VISITAS AO INSTITUTE OF ART DE CHICAGO EM COMPANHIA DE
JORGE DE SENA
Durante os meus cursos de Verão na Universidade de
Wisconsin, em Madison, por mais de uma vez, por sugestão de Jorge de Sena,
fomos a D. Mécia, a Júlia, o Jorge de Sena e eu visitar o Institute of Art de
Chicago. Íamos no meu Impala novo, de oito cilindros, e era eu quem guiava. A
distância entre Madison e Chicago, em Illinois, era (e é) umas noventa milhas,
se bem me recordo.
Ainda era no tempo em que a velocidade máxima nas
autoestradas do Midoeste e Oeste dos Estados Unidos era 75 milhas por hora.
Ora, como o carro era potente, eu, tirando partido da proverbial tolerância de
10 milhas, não hesitava em ir a 85 milhas à hora. Porém, depressa me dei conta
de que Jorge de Sena, vítima de um grave acidente de viação, durante a sua
estadia no Brasil, de forma alguma gostava de excessos de velocidade. Pelo
contrário: ao verificar, por meio da consulta ao conta-quilómetros, que eu
estava a desobedecer ao limite de velocidade estatuído por lei, o antigo alto
funcionário da Junta Autónoma das Estradas de Portugal chamava-me imediatamente
a atenção, pedindo-me para abrandar, acrescentando às vezes, em tom meio jocoso
e meio sério, que ainda éramos demasiado jovens para morrer e que ele fazia
falta a Portugal e Portugal precisava dele.
Nesta ordem de ideias, jamais poderei
esquecer o conselho que ele deu à Júlia, minha ex-esposa, quando tomou
conhecimento da rapidez com que eu tinha percorrido, no dito Chevrolet Impala,
com minha mãe a meu lado, as duas mil e duzentas milhas que separam Madison,
Wisconsin, de Reno, Nevada, em cuja universidade eu então ensinava Espanhol,
Francês e Latim.
Foi assim. Nascido o Anthony, nosso filho, em Madison,
no dia 11 de Agosto, facilmente concluímos que seria uma grande imprudência pôr
a mãe e o bebé a fazer de carro uma viagem tão longa, menos de duas semanas
após o nascimento da criança. De maneira que a solução que tomámos foi a
seguinte: minha mãe e eu íamos de carro para Reno, enquanto a Júlia e o bebé
ficavam hospedados em casa da família Sena e iriam depois juntar-se a nós de avião,
uns quatro dias mais tarde. Tendo tomado a atitude de sempre (que era a de
andar a velocidade de contra-relógio, dentro dos limites legais, naturalmente),
fizemos essa viagem em tempo record.
Transposta a porta da casa de Reno, peguei do telefone
e telefonei para casa dos Senas em Madison a fim de participar à Júlia que
tínhamos acabado de chegar ao destino, sãos e salvos. Jorge de Sena a ouvir a
notícia e a dizer à Júlia:
- Ó minha senhora, se quer um conselho amigo,
divorcie-se deste homem, antes que se matem numa viagem de automóvel.
Comentado mais tarde este facto, minha mãe
fazia sempre a seguinte observação:
- A mim bem me parecia que íamos a uma velocidade
demasiado alta. Mas, ao olhar para o conta-quilómetros, notava que o Fernando
(era o meu irmão com quem minha mãe vivia há diversos anos em Portugal), ainda
costumava andar a velocidades mais altas. Mas, ao tomar conhecimento da
equivalência entre quilómetros e milhas, minha mãe rematava a história com uma
admonição e com um sorriso...maternal.
Voltando às visitas ao
Institute of Art de Chicago, um dos grandes museus do mundo, devo dizer que não
havia guia de museu que pudesse comparar-se a Jorge de Sena. Sabendo de antemão
o que de mais relevante existia nos museus, antes de pôr os pés neles, e
sabendo também que era humanamente impossível ver tudo, Jorge de Sena
dirigia-se imediatamente à sala que continha os quadros que valia a pena ver,
segundo ele, grande conhecedor e apreciador de arte, de que a sua obra
Metamorfoses é um dos testemunhos mais eloquentes. Melhor dito: era obrigatório
ver e admirar. Vistos esses quadros, passava para outros, atravessando por
vezes mais de uma sala em claro. E se porventura os que o acompanhávamos nos
púnhamos a ver um quadro que não preenchia os requisitos estéticos dele,
dizia-nos:
- Passemos adiante, pois, de outra maneira, não
teremos tempo para ver o que verdadeiramente importa ver.
