quarta-feira, 31 de maio de 2017
terça-feira, 30 de maio de 2017
segunda-feira, 29 de maio de 2017
In Illo Tempore (2)
Quando entrei para a PJ em 15 de Janeiro de 1975, o subinspetor Abílio
Simão apresentou-me individualmente a todos os colegas da secção.
Entregaram-me a arma de serviço, uma pistola Star de calibre 7,65 mm,
que tinha gravado na culatra a punção (uma estela) da PSP e fazia parte de um
lote de armas abatidas daquela entidade policial por serem consideradas
obsoletas, mas que serviram para os novos agentes da PJ, e, sem mais delongas,
mandaram-me integrar uma equipa numa diligência externa. Aos estagiários que
entraram a seguir foram-lhes fornecidas pistolas militares usadas, da marca
Walter, de calibre 9 mm, volumosas e pesadas, que tinham de ser transportadas,
principalmente no verão, em bolsas de cintura para não se tornarem notadas.
Como todos os estagiários tinham cumprido recentemente o Serviço Militar
Obrigatório, partiu-se do princípio que estavam habilitados a lidar com armas
de fogo. Além do mais, a maioria tinha regressado recentemente da Guerra do
Ultramar. Não havia tempo a perder com o ensino teórico/prático porque o
combate à criminalidade violenta assim o exigia. Para situações de exceção,
soluções de exceção.
Ao iniciar a minha atividade como agente estagiário fui desde logo
contemplado com cerca de 90 inquéritos, selecionados pelos restantes elementos
da brigada, sendo que nenhum, não fosse eu um estagiário, se relacionava com
investigação de homicídios. Eram antes "chaços" de que os meus
companheiros se queriam livrar, relacionados com danos voluntários; difamações;
injurias; ameaças de morte; corrupção de alimentos; negligências médicas;
abortos clandestinos e ofensas corporais.
Foi a minha primeira deceção, pelo que desabafei comigo próprio: «Então
isto é que é uma secção de homicídios…?»
A maioria dos casos tinha mais a ver com instrução processual do que
propriamente com investigação criminal.
*
Para se ter uma ideia do ambiente que se vivia no PREC, o que a seguir
se relata parece-me esclarecedor.
Poucos dias depois de eu ter entrado na PJ passou defronte da sede uma manifestação
de prostitutas vindas da zona dos Anjos/Intendente, empunhando cartazes e
gritando palavras de ordem em defesa da sua profissão. Um dos cartazes dizia:
«Somos putas, exigimos respeito». Quanto às palavras de ordem recordo-me de
«Proteção sim, repressão não» e «assistência social, assistência social». Esta
manifestação seguiu pela rua do Conde Redondo e foi-se juntar a uma das muitas
manifestações que faziam (ainda se fazem algumas), no percurso entre o Marquês
de Pombal e a Praça do Comércio.
Disseram-me que nos primeiros dias a seguir
ao 25 de Abril tinha havido uma outra manifestação de prostitutas, mas de
característica espontânea, emocional e humanitária. Tratou-se duma manifestação
em que as “meninas” anunciavam borlas ao “soldadinho amigo o povo está
contigo”.
O COPCON invadiu no dia 28 de Maio de 1975 a sede do MRPP detendo
centenas de militantes daquele partido, que foram levados para a prisão de
Caxias. Posteriormente selecionaram uma parte significativa dos detidos,
alegadamente os mais responsáveis pelos crimes que justificaram aquela ação, e
entregaram-nos na PJ para que esta polícia elaborasse o necessário expediente e
os apresentasse aos JIC (que nessa altura funcionavam no 4º andar do edifício
sede), dado o COPCON não ser competente para tal. Enquanto decorria uma ação de
luta dos militantes do MRPP, em que uma multidão cercou o edifício sede
gritando com os punhos erguidos “abaixo a nova pide, abaixo a nova pide”, com
alguns de nós, “os novos pides”, debruçados nas janelas a assistir, os detidos
deambulavam pelos corredores entoando cânticos revolucionários e recusavam-se a
ser ouvidos formalmente. Perante toda aquela confusão, os juízes acabaram por
só exigir que fossem identificados, mas os detidos nem isso aceitaram. Receando
uma invasão do edifício, os militares colocaram uma Chaimite junto ao portão
(no exterior) do lado do piquete. Após longas horas de “negociações” a situação
só foi desbloqueada de madrugada com a identificação dos detidos, que saíram em
liberdade.
