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Suffolk, Virginia, 1964
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Há poucos dias, nas páginas do jornal Público, Rui Ramos – ou, melhor, a História de Portugal que escreveu com Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno G. Monteiro – tornou-se a mais recente vítima de Manuel Loff e dos seus métodos.
Lembrei-me, por isso, que seria interessante falar de um caso passado comigo há seis anos. Recordo o episódio apenas para que as pessoas de boa fé, sejam quais forem as suas convicções, saibam do que falamos quando falamos de Manuel Loff.
No Portugal Diário (e não, rectifico, no Diário Digital) de 17 de Março de 2006 – infelizmente, já não acessível online – Manuel Loff decidiu escrever sobre a minha irrelevante pessoa.
Peço que me acompanhem por uns instantes. São apenas três pontos:
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1 – Quando os menores viram maiores de idade
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Escreveu Manuel Loff nesse texto – e cito – que “António Araújo batalha (por enquanto, por palavras) contra a declaração de inconstitucionalidade do órgão de que ele próprio era assessor (o Tribunal Constitucional) da criminalização das relações homossexuais conscientemente consentidas entre adultos e adolescentes maiores de 16 anos”.
Retenham a palavra que Loff escreveu: “maiores”. Portanto, segundo ele, eu defendia que fossem criminalizadas as relações homossexuais entre adultos e pessoas maiores de 16 anos de idade. Simplesmente, o acórdão do Tribunal Constitucional, que comentei num livro, referia-se a relações sexuais com menores de 16 anos. Aliás, esse meu livro, de 2005, chama-se Crimes Sexuais contra Menores (anunciado aqui). Com menores, ficaram esclarecidos? Há uma ligeira diferença entre pessoas maiores e pessoas menores de 16 anos, não acham? Nunca esteve em causa, quer no Código Penal, quer no acórdão nº 247/05 do Tribunal Constitucional, quer no meu comentário a esse acórdão, as relações sexuais – homo-, hetero- ou o que quiserem – com pessoas maiores de 16 anos. O que sempre se discutiu foram as relações sexuais com adolescentes menores de 16 anos. Jamais se falou em criminalizar actos sexuais com pessoas maiores de 16 anos. Nem, de resto, fazia qualquer sentido. Aliás, noutro texto, originalmente publicado no Brasil e depois em Espanha (disponível aqui), tive ocasião de aplaudir a histórica decisão da Supreme Court dos Estados Unidos no caso Lawrence v. Texas, famosa sentença que em 2003 pôs termo a uma arcaica lei texana sobre sodomia (!), que punia criminalmente as relações homossexuais consentidas entre adultos.
Mas, como é evidente, nada disso interessava a Manuel Loff. O seu ponto é que eu defendia que as relações sexuais entre adultos e maiores de 16 anos deveriam ser criminalizadas. Ora, isso é falso. Sendo falso, não corresponde à verdade. Uma palavra singela: mentira.
Mais extraordinária é a extrapolação que, a partir dessa inverdade, faz Manuel Loff: eu era um adversário do casamento entre pessoas do mesmo sexo… Segundo escreveu, António Araújo teria “desprezo por holandeses, escandinavos, canadianos, espanhóis (Zapatero, traidor!) e – oh” pasmo! – britânicos blairistas que aprovaram fórmulas matrimoniais para pessoas do mesmo sexo)”. Chega a dizer que, só porque eu devia “achar bastante feito do ponto de vista estético”, não chegava “ao ponto a que chegou a Fox norte-americana com os franceses (convidar espectadores a desfazer à marretada carros de marca francesa no período imediatamente anterior à invasão do Iraque)”. Desfazer à marretada carros franceses? A invasão do Iraque? Isto tudo, reparem, é uma construção feita a partir de uma mentira a propósito de sexo com menores!
Não, não é invenção. Isto foi escrito por Manuel Loff, sobre a minha pessoa, no Portugal Diário de 17 de Março de 2006.
Acompanhem o método de Loff:
1º passo – a começar, uma inverdade grosseira, uma oportunista troca de palavras: dizer que eu era contra a sexualidade entre pessoas maiores quando escrevi um livro, isso sim, sobre a sexualidade de adultos com menores de 16 anos.
