domingo, 6 de outubro de 2019

Lembrando a Amália: os meus primeiros encontros com a Amália.

 
 
 

 
 
 
 

         Foi em 1970 ou 1971 que eu vi a Amália Rodrigues pessoalmente, pela primeira vez, tendo sido a ela apresentado pelo Dr. Adriano Seabra Veiga, médico e Cônsul Honorário de Portugal no estado de Connecticut, Estados Unidos, primo do marido da Amália, Eng. César Seabra, no final de um espectáculo que ela deu no salão paroquial da Igreja de Nossa Senhora de Fátima de Waterbury. Para alguém que, como eu, estava profundamente empenhado em disseminar a língua portuguesa e a cultura do mundo lusófono através dos Estados Unidos, na minha qualidade de professor de Português e Espanhol na Universidade de Connecticut, em Storrs, a actuação da Rainha do Fado revestia-se de tal relevância, que me lembro de haver convidado três professores e um aluno de pós-graduação da minha universidade, acompanhados todos eles das respectivas esposas, para tomar parte no banquete que precedeu o espectáculo e para ouvir cantar a fadista mais famosa e mais celebrada de Portugal. (Para que conste, aí vão os nomes dos meus colegas e do meu aluno de pós-graduação e das respectivas esposas: Gabriel e Tove Rosado; Felix e Lillian Freudmann; George e Jane Reinhardt; e Enrique Sacerio-Garí e esposa.) Desnecessário é dizer que para todos nós foi um encontro memorável e um espectáculo inesquecível: uma data albo signanda lapillo, como vaidosamente diria um humanista que se prezasse dos seus pergaminhos.  
         Voltei a encontrar a Amália em Fevereiro de 1979, por ocasião de uma tournée feita por ela, a fim de cantar mais uma vez para as comunidades luso-americanas, na costa leste dos Estados Unidos.
         Ciente da celebridade nacional e internacional de que ela justamente gozava, tendo cantado e continuando a cantar nas melhores salas de espectáculos do mundo, desde Paris a Tóquio, desde Roma ao Rio de Janeiro, desde Madrid a Nova Iorque, desde Londres à Cidade do México, intrigou-me o facto de ela estar a actuar novamente em modestos auditórios de escolas públicas americanas, sem as mínimas condições acústicas, como, por exemplo, aquele em que eu a ouvi cantar por essa ocasião: o auditório da Burns Elementary School da cidade de Hartford, capital do Estado de Connecticut, escola, por sinal, localizada numa das zonas mais degradadas da cidade, que era também aquela em que nesse tempo habitava a grande maioria dos luso-americanos e em que se situava a sua paróquia e o seu clube, respectivamente Igreja de Nossa Senhora de Fátima e Clube Português de Hartford, ainda ambos localizados na Babcock Street. E mais me intrigou ainda o saber que ela e a sua comitiva, constituída por quatro guitarristas e um secretário e mestre de cerimónias, se bem me recordo um luso-americano de magra formação académica e musical, estavam alojados num motel de terceira classe, localizado também ele num bairro delapidado de Hartford, ao lado do Brainard Airport (um modesto aeroporto regional).
         E foi por me sentir tão intrigado que perguntei à Amália, no final da actuação, em que, como de costume, foi justa e delirantemente ovacionada, por que é que ela aceitava cantar para as comunidades portuguesas emigradas, em salas de espectáculos de tão baixo nível e alojar-se em motéis dessa natureza. Sem qualquer hesitação, a grande diva limitou-se a responder que gostava tanto de Portugal, que queria que todos os portugueses, sobretudo os emigrantes dispersos por esse mundo fora, a pudessem ouvir cantar pessoalmente, pouco se importando com a modéstia das acomodações e com as condições precárias das salas de espectáculos.
         Foi com esta Amália, Rainha do Fado e sua embaixatriz, portuguesa de alma e coração, sempre fiel às suas raízes de filha do povo, orgulhosa da sua língua, da sua cultura e da sua Pátria, e apaixonada pelos portugueses da diáspora, que tive a dita e a honra de conviver pelos anos fora, sobretudo quando, por motivos de saúde, ou melhor dito, por falta dela, ela vinha procurar, através do primo do marido e grande amigo dela, aos Estados Unidos, especialistas que lhe detectassem e a tratassem das doenças com que os fados a mimoseavam de longe em longe, no outono da vida.
        Manchester, Connecticut, EUA
        6 de Outubro de 2019
 
                António Cirurgião
 
 
 

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