Na
sua recente viagem pela Europa central, em que centenas
de São Cristóvãos parecem ter-se reunido para saudar a sua passagem, o
nosso amigo José Liberato visitou o magnífico
Cenotáfio do Imperador Maximiliano I na Hofkirche de Innsbruck. Para os
apreciadores de arte que, como eu, ainda não conhecem este extraordinário
monumento, as fotografias que o nosso amigo aceitou partilhar com os leitores
do Malomil são um poderoso incentivo a uma próxima visita à capital do Tirol.
Além
do gosto pela arte, o que aqui nos traz a mostrar este dramático conjunto é, como
em ocasiões passadas, a memória de Portugal que ali se encontra. Antes
disso, um brevíssimo enquadramento.
Os
Habsburgo são vistos ainda hoje como a dinastia imperial por excelência. Antes
de serem ‘apenas’ imperadores da Áustria-Hungria, foram imperadores do
Sacro-Império Romano-Germânico durante mais de 350 anos, até ao desmembramento
desse império às mãos de Napoleão em 1806.
O Cenotáfio do Imperador Maximiliano I na Hofkirche de Innsbruck (Fotografia: José Liberato, Agosto 2019)
O
intrincadíssimo quadro dinástico e territorial da família e dos reinos e
domínios imperiais impede uma explicação resumida que seja, em simultâneo,
historicamente fiel. Para a nossa história será suficiente saber que os
Habsburgo inventaram em 1358 o título de “Arquiduque da Áustria”, forjando um documento
fundamental que lhes permitiu recuperar, em meados do século XV, o trono que
fora seu, de forma breve, no final do século XIII.
O
primeiro Habsburgo a ser coroado Rei dos Romanos (título que antecedia a
coroação como Imperador do Sacro-Império, feita necessariamente pelo Papa) fora
Rodolfo I, em 1273. Era então, Conde de Habsburgo, um nobre com uma importância
territorial significativa e com algumas alianças relevantes, mas ainda assim
‘um mero conde’ como os detractores da dinastia fariam questão de recordar aos
seus sucessores.
E
se as angústias de hoje são o número de likes
no facebook e no instagram ou de interacções no twitter, nas cortes do século
XV era a qualidade do sangue, medida em gerações de primogenitura, que guiava e
inquietava os espíritos. E os meios para que a rede social de ontem parecesse
melhor ou mais atraente não parecem ser muito diferentes dos que hoje se usam.
A Hofkirche de Innsbruck, construída
no reinado de Fernando I de Habsburgo para albergar o cenotáfio do Imperador Maximiliano
I mas alvo de posteriores remodelações (Fotografia: José Liberato, Agosto 2019)
Frederico
III de Habsburgo foi eleito em 1440 como Rei dos Romanos. Era o quarto
Habsburgo a consegui-lo mas não mais o título deixaria de corresponder à
sucessão familiar. É nas várias frentes da operação que Frederico e os seus
sucessores montaram para conseguir perpetuar-se à frente do império que se
enquadra a construção, muitas décadas depois, do majestoso cenotáfio de
Innsbruck, um dos mais importantes conjuntos de escultura do século XVI.
Frederico
viajou para Roma em 1452, 12 anos depois da sua eleição, para se casar e ser coroado.
A imperatriz escolhida foi a filha do Rei D. Duarte e irmã do então Rei D.
Afonso V, a Infanta D. Leonor de Portugal. O encontro entre o Imperador e a
Infanta teve lugar em Siena e está imortalizado
na Biblioteca Piccolomini do inigualável Duomo daquela cidade, assim como num vitral
da Igreja de São Lourenço de Nuremberga. O Papa casou-os e coroou-os depois
em Roma. A aliança matrimonial, além de um generoso dote, deu ao Imperador a
ligação a uma dinastia em ascensão, que haveria em breve de dominar o além-mar.