A respeito de museus, não posso
esquecer-me do comentário que uma vez Jorge de Sena fez quando eu lhe disse
que, a julgar pelo que me era dado concluir, como resultado das minhas diversas
e longas viagens de carro através dos Estados Unidos, que todas as cidades e
vilas americanas se pareciam umas com as outras, sobretudo as do Midoeste, como
se de fotocópias se tratasse: tinham todas uma Main Street e nessa Main Street
havia um Sears Reobuck, um Seven & Eleven, um Friendly’s Restaurant, um
Mcdonal’s, um Woolsworths, um First National Bank a condizer com a respectiva
vila ou cidade, etc. e tal.
– Pois é, Cirurgião. Mas há uma coisa que as distingue
a todas. Sabe o que é? E respondia logo ele, sem esperar pela resposta: são os
museus.
Conclusão: Jorge de Sena, homem
enciclopédico por natureza, de uma curiosidade intelectual elevada à última
potência, sabia tudo por tudo ler e tudo intuir. Levar-lhe novidades, fosse em
que campo fosse da cultura, era quase impossível, como eu pude verificar muitas
vezes. Antes de se falar em mecânicas de leitura (ou métodos para aumentar a
rapidez da leitura), já Jorge de Sena as dominava por instinto.
Neste aspecto da rapidez vertiginosa com que ele
devorava livros, a imagem que me salta à mente e à vista, quando penso nisso, e
o revejo mentalmente, é aquela em que Óscar Wilde, no filme Wilde, está sentado numa cadeira de
balanço, junto de uma janela, a ler um livro. Segura o livro com a mão esquerda
e, se não me engano, vai voltando as páginas com o indicador da mão direita. Ao
notar a velocidade extraordinária com que volta as páginas do livro, a esposa
diz-lhe que ele não está a ler. Resposta de Óscar Wilde:
- Try me (experimenta).
Esta seria a resposta que Jorge de Sena poderia dar a
quem quer que lhe fizesse uma observação semelhante, uma vez que ele fazia o
mesmo. E eu sei do que estou a falar porque o vi muitas vezes sentado em cadeira
idêntica àquela em que se sentava Óscar Wilde e lendo de maneira idêntica
àquela em que lia o autor de Picture of
Dorian Gray. E, nesta ordem de ideias, ocorre-me agora perguntar se não
seria para facilitar o voltar rápido das páginas dos livros que devorava que
Jorge de Sena fazia questão de ter sempre compridas as unhas dos dedos das
mãos.
A respeito da quase impossibilidades de levar
novidades a Jorge de Sena, no mundo da cultura, lembro-me de uma vez lhe ter
dito que, ao reler, no dia anterior, as redondilhas de Camões Sobre os rios que
vão (Jorge de Sena fazia questão de não permitir aos seus alunos que dissessem
Sôbolos rios que vão), notara que o número de versos dessa extraordinária
poesia era 365, tantos quantos são os dias do ano.
Julgando que, tal como me acontecera noutras ocasiões,
isso não era novidade nenhuma para ele, obtenho de Jorge de Sena este
comentário:
- Interessante! Eu que li várias vezes esse poema, a
ponto de ter publicado um conto sobre ele e o salmo que Camões parafraseou, nunca
tinha reparado nesse importantíssimo pormenor. Aconselho o Cirurgião a escrever
imediatamente uma nota sobre esse achado e publicá-la no Diário de Notícias (de
Lisboa), antes que alguém venha a fazer essa descoberta e a aproveitar-se dela.
E eu não acatei o conselho de Jorge de Sena. Mas vim a
saber, alguns anos mais tarde, que de facto alguém veio a “fazer essa
descoberta e a aproveitar-se dela”. Fora o meu futuro amigo Vasco Graça Moura,
que viria a fazer dessa poesia de 365 versos o ponto fulcral do seu excelente
estudo camoniano - Camões e a Divina
Proporção -, publicado em 1985 pela IN/CM, de que o autor era
competentíssimo administrador: obra com que teve a bondade de me
presentear.
António Cirurgião
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