No dia 13 de Dezembro de 1974, Jorge de
Brito (proprietário do BIP - Banco Intercontinental Português) e os
administradores da Torralta foram presos pelo COPCON por sabotagem económica. O
Sindicato dos Bancários organizou desde logo uma ação de luta, em que milhares
de pessoas cercaram a PJ exigindo medidas concretas e uma investigação séria e
célere. As prisões também foram ilegais, mas os sindicalistas apresentaram o
que consideravam como provas contundentes da prática de crimes graves contra a
economia do país e, face à hesitação da PJ (era o que afirmavam), exigiam a
valorização dessas provas de modo a que os detidos fossem presentes aos JIC.
Jorge de Brito esteve em prisão preventiva durante um ano e meio,
acabando condenado a seis meses de prisão por tráfico de divisas.
*
O ambiente gerado pela revolução em largos setores da população criou
uma forte animosidade contra a PSP e, principalmente, a GNR, identificando
estas forças de segurança com a repressão do regime deposto, pelo que lhe perderam
o respeito, o que levou a um recuo da sua atividade operacional que deu origem
a uma sensação generalizada de impunidade e ao disparar da criminalidade.
A PJ foi a única força policial que saiu da revolução com prestígio e
aguentou, sozinha, especialmente durante o período do PREC, o combate ao
aumento desmesurado da criminalidade violenta.
Durante este período tínhamos de recorrer ao COPCON quando
necessitávamos de uma força armada para cercar bairros de barracas ou zonas da
cidade com grande incidência de criminalidade, como aconteceu, por exemplo, no
Prior Velho e no Casal Ventoso, a fim de dar cumprimento a mandatos de detenção
e de busca.
O COPCON não fazia prevenção criminal. A sua principal atividade
consistia em responder a pedidos de intervenção do povo vigilante no combate às
forças reacionárias que conspiravam contra o 25 de Abril.
Esta vertente da ação do COPCON deu origem a situações que tiveram tanto
de caricatas como de perigosas. Era agente estagiário há poucos dias quando fui
à Calçada da Ajuda com dois colegas fazer uma vigilância. Cerca de duas horas
depois de chegarmos fomos surpreendidos por um grupo de militares visivelmente
nervosos que, de pé em cima dum Unimog, nos apontaram espingardas automáticas
G3 e gritaram para que puséssemos as mãos no ar. Dissemos-lhes que éramos
agentes da PJ, mas eles a princípio não acreditaram. Encarámos a situação com
calma, até que um de nós foi autorizado a identificar-se. Alguém lhes tinha
telefonado a dizer que andavam por ali uns indivíduos estranhos, altamente
suspeitos de pertencerem a alguma organização contrarrevolucionária.
*
Em resposta à “intentona” spinolista do 11 de Março de 1975, os
militares do MFA avançaram para as nacionalizações. Enquanto não se tocou nos
interesses económicos e financeiros a “coisa” ia andando, mas com a
nacionalização dos bancos, das companhias de seguros e das grandes empresas, a
direita radicalizou-se e a violência não se fez esperar. O Norte levantou-se.
Entre Julho e Agosto de 1975 houve manifestações, muitas delas encabeçadas por
padres, que culminavam na destruição dos centros de trabalho do PCP e de outros
partidos de esquerda, assim como no rebentamento de bombas por todo o lado.
Apesar de serem notícia de primeira página dos jornais e tema principal
nos telejornais, com a exposição pública de fotografias e filmagens, a justiça
passou ao lado destes actos de vandalismo e violência, que provocaram várias
vítimas mortais.
Um dos casos mais famosos de violência política ocorreu em Abril de
1976, perto de Vila Real, com a explosão duma bomba no carro do padre Max, que
estava acompanhado de uma jovem. Ambos morreram em consequência da explosão.
Soube-se como tudo se processou e quem foram os autores morais e materiais do
crime. No entanto, os cinco arguidos acusados pelo Ministério Público foram
absolvidos em dois julgamentos (1997 e 1999) por insuficiência de prova.
Havia padres que afirmavam do alto do seu púlpito que os comunistas
comiam criancinhas ao pequeno-almoço e davam injeções atrás das orelhas dos
velhos para que morressem mais depressa. A ser verdade, tratava-se duma versão
mais drástica das atuais medidas de austeridade.
Só com a derrota do COPCON e da extrema-esquerda militar no dia 25 de
Novembro de 1975 é que esta conjuntura se alterou.