Desta
união nasceria Maximiliano I, que viria a reinar como imperador e que mudaria a
face da Europa pela sua política matrimonial – o seu filho seria
simultaneamente herdeiro das Casas de Habsburgo e de Borgonha e o seu neto herdaria,
além destas, as Casas de Trastâmara (Castela) e de Aragão. Além de garantir o
futuro da sua dinastia, Maximiliano procurou garantir que o passado dos
Habsburgo era digno do título imperial. Grande mecenas das artes, empreendeu
grandiosos projectos artísticos com vista à glorificação do seu reinado e da
sua família. Um dos mais impressionantes foi o
arco triunfal que encomendou a Dürer e a outros artistas e de que o António
Araújo nos falou há uns meses.
Pormenor
da genealogia dos Habsburgo no Arco Triunfal, mostrando em baixo Frederico III
de Habsburgo e Leonor de Portugal, e o filho do Imperador Maximiliano, Filipe o
Belo, Duque da Borgonha e Rei de Castela, ao centro, rodeado pelos seus
próprios filhos. O Imperador é representado na secção acima. (Arco di trionfo
di Massimiliano I, Bibl.
Naz. Braidense)
Melancólico,
soturno e obcecado com a morte, Maximiliano comissionou e orientou o desenho do
seu túmulo, que viria na realidade a ser um cenotáfio por se ter revelado
impraticável construí-lo na igreja onde acabaria por ser sepultado em 1519 – há
500 anos. Foi o seu neto Fernando I que ordenou a construção da Hofkirche com o
expresso propósito de receber o monumento. A construção do templo teve lugar
entre 1553 e 1563.
O
projecto de Maximiliano era de uma grandiosidade ímpar e requereu o
envolvimento de variadíssimos artistas, vários dos quais acabaram por ser
afastados pela falta de qualidade das suas produções. O imperador, com atenção
meticulosa aos pormenores, acompanhou de perto a concepção e execução do
projecto que concebeu como um grande cortejo fúnebre, que terminaria com o seu
túmulo. Abrindo o cortejo estariam os seus heróis e os seus antepassados, uns
segurando ceptros, outros segurando velas.
Uma
parte dos muitos elementos que compõem o cenotáfio foi executada ainda em vida
do Imperador, designadamente os painéis de mármore com cenas da vida de
Maximiliano esculpidas em baixo relevo e que ornamentam a arca tumular. A
inspiração foram os desenhos de Dürer para o Arco Triunfal.
Mas
é claramente a estatuária em bronze – executada em parte nos reinados dos seus
netos Carlos V e Fernando I – que impressiona e que marca a história da arte do
Renascimento. Pela qualidade, pela singularidade do conjunto e pela poderosa
mensagem que transmite, de glorificação dinástica. São 28 figuras, entre ascendentes,
descendentes e heróis – uma espécie de facebook da época para mostrar o que valia.
Em Innsbruck são
conhecidos como os “homens negros”, embora na ideia inicial do Imperador talvez
viessem a ser coloridas. Como veremos, o resultado ficou bastante aquém da
ideia inicial.
Da
visita guiada resultaram a José Liberato duas questões que procurámos
investigar. Primeira, o facto de junto a uma imagem identificada
pelo guia oficial como Isabel de Gorizia (mulher de Alberto I, o segundo
Habsburgo a ser eleito Rei dos Romanos) se encontrar o escudo das armas portuguesas
com a cruz de Avis. Segunda, o facto de uma misteriosa figura, o único dos
homens que não tem cara mas armadura com elmo fechado, estar identificado como
o Rei D. Fernando I de Portugal – que nem sequer era antepassado do Imperador –
ou o Rei D. João I (bisavô do Imperador), apesar de nem a inscrição na base da
estátua nem o escudo de armas terem algo que ver com Portugal.
O escudo de armas de Portugal com a
cruz de Avis, junto a uma das estátuas da Hofkirche (Fotografia: José Liberato,
Agosto 2019)
Para
adensar o mistério, numa fotografia do século XIX o escudo com as armas portuguesas
aparece junto à estátua de Maria de Borgonha (primeira mulher do Imperador), ao
lado da que actualmente o ostenta. Por sua vez, nessa mesma fotografia o escudo
com as armas da Casa de Borgonha (que poderia corresponder a Maria de Borgonha
e está hoje junto à estátua do seu avô, Filipe, o Bom) está junto a uma
terceira estátua. Donde retiramos, pelo menos, que os escudos mudaram de sítio
ao longo dos tempos.
