quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Para um diálogo com um liberal (1).

 





          Tendo Sérgio Barreto Costa publicado no blogue Blasfémias um texto crítico de um escrito meu no Diário de Notícias, e tendo ele a gentileza de me enviar o respectivo link, acedi de imediato a divulgar também esse seu texto no Malomil, pela oportunidade que me dá de estabelecer um diálogo frutuoso e intelectualmente estimulante com uma pessoa que muito prezo.
          Irei fazer alguns comentários esparsos, sem preocupações de sistematização, e o Sérgio Barreto Costa, querendo, poderá responder aqui no Malomil.
 * * *
A primeira questão que coloco a um liberal como Sérgio Barreto Costa – e não tenho razões nenhumas para duvidar do seu genuíno liberalismo – é perguntar-lhe o que é que faz num blogue que publica textos, como o subscrito por Cristina Miranda, que defendem o Chega, e dizem que o seu líder
 
 
E, sobre a entrada do Chega no Parlamento, diz-se nesse texto do Blasfémias que isso
 
 
          Dir-me-á, meu caro Sérgio, que o Blasfémias é um blogue plural e que o que cada um escreve num blogue colectivo fica com o que cada um escreve, não comprometendo os outros. Será mesmo assim? Seria possível, por exemplo, publicar no Blasfémias um texto apologético de José Estaline, do camarada Mao Zedong ou do engenheiro-domingueiro Pinto de Sousa? Muito provavelmente, não. Mas publicar um texto laudatório do Chega já é possível. Porquê?   
          Dir-me-á que isso se deve ao facto de o Blasfémias se inscrever, regra geral, num espaço situado à direita do Partido Socialista, naquilo que poderíamos designar por «centro-direita» ou, mais redutoramente, por «direita». E, por isso, tudo o que se inscreva nesse espaço é passível de publicação no Blasfémias, mesmo textos laudatórios do Chega e do seu líder. Significa isto, então, que o Blasfémias não é, afinal, um blogue inteiramente plural ou um blogue heterogéneo a 100 %. É um blogue de pluralismo limitado quanto ao posicionamento ideológico dos seus membros, pertencentes esmagadoramente a um espaço situado à direita ou ao centro-direita do espectro político.  
          Aqui começam os problemas. É que, olhando para o programa do partido da sua preferência, o Iniciativa Liberal, em matéria de sociedade e costumes, vejo muito mais afinidades com o Livre do que com o Chega. Em matéria de eutanásia, por exemplo, que creio ser decisiva a muitos e muitos níveis (entre os quais a definição do posicionamento ideológico de cada qual ou das suas convicções éticas), em matéria de eutanásia, dizia, o Iniciativa Liberal defende que «eutanásia é uma questão de cidadania e deve ser regulamentada. A criminalização da eutanásia é inaceitável.» Já o líder do Chega, no extremo oposto, vai ao ponto de propor a proibição constitucional da eutanásia. Outro exemplo: o programa político do Iniciativa Liberal não fala sequer do casamento homossexual, dando-o, creio eu, por adquirido e pacífico. Em gritante contraste, André Ventura advoga a «proibição do casamento gay».
          Dir-me-á, estimado Sérgio, que esses são apenas alguns pontos de divergência, mas que existem inúmeros pontos de convergência com o Chega, cujo programa em matéria económica é bastante «liberal». Simplesmente, essa é uma incoerência clamorosa do programa do Chega, como creio que concordará comigo, porquanto a matriz e todo o ideário dessa força política não só não são liberais como são até profundamente antiliberais. E a marca essencial do Chega, o seu traço distintivo, o seu código genético não é o liberalismo económico, como penso que também concordará comigo.
          Há quem fale na necessidade de o espaço da direita ou centro-direita se repensar e quem afirme que nesse esforço ninguém deve ser excluído, mesmo o Chega de André Ventura. Não sei se é essa a sua opinião, mas recomendo-lhe a leitura de Beyond Left and Right, de Anthony Giddens, traduzido entre nós com o título Para Além da Esquerda e da Direita. Numa análise que nem sequer é pioneira ou particularmente original, Anthony Giddens observa que, no pólo da direita, existe uma tensão profunda entre conservadorismo e liberalismo, sendo difícil, ou mesmo impossível, construir um programa político conservador em matéria de costumes e, por outro lado, um programa liberal em matéria económica. Porquê? Porque os fundamentos avançados para o liberalismo na esfera económica – o valor da autonomia e da liberdade individual – são, ao cabo e ao resto, os mesmos que são usados para defender o liberalismo na esfera política ou «de sociedade». Se consideramos que cada indivíduo deve ser livre para criar a sua empresa e para gerir a sua vida profissional, sem interferências alheias, essa autonomia tem também de projectar-se em todos os demais aspectos da sua existência: liberdade para casar ou não casar, liberdade para casar com quem se quiser, homem ou mulher, liberdade para decidir sobre o final da vida (haverá decisão mais radicalmente pessoal do que essa?). Não quero com isto afirmar que um liberal em matéria económica tem necessariamente de defender o casamento homossexual ou a eutanásia; o que quero dizer é que não me parece muito «liberal» inscrever na Constituição da República a proibição da eutanásia ou do casamento gay. De resto, não é por acaso que os grandes libertários de direita como Robert Nozick são radicais em tudo, desde a iniciativa económica ao aborto ou à eutanásia. Por isso mesmo, o programa do Chega não tem a mesma coerência interna do programa do Iniciativa Liberal, como julgo que concordará comigo.
          Faço-lhe ainda notar que o livro de Anthony Giddens é de 1994. Muito anterior, portanto, à vaga do populismo de direita radical dos nossos dias. Quer dizer, se anteriormente, nos anos 90, existia uma tensão entre conservadorismo e liberalismo clássicos, a tensão é ainda maior, muito maior, entre direita radical e ideologia liberal. Se a direita radical conseguisse pôr em prática o seu programa, muito do que é o património ideológico do liberalismo seria posto em causa: garantias individuais, iniciativa económica privada, liberdade de expressão e de imprensa, etc., etc. Há exemplos contemporâneos – e na Europa – que o demonstram, como há exemplos históricos dos anos 1920 e 1930 que o demonstram. Actualmente, a maior ameaça ao liberalismo não é o conservadorismo, é a direita populista radical – e se um liberal não percebe isto é porque não percebe nada, nada de nada, nada do que lhe está a acontecer nem nada do que lhe pode vir a acontecer, a ele e ao seu liberalismo.
Melhor do que eu, melhor do que ninguém, o grande Vinicius de Moraes pressentiu o que digo, num escrito de 1944: «senti um cheiro de nazismo, súbito. Ora – direis – como é esse tal cheiro de nazismo? Reconheço a dificuldade de descrevê-lo em toda a sua complexidade, mas penso que era um cheiro branco, inodoro, perfeitamente ortodoxo no entanto, com laivos de salsicha, chope e cachorro policial, um cheiro de radiotelegrafia e talvez de cemitério.» 
Dito isto, meu caro Sérgio, que faz V. ao lado do Chega?