Nesse dia tinha ido com o subinspetor Lobão para a Zona de Rio Maior. A
certa altura começou a ser transmitida repetidamente uma mensagem vinda da
central rádio da PJ:
- Atenção a todas as viaturas, regressem à
base imediatamente.
Quando passámos pelo viaduto junto ao RALIS vimos militares daquela
unidade a montar peças de artilharia viradas para Norte, de onde vinha uma
coluna militar da Escola Prática de Cavalaria em direção à Capital, comandada
por Salgueiro Maia.
Naquela altura andava no ar a possibilidade da situação político/militar
descambar numa guerra civil. Felizmente que tal não aconteceu.
O
dia-a-dia
Reservávamos normalmente dois dias por semana para ouvirmos pessoas de
manhã à noite a fim de pôr em dia o expediente, para nos restantes dias
procedermos a diligências externas.
Chamávamos as pessoas convocadas através de um comunicador interno. A
sala de espera era no hall do
primeiro andar junto à escada principal. Para além de bancos de correr em
madeira havia na sala de espera uma cabina telefónica pública. Quando começaram
as apreensões de droga decidiu-se transformar aquele espaço num armazém para
estupefacientes. Colocaram-se os bancos no corredor e a cabine telefónica
passou a ser utilizada para guardar a droga mais valiosa, pelo que, como medida
de segurança, foi montado um cadeado. A certa altura o espaço deixou de ser
suficiente dado as apreensões de droga aumentarem vertiginosamente, pelo que
tivemos de a transportar à mão para uma sala de maiores dimensões no segundo
andar. Pelo caminho iam caindo pedaços de droga, o que chamou a atenção dos
passantes, mas ninguém se atreveu a dobrar a espinha.
O armazém da droga, antes sala de espera, passou então a ser o gabinete
de apoio administrativo às duas secções de homicídios - 2ª e 3ª.
*
Quando havia um processo de homicídio contra desconhecidos que logo à
partida apresentasse sinais de complexidade investigatória, o que nem sempre se
confirmava posteriormente, os agentes da brigada suspendiam o que andavam a
fazer para se concentrarem na investigação do crime. Se o caso fosse
particularmente grave podia ser mobilizada toda a secção e alguns agentes da
outra, o que chegou a acontecer algumas vezes. Especialmente nos primeiros três
dias, enquanto a situação se mantinha “quente”, era mister trabalhar
intensamente, sem preocupações de horário, para se agarrar a ponta do novelo
que nos levaria à solução do crime. Os investigadores mais experientes diziam
que as testemunhas principais, as que fazem prova direta, eram mais importantes
que os próprios autores dos crimes. Estas testemunhas não podiam ser largadas
pelos agentes sem serem inquiridas formalmente. Nem que fosse à mão. Vi colegas
cometerem o erro de palmatória de as convocar para o dia seguinte. Nestes
casos, o normal era a sua versão dos factos já não ser a mesma.
Quando se dava o arrefecimento emocional, uma consequência do passar do
tempo, sem que houvesse pistas credíveis, a investigação prosseguia somente com
o titular do inquérito e o grupo de que fazia parte. Claro que não tinha de ser
sempre assim, dependia da dimensão e complexidade dos casos, mas este era o
procedimento base.
*
Dos trinta anos da minha carreira, vinte foram passados sem telemóveis
nem computadores, que só surgiram em meados da década de noventa.
Também foi a partir de meados da década de noventa que foi possível
identificar suspeitos através do ADN.
Nos homicídios, as escutas telefónicas a telefones fixos nem sequer eram
consideradas, pelo que raramente foram postas em prática. Apesar de todas estas
“limitações” (na perspetiva atual), não deixámos de deslindar crimes de
comprovada complexidade e obter resultados com elevados índices de êxito no
combate à criminalidade.
Antes dos computadores, as antigas máquinas de escrever mecânicas foram
substituídas por máquinas de escrever eletrónicas com cabeça rotativa, que se
mantiveram ao serviço durante alguns meses. Quando foram substituídas pelos
processadores de texto ALL-IN-ON (Spectrum 48k) estavam praticamente novas.
Estes processadores de texto também tiveram curta duração até serem
substituídos pelos computadores.
*
Há hoje quem entenda que por esta altura a PJ era uma polícia de amadores,
que funcionava na base de meia-dúzia de intuitivos. Normalmente este tipo de
opiniões vem de quem galgou os patamares da carreira até ao topo sem nunca ter
sido polícia. Dizem que ao entrarem para a PJ “encontraram” uma polícia arcaica
e quando se reformaram “deixaram” uma polícia moderna e sofisticada.
