdade e o dever de nos confrontarmos com o nosso existencial destino, ter
ocultado à sua mãe a natureza da doença é algo singular. Quase se pode dizer,
sem receio de exagero, que Beauvoir contradisse toda a sua filosofia – e a sua
filosofia de vida – quando teve de enfrentar a dureza da realidade. Em nome do
amor, do amor filial, da compaixão pela sua mãe, não actuou, de forma alguma,
de acordo com os princípios que proclamou ao longo de toda a vida – e retirou à
sua mãe a liberdade e o direito de agir como entendesse. É curioso, este
triunfo do amor sobre o pensamento. Quanto ao mais, um livro extraordinário.
não há mortes doces
ResponderEliminare de morte natural nunca ninguém morreu
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