2º passo – depois, uma extrapolação abusiva – de acordo com Manuel Loff, eu seria, como que por uma fatalidade do destino, contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em que se baseia para dizer isso, se NUNCA opinei sobre esse tema?
3º passo – a concluir, como eu era, hipoteticamente (o que, aliás, é falso!), contra as relações sexuais com maiores de 16 anos, vai de meter ao barulho a Fox TV, a invasão do Iraque e a destruição à marretada de carros franceses…
Um delírio completo. Mas com um objectivo preciso e pérfido: difamar, caluniar, denegrir o carácter das pessoas. Atribuir-lhe opiniões que nunca tiveram, ideias que nunca perfilharam. Se isto não é fascismo…
Como intelectual e cronista, Manuel Loff é extraordinário: começa por faltar à verdade (menores vs. menores) e, a partir daí, graças à sua fulgurante inteligência, consegue deduzir o que eu penso, ou não penso, sobre questões tão variadas e complexas como o casamento gay, a invasão do Iraque e os veículos automóveis fabricados em França. Desculpem a pergunta, decerto ingénua: mas o que é que a invasão do Iraque tem a ver com a pedofilia? Como é que Manuel Loff pode atribuir-me opiniões sobre o casamento homossexual ou a invasão do Iraque se NUNCA escrevi ou disse publicamente NADA sobre isso?
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2 – O “direito à pornografia”
Nesse texto do Portugal Diário, Loff escreve ainda que sou contra o “direito à pornografia”. Deve estar a basear-se num artigo que publiquei e que se intitula “Temos um direito à pornografia?”. Eu formulei uma pergunta, Loff dá em meu lugar a resposta, e taxativa: sou contra o “direito à pornografia”. Infelizmente, caro Manuel Loff, não fui original. Aquele título, com um ponto de interrogação bem visível (“Temos um direito à pornografia?”) foi tomado de um celebérrimo artigo de Ronald Dwokin, que se chama precisamente, e também com um ponto de interrogação, “Is There a Right to Pornography?” (publicado em 1981 no Oxford Journal of Legal Studies, aqui, e, depois, no livro A Matter of Principle, um clássico fundamental do pensamento político e jurídico do século XX).
Como Manuel Loff parece ignorar tudo isto, convém esclarecê-lo que Ronald Dworkin é um dos mais conceituados filósofos liberais do mundo, que publica regularmente, por exemplo, na, creio que insuspeita, The New York Review of Books. A ter que enquadrá-lo na dicotomia esquerda/direita, Ronald Dworkin será, indubitavelmente, um autor “de esquerda”, alvo frequente dos neoconservadores norte-americanos. Já agora: traduzi e publiquei na revista Sub Judice textos de Ronald Dworkin – e creio ter sido a única pessoa a fazê-lo em Portugal. Dirigi um número especial dessa revista com o tema “Justiça e Memória”, outro chamado “25 de Abril – A Revolução na Justiça”, traduzi Ronald Dworkin para português e, nas horas de lazer, entretenho-me a dar marretadas em carros franceses. Há gostos para tudo.
É claro que nada disto interessa ao nosso historiador. Ronald Dworkin não é contra a existência de um “direito à pornografia” – pelo contrário! –, do mesmo modo que eu não sou contra a existência de um “direito à pornografia” (que desconchavo completo!). Loff parece demonstrar uma completa ignorância sobre o que pensa Ronald Dworkin, o que penso eu ou que sustentam actualmente diversas correntes do chamado third wave feminism sobre a indústria da pornografia. Conhecerá Loff, por um acaso, o documentário Not a Love Story: A Film About Pornography (1981), de Bonnie Klein, mãe de Naomi Klein, a autora do famoso livro No Logo, um best-seller que denuncia o poder das marcas e das grandes empresas nas sociedades capitalistas de consumo do nosso tempo? O seu último livro é The Schock Doctrine. The Rise of Disaster Capitalism. Coisas...
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3 – A melhor de todas: Araújo e a lei da nacionalidade
Nessa prosa no Portugal Diário, escreve Loff: “Araújo não gostou da nova lei da nacionalidade”. Para o comprovar, cita artigos que eu teria escrito no Diário de Notícias. E, no final, acaba a mencionar os nomes de Jean-Marie Le Pen e Umberto Bossi. Bonito, não? É pena que o artigo já não esteja acessível online, pois é um belíssimo tratado sobre a má fé mesclada de ignorância e cegueira ideológica.
