sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Tudo no Seu Lugar (ou quase).





Christopher Payne, Asylum

 



Por vil e puro egoísmo, tenho muita pena que Oliver Sacks tenha morrido. É que os seus livros são tão incrivelmente bons, tão incrivelmente bons de ler, que até faz pena. É certo que, sobretudo nos mais autobiográficos e clínicos, como este Tudo no Seu Lugar, acabadinho de sair, os casos e as patologias se repetem um pouco e quem leu os livros todos ou a maioria deles sente-se demasiado em casa. É certo, também, que sempre me interroguei se seria ética e deontologicamente correcto estar a contar histórias assim, com nomes e tudo. E também é certo que me questiono se não haverá aqui algum voyeurismo, dele e nosso, como se as enfermidades da mente fossem expostas numa galeria de monstros, uma nova e desprezível forma de teratologia. Mas, depois, há a escrita. Maravilhosa. E a jóia de viver de Sacks, prodigiosa, contagiosa. E os casos contados, como o da filha de Michael Greenberg (recomendo muito, apesar de não estar em português, o tremendo e perturbador, mas tão belo, Hurry Down Sunshine / Até ao Amanhecer).

Além de despejar ditirambos sobre este último (literalmente) livro de Sacks, há um ponto que me interessa muito e que tem que ver com um dos capítulos, em que o nosso Oliver questiona, e muitíssimo bem, o movimento de «desinstitucionalização» que levou ao esvaziamento e abandono de centenas de hospitais psiquiátricos em todo o mundo. Eles eram tenebrosos, as «instituições totais» de que falava o grande  Goffman, com guardas e cuidadores sádicos e ditadores, regras bárbaras e tudo o mais. Convém, todavia, não generalizar a negro. É que, como bem observa Sacks, ali também havia amparo e carinho, tratamento medicamentoso a horas certas, terapia ocupacional (Sacks nota que foi uma estupidez abolir o trabalho nesses hospitais a pretexto de ser uma «exploração» dos pacientes, pois na  maioria dos casos esse trabalho era salvífico, redentor). Tenho pensado muito na convergência que houve entre uma certa esquerda crítica da ditadura dos «asilos» e uma certa direita neoliberal que, nos anos 80 da era Reagan e Thatcher, advogou a redução dos custos do assistencialismo. A crítica da esquerda libertária serviu-lhe como uma luva, e assim foram fechados muitos hospitais, largados nas ruas milhares ou milhões de seres humanos, sem garantia de acompanhamento regular e tratamento médico (e medicamentoso) imprescindível. Oliver Sacks fala em Geel, na Bélgica, uma cidade que desde a Idade Média acolhe pessoas com problemas psíquicos. Ainda que haja alguns casos similares, a experiência não parece replicável, é pena. E também ninguém sugere o regresso aos tempos do Voando Sobre um Ninho de Cucos, ou o retorno dos hospitais-prisões. Mas seria possível, e muito desejável, que entre o extremo da prisão de ferro e o extremo do deus-dará nas ruas, se encontrassem formas equilibradas e sensatas de tratar de um dos mais graves problemas do nosso tempo. E com tendência para agravamento, por colateral efeito do aumento da esperança de vida.

Seria importante fazer-se um debate sério e a sério desta questão da saúde mental (um problema de saúde igualzinho a outros, sem tirar nem pôr). Não estivéssemos nós tão embrenhados nas andanças do Bruno de Carvalho ou no golo de cabeça do Ronaldo, esse debate era importante, fundamental. Mas duvido que ocorra, duvido mesmo. E os «loucos» são os outros? Raios (e coriscos).



















 

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