         (V., e já agora, alguns dos seus companheiros de blogue, pessoas que muito estimo e admiro, amigos de muitos anos.)
Poderá responder-me que é um liberal e que, sendo um liberal, respeita e tolera todas as opiniões livres. Simplesmente, a tolerância e o liberalismo não implicam aceitar tudo, cair num niilismo festivo e acrítico em que todas as opiniões são válidas e insusceptíveis de escrutínio. Aliás, V. não se inibiu – no que fez muito bem – de criticar o que escrevi, e que era bem menos contundente para o seu liberalismo do que as diatribes de André Ventura contra a eutanásia ou o casamento gay.
Por isso, pergunto-lhe: em vez de perder o seu tempo e o seu inquestionável talento com a minha pobre pessoa, não teria sido melhor gastá-los a demarcar-se do Chega e a distanciar-se da sua colega de blogue?
         
          Aceite um cordial abraço do
 
          António Araújo
 
(Continua)
 
 
 
 

2 comentários:

  1. Isto é só um aparte, mas a respeito da tal suposta contradição entre liberalismo económico e conservadorismo nos costumes, eu (que, aliás, sou o oposto de um liberal económico ou de um conservador nos costumes) parece-me que essa contradição só existe se o liberalismo económico for defendido, exatamente, com o tal argumento de "valor da autonomia e da liberdade individual"; mas se for defendido com argumentos como "não é justo cobrar impostos a quem se farta de trabalhar para dar a vadiagem" ou "o Estado gere mal porque o dinheiro não é dele, ao contrário do empresário privado", isso parece-me perfeitamente compatível com o conservadorismo; até diria que esses argumentos pelo liberalismo económico até têm implicita uma mentalidade de castigo-recompensa que até combina bem com o conservadorismo social (e, para os mesmo mais conservadores, o argumento "o Estado gere mal porque o dinheiro não é deles" tem a vantagem adicional que pode ser reciclado num argumento - à Pequito Rebelo ou à Hans Herman Hoppe - de que numa monarquia tradicional o Estado já será bom gestor, porque aí o rei está quase como a gerir algo que é dele).

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    1. se [o liberalismo económico] for defendido com argumentos como "não é justo cobrar impostos a quem se farta de trabalhar para dar a vadiagem" ou "o Estado gere mal porque o dinheiro não é dele, ao contrário do empresário privado"

      Mas isso não são argumentos liberais - são simplesmente argumentos pragmáticos anti-Estado. O liberalismo não é (somente) ser anti-Estado, o liberalismo é ser pró-liberdade. E o liberalismo tem uma filosofia (sobre o valor da liberdades), não é somente pragmatismo, tipo gerir, cobrar impostos, ou gastar o dinheiro público eficientemente.

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