Lamento desiludi-lo, caro Manuel Loff, mas eu NUNCA escrevi nada sobre nacionalidade, como NUNCA escrevi nada sobre emigração ou sobre imigração. Nunca. Aqui, não há duas opiniões divergentes: nunca escrevi sequer sobre os temas de que fala. Escrevi sobre temas jurídico-constitucionais, muitos, desde os direitos das pessoas com deficiência à justiça constitucional portuguesa ou ao nosso sistema de governo. Infelizmente, não “gostei” nem “desgostei” da lei da nacionalidade – nunca escrevi sobre ela! Loff insiste que sim, teima que escrevi sobre nacionalidade e imigrantes, que escrevi artigos xenófobos nas páginas do Diário de Notícias. Nova desilusão para o historiador do Porto: NUNCA na minha vida escrevi qualquer artigo de opinião no Diário de Notícias… Aliás, nunca escrevi sobre essas matérias, nem no Diário de Notícias nem em qualquer outro lugar. Em síntese, o que Manuel Loff diz é, novamente, uma monumental inverdade.
Mas – que querem? – trabalhar e vilipendiar assim é mais fácil: Loff escreve “maiores de 16 anos” quando o que estava em causa eram “menores de 16 anos”, arranca daí para me extrair à força uma opinião sobre o casamento gay, salta depois para a guerra do Iraque, inventa que sou contra o “direito à pornografia” e termina dizendo que não gosto da “nova lei da nacionalidade”. De permeio, a Fox e – como é possível?! – Jean-Marie Le Pen e Umberto Bossi. O que é que eu tenho a ver com a cadeia de televisão Fox, que nunca vi um minuto sequer? O que é que eu tenho a ver com a extrema-direita francesa ou com a Liga do Norte?
O artigo foi publicado em 2006. Na altura, decidi não responder, por considerar que Manuel Loff e eu éramos demasiado irrelevantes. Mas, agora, seis anos depois, ao ver retomados e refinados os seus métodos de mentira, calúnia e difamação, para mais nas páginas de um jornal como o Público, senti que tinha o dever de dar testemunho do que comigo se passou.
Lamento que o Público tenha como seu colunista alguém que atribui a terceiros opiniões que estes nunca manifestaram. No retrato, quem fica mal não é Manuel Loff, irrelevante como pessoa, irrelevante como historiador, irrelevante como cronista. No retrato, quem fica mal, muito mal, é quem o publica e dá guarida às suas calúnias e inverdades.
Todos podemos ter as nossas opiniões, vivemos num país livre. Mas uma coisa é ter opinião, outra é faltar à verdade. No dia em que abdicarmos da verdade em nome das nossas opiniões, deixaremos de ser livres. Nesse dia, poderemos todos dizer, com certeza certa: «O Nosso Século É Fascista!». Esse é o título da tese de Manuel Loff, que estudou e conhece bem os métodos do fascismo. Um caso singular, mas não isolado, de alguém para quem tudo vale, desde que com isso se difamem pessoas. Para que – e esse é o objectivo fulcral – se instale um clima de raiva e ódio e de crispação violenta na sociedade portuguesa. Odeiem, critiquem. O povo é sereno... Mas, por favor, não inventem opiniões que não existem, nem palavras que nunca foram ditas.
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António Araújo
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Post-scriptum – como o texto de Manuel Loff no Portugal Diário já não está online, e como por certo ele terá uma cópia arquivada no seu computador, convido-o – e desafio-o, lealmente – a que publique de novo o seu artigo na blogosfera. Para que os leitores o possam ler na íntegra, que merece a pena. Se quiser, Manuel Loff pode enviar-mo, que aqui o divulgarei de imediato e com o maior gosto, a bem da verdade histórica.
Concordo em absoluto: não apaguem a memória! Por isso, antes de se pronunciarem sobre este meu texto ou sobre mim e o que penso, só peço que leiam o que Manuel Loff disse sobre as minhas opiniões em matéria de sexo com menores, a pornografia, a invasão do Iraque ou a lei da nacionalidade. Enquanto historiador que diz ser, estou certo de que Loff não terá medo do (seu) passado nem se furtará a republicar na íntegra, sem cortes nem rasuras, o que sobre mim escreveu, nos idos de Março de 2006.