Nos
postais da mesma época, nunca a identificação fernandina é tentada para a
exótica figura com elmo fechado, sendo referida apenas a inscrição que consta
na base.
As
listas recentes que dão nome às estátuas são relativamente unânimes. Mas estarão
certas? Ou estarão, pelo contrário, a contribuir para alterar a história que
Maximiliano I quis contar?
Se
recuarmos aos guias ‘turísticos’ do século XIX, veremos que a dama hoje
identificada como Isabel de Gorizia é identificada como sendo a mãe do Imperador,
D. Leonor de Portugal (como suspeitou José Liberato). Ao lado está Maria de Borgonha –
que durante algum tempo terá ostentado as armas portuguesas.
Assim,
no livro Handbuch
für reisende in Deutschland, de 1859, lá aparece, entre Maria de Borgonha (primeira
mulher do imperador) e Cunegunda (irmã do imperador), Leonor, mãe do imperador.
Mais, no livro Denkmähler
der Kunst und des Alterthums in der Kirche zum heiligen Kreuz zu Innsbruck,
de 1812, aparece identificada Leonor de Portugal como número IV., entre as
mesmas senhoras. Também no referido postal do século XIX em que os escudos
estão trocados, a senhora é identificada como a mãe do imperador.
Se
considerarmos a identificação como Leonor de Portugal, com excepção de Isabel
do Luxemburgo, mulher do Imperador Alberto II (ela própria detentora de
direitos dinásticos relevantes), todas as figuras femininas representadas são
parentes próximas do Imperador Maximiliano – a exótica avó Cymburgis, duas
das suas mulheres, a primeira, Maria de Borgonha, e a terceira, Bianca
Maria Sforza (o segundo casamento do Imperador foi anulado), a filha
Margarida com direito a uma belíssima estátua, a irmã Cunegunda da
Baviera e a nora Joana de Castela, a Louca.
Como
terá surgido a identificação como “Isabel de Gorizia”, já no século XX,
retirando a mãe do Imperador painel de ilustres? Sabemos que o plano original
de Maximiliano para o seu cortejo fúnebre previa 40 estátuas, mais do que as 28
que estão na Hofkirche. Muito embora haja divergências entre as fontes quanto
às estátuas que eram pretendidas pelo emperador, sabemos de fonte segura que
entre elas estava a de Isabel de Gorizia (ou de Caríntia e Gorizia-Tirol).
Isabel
está entre as 39 figuras pintadas no extraordinário pergaminho “Die Ahnen
Kaiser Maximilians I.” (Os Antepassados
de Maximiliano I), de 1512, do ilustrador Jörg Kölderer. A maioria das personagens
está representada nas estátuas e várias delas com semelhanças estilísticas com
o resultado final no cenotáfio. Não é, contudo, o caso do desenho de Isabel de
Gorizia, que é muito diferente da estátua hoje identificada como ela. Também lá
está Leonor de Portugal, mas também neste caso não há correspondência de estilo
com a estátua.
Pelo
contrário, no álbum de desenhos do mesmo Jörg Kölderer que é posterior (1522-1523)
e que representa com bastante maior fidelidade as estátuas que estavam já
concluídas ou que vieram a ser executadas, o problema é o inverso, com
semelhanças estilísticas entre os desenhos de Leonor de Portugal e de Isabel de
Gorizia, mas com vantagem da tirolesa.
De
facto, nestes desenhos de Kölderer quer uma, quer outra aparecem coroadas (uma
como Imperatriz, outra como Rainha dos Romanos), o que não acontece com a
estátua na Hofkirche. Ambas ostentam um livro na mão esquerda, que a estátua
tem. E ambas tem o mesmo estilo de vestido, com mangas largas, semelhante ao
que enverga a estátua. E é precisamente nos pormenores do vestido que a
tirolesa desenhada ganha vantagem, assim como na posição corporal e nas longas
tranças.