A investigação criminal não está desligada da sociedade. A sua evolução
segue a par, na melhor das hipóteses, da evolução da sociedade em que está
inserida.
Quanto à intuição, penso que é indispensável à investigação criminal.
Mesmo com as atuais tecnologias o fator humano não pode ser totalmente
substituído pela técnica.
Por outro lado, é bom que se diga que não éramos amadores, mas
profissionais que, num esforço de autodidatismo e aproveitamento do saber
empírico que o dia-a-dia proporcionava, lográmos alcançar níveis de
conhecimento especializado em áreas relacionadas com a psicologia, a sociologia
e a antropologia forense, entre outras.
As
instalações
O edifício sede da PJ foi construído com materiais de qualidade. Para
além de um pé direito alto, tem corredores espaçosos e janelas largas.
O mobiliário das brigadas era composto por secretárias e armários em
madeira de boa qualidade, estes com persianas verticais. As secretárias tinham
tampos largos cobertos com vidro grosso transparente e apesar de serem antigas
estavam muito bem conservadas. Tinham forma de L em que a parte mais curta era
um suporte rebaixado para máquinas de escrever e onde podiam ser colocados os modernos
computadores. As cadeiras de secretária eram em madeira, giratórias e bastante
confortáveis. Para as pessoas se sentarem havia sofás individuas simples e
confortáveis.
Um dia fomos surpreendidos com a substituição de todo o mobiliário,
exceto os armários do hall de entrada das brigadas, por secretárias de
contraplacado com laminite a imitar madeira e armários em metal da pior
qualidade. Havia quem alegasse que era por uma questão estética… O novo
mobiliário era tão mau que teve de ser substituído por outro, um tudo-nada
melhor, num curto espaço de tempo.
Durante vários anos cada vez que mudava a direção da polícia mudava o
mobiliário e a decoração. A justificação que davam para estas despesas era de
que a PJ tinha um orçamento anual e caso não o gastasse na totalidade no ano
seguinte baixava de valor. Caso assim fosse, será que não haveria outras
necessidades bem mais importantes onde gastar o dinheiro? Mas isso era o que
diziam os más-línguas do costume.
*
Das particularidades curiosas de então, vistas hoje - como a de haver um
engraxador a tempo inteiro no hall de acesso ao piquete, ou uma tipografia no
rés-do-chão por baixo da escola - vou apenas referir a barbearia, que se
situava num recanto, próximo de onde hoje se encontra a sede da ASFIC. Era a
única construção existente em cima da placa da garagem. Em 1986 foram
construídos sobre a placa vários gabinetes para o ministério público, que têm
hoje outras utilidades, e a secção de transportes.
A barbearia tinha um telefone que nós utilizávamos para marcar a hora do
corte de cabelo, evitando assim esperas inúteis. O barbeiro, senhor Pinto,
trabalhava de manhã na Penitenciária de Lisboa ou na Zona Prisional e de tarde
na PJ. Ao cortar cabelos a criminosos de manhã e a polícias à tarde, já não
falando dos guardas prisionais, o senhor Pinto, em minha opinião, deveria ser
uma das pessoas mais bem informadas do país. Morreu subitamente quando seguia
num comboio de regresso à Amadora, onde residia. Com a sua morte a barbearia
foi desativada.
A
Formação
O curso de Formação de Agentes Estagiários que frequentei só começou
cerca de três meses depois de ter iniciado funções. As aulas eram ministradas
na parte da manhã. De tarde íamos trabalhar.
Tivemos o privilégio de ter um corpo docente de luxo, composto pelo Dr.
Laborinho Lúcio (Código Penal); Dr. Mário Gomes Dias (Código de Processo
Penal); Dr. Bento Garcia Domingues (Técnica e Tática de Investigação Criminal e
Instrução Processual); Dr. Arsénio Nunes (Medicina Legal – foi o último curso
que lecionou e as aulas tiveram lugar no próprio IML), Dr. Santos Silva
(Diretor do Laboratório de Polícia Científica) e quadros da PJ especializados
em diversas áreas. Também tivemos de tirar um curso de dactilografia numa
escola privada situada defronte do Arquivo de Identificação.