Desenhos de Leonor de Portugal e de
Isabel de Gorizia no Austriacae gentis imaginum, de 1569, data posterior à
conclusão de todas as estátuas que se encontram na Hofkirche. (Austriacae
gentis imaginum, 1569, Rijksmuseum)
Uma
outra gravura, no Austriacae gentis
imaginum, da segunda metade do século XVI (1569), reforça esta ideia, ao
reproduzir a estátua com enorme semelhança: Isabel de Gorizia aparece
representada tal qual a estátua (embora, um vez mais, coroada), enquanto Leonor
de Portugal surge com uma representação que parece resultar mais do desenho
atribuído a Hans Burgkmair do que propriamente do desenho de Kölderer.
Mistério,
portanto, resolvido? Talvez não.
Não
podem restar dúvidas de que se pretendia que aquela estátua, ao ser executada,
representasse Isabel de Gorizia. Contudo, nem todas as 30 estátuas desenhadas
por Kölderer vieram a figurar na Hofkirche. Sabemos, de resto, que várias
foram rejeitadas pela fraca qualidade da execução. Quais? As de Leonor de
Portugal, de Teoberto da Borgonha e de Ladislau da Hungria. Estas complicações
no projecto, que se arrastaram em vida de Maximiliano e mais ainda depois da
sua morte, podem aliás ser a causa da mudança dos nomes das estátuas e da
confusão da sua identificação.
Vejamos,
a propósito, o que pode ter acontecido com a figura sem rosto identificada hoje
como o Rei D. Fernando ou, em alternativa mais plausível, o Rei D. João I.
A
imagem
é tão excêntrica que poderia indicar uma figura algo mítica – tal como o
vizinho Rei Artur. A inscrição que tem por baixo diz-nos que seria um tal
Teoberto, Rei da Provença, Duque da Borgonha e Conde de Habsburgo. Assim o
identifica o site da Royal Collection Trust britânica (que faz referência
ao facto de actualmente a figura ser identificada como o nosso Rei D. Fernando).
Problema? É uma personagem que, com estes títulos, não existiu. Existiram
vários Teobertos, vários deles reis dos vários reinos francos, mas não um Duque
da Borgonha e muito menos Rei da Provença.
Foi,
de acordo com o guia oficial e outras fontes, a primeira estátua a ser
executada, em 1509. Mas como se identifica uma figura com uma inscrição clara que
diz que é Teoberto e um escudo obscuro sem ligação a Portugal com o Rei D.
Fernando ou o seu irmão, o Rei D. João?
A
tentação – em que naturalmente incorremos – é dizer que é um engano. Mas é
demasiado óbvio para passar despercebido. Vejamos, em primeiro lugar, quem
seria este Teoberto.
Maximiliano
I não se angustiava apenas com a morte. Outra das suas preocupações era a da
legitimação da sua dinastia. Não queria apenas ser imperador – queria que o seu
direito a ser imperador fosse inquestionável. Pôs, por isso, vários
genealogistas a encontrar aquilo que fazia falta para esse objectivo: uma
ascendência digna de imperador, que o colocasse como o herdeiro do Rei Clóvis,
com a carga simbólica que isso comportava. Não ‘um herdeiro’, mas ‘o verdadeiro
herdeiro’ dos reis merovíngios, numa linha de primogenitura sem quebras.
A
ascendência
fabricada dos Habsburgo está vertida no corpo central do Arco Triunfal e
foi alvo de contestação logo na época, com correcções feitas para atenuar as
críticas. Foi também objecto dos mais variados estudos e ilustrações, entre os
quais o Genealogia Maximiliani
I. caesaris, de Hans Burgkmair. No essencial, foi na sucessão do Rei Clóvis
que o Imperador Maximiliano quis fixar a sua ascendência – Clóvis tem direito a
uma das estátuas de bronze na Hofkirche. Coroado e com o escudo das flores de
lis próprio dos reis dos francos, Clóvis é a primeira personagem da árvore dos
Habsburgo no Arco Triunfal. Seguem-se três outras personagens com armas de
flores de lis, com o pormenor de que 2 estão coroadas e a quarta não está
coroada.
Parte central do Arco Triunfal, com a
genealogia dos Habsburgo (Arco di
trionfo di Massimiliano I, Bibl.
Naz. Braidense)
Pormenor da genealogia dos Habsburgo
no Arco Triunfal (Arco di trionfo di
Massimiliano I, Bibl.