Para se poder avaliar o espírito do tempo, exigimos que a nota final do
curso fosse substituída por aprovado, ou reprovado. E assim foi. Claro que
fomos todos aprovados. A fim de repor alguma justiça, apraz-me dizer que o
Fino, um colega madeirense, foi o melhor aluno do curso.
A Escola da Polícia Judiciária situava-se na sede, mais precisamente no
primeiro andar logo a seguir ao túnel. Foi transferida em finais de 1977 para o
Estabelecimento Prisional de Lisboa (Penitenciária) e daqui para a Quinta do
Bom Sucesso, Barro, Loures, em 1981, onde ainda se encontra.
Os
transportes
As empresas de transportes públicos resistiram desde sempre ao que está determinado
no artº 11 do Decreto-lei 35042, de 20 de Outubro de 1945, que criou a PJ:
«será facultada a entrada livre das autoridades e agentes da Polícia Judiciária
(…) em todos os lugares (…) onde seja permitido o acesso ao público mediante
(…) a apresentação de bilhete que qualquer pessoa possa obter». Logo, os transportes públicos deveriam estar incluídos. Porém, só
em 1956 foi possível obter um acordo com a Carris para que fossem fornecidos
aos funcionários de investigação passes renováveis semestralmente. Na altura
todos ficaram com o seu passe da Carris. Só que, este quantitativo inicial
manteve-se sempre fixo. Com a entrada progressiva de novos agentes, a certa
altura eram mais o que não tinham passe do que os que tinham.
Para o metropolitano, inaugurado em 1959,
foi criada a “faixa azul”, mais conhecida por “cavaleiro azul”. Tratava-se de
uma pequena moldura de cartolina azul, encaixada num dos topos do cartão de
livre-trânsito, para permitir que os agentes da secção central, do furto,
burlas e mais alguns tivessem acesso gratuito ao metropolitano.
Esta situação de bizarra anormalidade
ainda se manteve até ao início dos anos setenta (1972?).
Quando entrei para a PJ em
Janeiro de 1975, o cartão de livre-trânsito continuava a não ser válido para os
transportes públicos, pelo que tínhamos de ter sempre à mão moedas para pagar
os bilhetes: de 5 e 8 tostões nos elétricos (o transporte mais utilizado), 10
tostões nos autocarros e 15 tostões para o metropolitano.
A nacionalização das empresas de transportes públicos no pós-25 de Abril
permitiu reivindicações que culminaram em 1976 com um acordo de validação do
cartão de livre-trânsito para o setor.
Para reavermos
o nosso dinheiro escrevíamos numa Informação de Serviço os números dos
inquéritos relacionados com as diligências em que foram utilizados transportes
públicos e juntávamos-lhe os respetivos bilhetes. Estas informações tinham de
ser previamente assinada pelo subinspetor da brigada para podermos receber na
tesouraria o que nos era devido. Mas não se pense que a devolução do nosso
dinheiro se processava sem o agente-tesoureiro Abreu refilar. Era da sua
natureza. Uma vez chegou a recusar o pagamento de um bilhete de elétrico com a
alegação que estava sujo de terra, dando a entender que o agente o tinha
apanhado do chão. Sempre que tinha de proceder a qualquer pagamento
extra-ordenado, como ajudas de custo ou refeições de serviço, havia discussão
pela certa. Acusava-nos de estarmos a enganá-lo, mesmo com a aprovação do chefe
de brigada ou do inspetor da secção. Quando requisitávamos esferográficas, por
exemplo, exigia que fosse por troca, ou seja, para que nos desse uma
esferográfica nova, tínhamos de lhe entregar a usada. Era ele que fornecia o
papel químico, papel para a máquina de escrever, impressos, lápis, borrachas,
etc., ou seja, a tesouraria também funcionava como economato, que só se
autonomizou nos anos 80. Acusava-nos sempre de sermos uns gastadores e nunca
nos entregava a totalidade do material solicitado. Tinha um complexo obsessivo de dúvida quanto à honestidade dos agentes. A
única maneira de o levar à certa era contar-lhe uma anedota ordinária ou
dizer-lhe uma piada porca. Ele ria-se e tornava-se humano.
Esta situação só melhorou com a entrada do escriturário Dourado, que era
uma excelente pessoa, para adjunto do Abreu.
Ao contrário do forreta do Abreu, o senhor Martinho, tesoureiro da
Diretoria Geral, era um ser humano de exceção. Estava sempre disponível para
ajudar os funcionários, inclusive emprestando-lhes dinheiro (com o aval do
diretor), contra a assinatura de um vale.
*
Até 1976 a frota de viaturas da PJ era tão diminuta que no parqueamento
interior (único) havia espaço de sobra, a tal ponto que até se podiam
estacionar automóveis particulares dos funcionários.
Algumas das viaturas destinadas a apoiar a investigação criminal estavam
a cargo de motoristas profissionais, pelo que, quando necessitávamos dos seus
serviços tínhamos de os requisitar. Mais tarde esses motoristas foram
distribuídos pelas secções. O primeiro que nos coube em sorte foi o Afonso e a
seguir o Ricardo. Ambos tinham particularidades muito curiosas. O Afonso, por
exemplo, adorava comer cabeças de peixe e conduzia “em cima” do carro da
frente, o que lhe deu alguns amargos de boca. Sempre que outros condutores
faziam asneira, por vezes da grossa, ele nunca protestava: limitava-se a
soprar. Quanto ao Ricardo, tinha a particularidade de ser um brincalhão incorrigível.
Por exemplo: parava a viatura que conduzia junto dos "almeidas" da
câmara municipal, que levavam consigo os carrinhos para transporte de lixo e
tratava-os por colegas: «o colega sabe-me indicar onde fica a rua…».
Como os motoristas profissionais não chegavam para as encomendas, quando
necessitávamos de uma viatura sem motorista tínhamos, para a garantir, dada a
sua exiguidade, de nos plantar desde muito cedo à porta do gabinete do
subinspetor Teixeira de Araújo (o "pai dos gatos") para a requisitar,
o que também acontecia quando necessitávamos de Walkie-talkies. Claro que esta tarefa era, naturalmente, reservada
aos agentes mais novos.
As
comunicações
Ainda sou do tempo em que tínhamos de andar munidos de moedas de 5
tostões para utilizarmos nas cabinas telefónicas ou em telefones públicos de
estabelecimentos comerciais para podermos comunicar, porque a PJ não tinha
telecomunicações. Antes do 25 de Abril a única polícia que tinha
telecomunicações era a PIDE. A PSP e a GNR tinham um sistema de comunicações
interno fixo, cuja rede fazia a ligação com as respetivas “esquadras” ou
“postos”.
Nas operações militares do 25 de Abril coube à Marinha a ocupação da
sede da PIDE/DGS. O António Roque e o Victor Manuel Russo Alves, ambos na época
marinheiros radiotelegrafistas, bem como o grumete radiotelegrafista Lourenço,
foram destacados para o edifício da PIDE/DGS a fim de assegurarem a
continuidade das comunicações no âmbito da rede de telecomunicações da
Interpol. Mais tarde, já em Maio, foram admitidos, como tarefeiros, os
ex-marinheiros radiotelegrafistas José Imaginário e Francisco Patrício.
Até à sua integração na PJ, este serviço de telecomunicações foi
chefiado pelo primeiro-sargento Reis, que continuou na Armada até passar à
reserva, sendo então substituído pelo subinspetor Cruz Passos.
A reativação do GNI teve a colaboração de três técnicos da PIDE/DGS que
estavam detidos na Penitenciária de Lisboa: Faustino, Marques e Castro.
O transporte dos detidos para a sede da PIDE/DGS, onde antes
trabalhavam, e o seu regresso à cadeia era efetuado diariamente por agentes da
PJ. Tanto estes técnicos como outros, oriundos da PIDE, entraram mais tarde por
concurso para os quadros da PJ.
Portugal era o único país em que a Interpol era controlada por uma
polícia política, o que contrariava o Estatuto (art.º 3) desta Organização
Internacional de Polícia Criminal.
As comunicações da PIDE/DGS, embora de tecnologia rudimentar, eram
bastante eficazes. Integravam uma rede nacional (incluindo as colónias) e uma
internacional. À exceção de dois excitadores Drake e cinco telexes, a restante
aparelhagem foi construída manualmente pelos técnicos daquela polícia. A
tecnologia militar de comunicações era incomparavelmente mais sofisticada, mas
de eficácia semelhante.
O GNI voltou a estar operacional cerca de duas semanas depois do 25 de
Abril com um comunicado dirigido à sede da Interpol, então em Paris, enviado
pelo radiotelegrafista António Roque:
- «Informação estação rádio de Lisboa está aberta a todo o tráfico
internacional das nove horas às dezassete horas viva a revolução».