Naz. Braidense)
Temos,
pois, da direita para a esquerda os Reis Clóvis, Clotário e Chilperico (ou
Quilperico) e o primeiro filho deste, que não reinou, e
se chamava Thibert ou Teoberto. Morreu em batalha. E é nessa sucessão
altamente incerta mas possível – porque nada impede que Teoberto tenha tido
tenha tido filhos, incluindo um tal Otoberto, figura criada pelos genealogistas
do imperador para entroncar, uma gerações mais tarde, com os condes de Nordgau,
de quem efectivamente descendem os Habsburgo – que se parece basear a teoria da
linhagem ininterrupta que fazia dos Habsburgo os legítimos herdeiros do trono
imperial. Maximiliano
encomendou inclusivamente a Dürer uma representação deste Otoberto, figura
que representava a sua herança merovíngia.
Voltemos
aos desenhos de Kölderer, para tentar solucionar as diferentes questões: é D.
Fernando? É D. João I? Ou é Teoberto?
No
Pergaminho de 1512 – posterior, recorde-se, à conclusão da estátua – está representado
o Rei. D. João I de Portugal, bisavô do Imperador. A armadura que ostenta tem
semelhanças evidentes com a da estátua, embora o exemplar na Hofkirche falhe
nos pormenores que, no desenho, remetem para Portugal: os castelos. Além disso,
o D. João I que ali está representado tem o elmo aberto e tem a cara desenhada.
Já
no álbum de 1522-23, a estátua é representada com total fidelidade mas aparece
surpreendentemente descrita como “Rei Fernando de Portugal. Antepassado do
Imperador Maximiliano”. Aos seus pés, está desenhado o escudo com as armas de
Portugal e a cruz de Avis, que naturalmente D. Fernando não usava. Ora, o Rei
D. Fernando não era antepassado do Imperador e não era um rei de boa memória.
Que motivo haveria para o incluir ali? Nenhum se nos afigura como credível.
Mas
há mais um pormenor muito curioso neste desenho da estátua: o papel onde está
aposta a inscrição “Rei Fernando de Portugal. Antepassado do Imperador
Maximiliano” em duas partes (uma a cada lado do elmo) é uma adulteração do papel
original, como um remendo ou um restauro, o que não acontece em nenhum dos
outros desenhos no álbum. Além disso, no canto superior direito está uma
curiosa inscrição, com duas abreviaturas que não conseguimos decifrar e o nome
“Eduardus”. Eduardus é tradução para latim de Duarte.
Esta
referência a “Eduardus” nesta inscrição no remendo – seja ela uma emenda ao que
está actualmente escrito, seja, como acreditamos mais provável, uma referência
ao que estava originalmente inscrito – traz para a nossa já longa e complexa
história uma outra possibilidade, mais plausível do que a fernandina, que é a
de uma escolha bastante mais óbvia para figurar entre os antepassados do
Imperador: o Rei D. Duarte I de Portugal. Pai da Imperatriz Leonor, era o único
dos avôs de Maximiliano que era rei (o outro avô, Ernesto da Áustria, está
entre as figuras da Hofkirche). Seria portanto natural que o Imperador quisesse
que o seu régio avô figurasse no cortejo que idealizou.
Dito
isto, salvo esta emenda e uma dedução lógica, nada mais há que nos indique no
sentido de se tratar do Rei D. Duarte. Mas permite-nos ter mais convicção de
que a referência ao Rei D. Fernando – que é a mais comummente citada hoje na
identificação da estátua – foi fruto de um erro de identificação, num momento
posterior à morte do Imperador, mas também posterior à feitura da estátua e da
ilustração no álbum de Kölderer.
Ficamos,
pois, com a hipótese joanina como a mais forte. Esta é reforçada pela presença
de D. João I não apenas no estudo original de Kölderer em 1512, mas também em outras
obras de arte encomendadas pelo Imperador Maximiliano, como o Cortejo Triunfal.
Pormenor de um dos painéis do Cortejo
Triunfal do Imperador Maximiliano, mostrando uma das carruagens dos
antepassados (feito a partir de xilogravura). Ao centro, o Rei D. João I de
Portugal. (Triumphzug Kaiser Maximilians I. Österreichische
Nationalbibliothek)
Fica,
contudo, uma questão essencial por resolver, inversa à da estátua de Leonor de
Portugal/Isabel de Gorizia: como é que uma estátua pensada para ser um rei
português acaba associada a um escudo de armas totalmente distinto e com uma
inscrição que diz que se trata de Teoberto de Borgonha?