Todas as transmissões eram efetuadas em código Morse através do
indicativo radiotelegráfico CST 63, já existente. Só em 1977 é que este
indicativo foi mudado para CSJ.
O GNI, assim como todo o material de comunicações existente na sede da
PIDE/DGS, só foi transferido para a PJ em Outubro de 1974 e ficou instalado no
4º piso entre o LPC e os JICs.
Para além do GNI, os militares também quiseram entregar à PJ o controlo
de fronteiras, função esta que ainda exerceu durante cerca de três meses, mas a
direção da polícia recusou alegando que não havia meios.
Entretanto, corria o ano de 1975 quando foram instalados, nas poucas
viaturas existentes, equipamentos de comunicação rádio da General Electric
(GE), em VHF, ligados a um emissor montado no torreão da PJ, com transmissores
no Monsanto, Arrábida, Coimbra e Porto, e recetores instalados numa sala do 4º
andar ao lado do GNI. Este sistema foi montado pelos técnicos Castro e Marques
com a colaboração do engenheiro Simões Carneiro, consultor técnico contratado
pela PJ.
A Divisão de Telecomunicações da PJ só foi criada em 1977.
Antes da implementação definitiva dos telemóveis, que ocorreu em meados
da década de noventa, tínhamos um bip ligado a um telefone fixo para
podermos ser contactados a qualquer hora, principalmente quando estávamos em
serviço de prevenção.
Até esta altura, para podermos comunicar uns com os outros quando da
execução de operações externas que visavam detenções ou buscas em locais
problemáticos, utilizávamos walkie
talkies.
Escutas
telefónicas
Pelo que apurei junto dos mais antigos, a instalação de escutas telefónicas
na PJ ocorreu em meados de 1964 por iniciativa do diretor de então, Dr. Orlando
Gomes da Gosta, mas “não tiveram suporte legal”, pois não houve: lei, decreto
ou simples despacho ministerial que as legitimasse. Pelo que se constou na
altura, foram solicitações informais do diretor junto do ministro da Justiça,
Dr. Antunes Varela, e “a coisa foi cozinhada de modo confidencial” (expressão
de Dias Brito).
O espaço físico para o efeito consistia em
dois pequenos gabinetes, de igual dimensão, situados na mesma prumada: um no 1º
andar, ao lado do gabinete do diretor, e o outro no 2º andar, na Secção
Central, ao lado do gabinete do inspetor-adjunto Dr. Bento Garcia Domingues.
Ambos tinham uma secretária e um par de auscultadores que se ligavam a três fichas
de parede designadas por x, y, z. Estas fichas correspondiam a três conjuntos
duplos de fios (dois fios para cada telefone), por onde se encaminhavam as
chamadas efetuadas ou recebidas pelos telefones em escuta, que chegavam à PJ
através de um cabo ligado à Central Telefónica da APT (empresa “inglesa”, que
foi resgatada pelo Estado em 1968 dando origem à empresa pública TLP), situada
na rua Andrade Corvo. O gabinete do 1º andar era de utilização geral, enquanto
o do 2º andar era de uso exclusivo da “Brigada Especial”.
Em termos comparativos, a central dos TLP da Trindade encaminhava para a
sede da PIDE 56 linhas telefónicas para o mesmo efeito.[1]
As escutas em telefones fixos efetuadas na PJ antes do 25 de Abril não
eram gravadas. Os agentes escreviam manualmente o que consideravam com
interesse para a investigação. Tinha mais a ver com recolha de informações do
que uma forma de obter/produzir prova.
A sistematização das escutas telefónicas na PJ só ocorreu com a
massificação dos telemóveis. Para a sua execução técnica o telemóvel sob escuta
era associado a um telefone fixo. Quando o telemóvel alvo era acionado, o
telefone fixo correspondente tocava. O operador levantava o auscultador (cujo
microfone estava desligado para evitar interferências sonoras) e encostava-o a
um gravador vulgar para registar a conversação.
Porém, com o aumento exponencial das escutas telefónicas (só na área da
investigação criminal relacionada com o combate ao tráfico e consumo de drogas chegou
a haver cerca de 100 telefones fixos conectados a outros tantos telemóveis sob
escuta) acontecia com frequência não se detetar a tempo qual o telefone que
estava a tocar e perdia-se o registo da conversação. Foi inspirado num aparelho
utilizado pela polícia espanhola que um técnico de comunicações da PJ,
engenheiro Pina Batista, criou um equipamento (conhecido por pinamómetro) que
fazia dispensar o levantamento do auscultador do telefone fixo acionando
automaticamente o gravador.