Como
já referimos, sabemos que a estátua de Teoberto foi uma das produzidas e
rejeitadas pela sua fraca qualidade. Sabemos igualmente que Teoberto não estava
entre os antepassados desenhados inicialmente por Kölderer, mas já constava no
álbum de 28 desenhos, precisamente com o escudo de armas que surge aos pés da
estátua pensada para ser o rei português.
Embora
estejamos no domínio da conjectura, há alguns dados que nos permitem ter pistas
sobre o que poderá ter acontecido no longo processo que mediou entre a
concepção do projecto pelo Imperador Maximiliano e a sua efectiva instalação,
muitas décadas depois, na Hofkirche de Innsbruck. E, embora móveis, os escudos
de armas são um bom guia para tentar desatar este nó.
O
escudo português que a estátua de Isabel de Gorizia ostenta foi, quase de
certeza, o escudo feito para adornar a estátua de D. João I. Que esteja ali junto
à estátua da senhora pode não ser fruto de um erro. Isto porque, por outro
lado, o escudo de Teoberto é único – precisamente por ser fictício. Ou seja,
não podia ser aproveitado para nenhuma outra figura. Mas podia ser aproveitado
para outra estátua. No momento da instalação das estátuas, parece ter sido
decidido renomear a estátua pensada para ser o rei português mas que não tinha
qualquer elemento distintivo, tendo-lhe sido atribuída o escudo de Teoberto de
Borgonha e a inscrição que atesta essa intenção. E a partir daquela decisão e
para os séculos vindouros, aquela estátua foi a de Teoberto – até há muito
pouco tempo.
Ora,
se o escudo de Portugal foi colocado junto a outra estátua, não podemos devemos
retirar daí também uma intenção? No elenco da Hofkirche, reduzido em relação ao
plano original de Maximiliano, faltava uma pessoa essencial – a sua mãe, Leonor
de Portugal. E as semelhanças estilísticas entre as duas estátuas podem ter
levado o Imperador Fernando e quem orientou a instalação do cenotáfio a
renomear também aquela estátua. A inventariação da estátua como representando a
mãe do imperador, em diversas fontes e em diversos momentos, parece corroborar este
entendimento.
É
verdade que o escudo pensado para Leonor de Portugal não era aquele. No
pergaminho e no álbum de Kölderer, as armas de Leonor de Portugal, de Maria de
Borgonha e de Bianca Maria Sforza são partidas, com as armas imperiais a um
lado e as armas pessoais de cada uma delas ao outro. Esse escudo partido não
chegou à Hofkirche, provavelmente porque havia já um escudo de Portugal
disponível, além de que a “nova” imperatriz não seria representada como tal,
coroada, mas como Infanta de Portugal.
São,
no essencial, hipóteses e suposições. Porventura poderão ser esclarecidas com
acesso a documentação sobre as encomendas e as diferentes fases de concepção e
instalação do cenotáfio. O que parece pouco óbvio é que o guia oficial se
limite a identificar estátuas em clara contradição com as armas que lhes estão
atribuídas, obliterando a história que durante 400 anos aquelas estátuas
contaram. Seja como for, na forma de uma estátua que foi e deixou de ser ou de
outra que não era e se converteu, a memória de Portugal está presente nesta
gesta imperial que Maximiliano I, preocupado em imortalizar a glória do seu
tempo e do seu nome, quis deixar aos vindouros.
Ademar
Vala Marques
Parabéns a José Liberato pelas fotos e Ademar Vila Marques pelo texto. Embora o meu gosto esteja mais voltado para a arte, foi interessante verificar, como as fotos de São Cristóvão, desencadearam esta bela narrativa histórica.
ResponderEliminarParabéns pelo excelente arrazoado sobre fontes iconográficas fundamentais, que prima pela clareza, objectividade e não abre mão de análise e proposição de hipóteses, sempre muito pertinentes. Muito obrigado!
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