O
método
Não quero passar sem referir um tema que me parece andar esquecido há
muito tempo: «o método». O modo de investigar não tinha só a ver com a
intuição, como muitos afirmam, dado haver uma linha de conduta que ia passando
dos agentes mais velhos para os mais novos que se baseava na experiência.
Quando iniciei a minha carreira os agentes mais antigos diziam que os bons
profissionais não se formavam em menos de dez anos.
O método tinha, e ainda tem, várias vertentes que se baseiam na
experiência adquirida no esforço de procurar compreender os outros, tendo em
conta a sua origem social, a sua profissão, o local de nascimento, o de
residência e a etnia; na análise do local do crime; na integração no meio e na
criação de empatias para conseguir filtrar o essencial para a constituição da
prova.
Quando os interlocutores, por várias razões, se mostram retraídos em
abordar os factos relacionados com a investigação, há toda a conveniência em
encaminhar o diálogo para uma conversa tranquila sobre temas de interesse comum
de modo a criar empatias. Não será de admirar se o interlocutor a dado momento
desabafar sobre questões problemáticas relacionadas com a sua vida privada, na
procura de compreensão ou solução das mesmas. Há muita gente que perante uma
autoridade próxima da sua condição, como pode ser o caso dos agentes/inspetores
da PJ, sente necessidade em desabafar os seus problemas pessoais. O
investigador deve colaborar dando a sua opinião sincera na procura de soluções.
Este modo de agir vai com certeza facilitar a abordagem da matéria criminal em
investigação.
Só a experiência de vida nos dá o traquejo necessário para compreender a
personalidade das pessoas com quem nos confrontamos. Os diversos extratos
sociais a que pertencem podem ser distinguidos pelo vocabulário, pelas
profissões, pela maneira de vestir, pelo modo de ocupação dos tempos livres,
pela casa onde habitam, pela zona de residência, pelo tipo de conduta ou pelos
valores manifestados. Mas em termos psicológicos, o polícia de investigação criminal
tem por formação e deformação profissional passar o tempo a tentar descortinar
o caráter dos outros (é o que se chama na gíria “tirar o talhe”).
A experiência fez com que desenvolvesse uma linha de pensamento baseada
numa observação atenta, tendo por princípio que os criminosos não são pessoas
muito diferentes de mim. Por isso o raciocínio sobre o modus operandi deve partir de ideias simples, tendo em vista o modo
de agir do homem comum.
Esta é a base. A evolução da investigação pode alterar, ou não, a
convicção inicial da envolvente do crime. O investigador deve evitar ideias
fixas sobre o modus operandi, mas tem
toda a conveniência em manter uma linha de rumo para não se deixar dispersar.
Deve porém ter a flexibilidade necessária para pôr em dúvida, ou até mesmo
alterar a sua linha de pensamento quando surgirem sinais de sentido diferente.
Em minha opinião, o “método” começou a declinar quando as escutas
telefónicas passaram a ser o instrumento de trabalho dominante na investigação
criminal.
A
análise do local do crime
A observação do local do crime tem de ter, por princípio, a
racionalidade do modus operandi.
Até 1982 éramos nós que elaborávamos os croquis do local do crime. As
medições eram feitas a olho e a clareza do desenho dependia do jeito de cada
um. Acompanhavam-nos ao local do crime um fotógrafo e um dactiloscopista. As
fotografias eram agrafadas a folhas A4 com legendas normalmente escritas à mão.
A entrada do João Paulo para a sala de desenho do LPC em 1982 veio alterar
esta situação. Havia na altura um único desenhador, o Machado, que se recusava
a acompanhar-nos alegando que estava sozinho e não aguentava com todo o
trabalho. A partir de então o João Paulo e o Machado revezavam-se, passando a
constituir mais um elemento nas inspeções ao local do crime. Os croquis
transformaram-se em desenhos de qualidade que se foram aperfeiçoando com o
decorrer do tempo. O esboço inicial era desenhado em papel vegetal que depois
era transferido, na sala de desenho, para um papel especial através duma
técnica com alguma complexidade. Este papel era dobrado em formato A4 e
inserido no processo. O produto final era o desenho do local do crime com
fotografias inclusas e legendas elaboradas por nós. Os primeiros desenhos deste
novo formato tiveram um grande êxito, principalmente nos tribunais, porque
bastava ver o desenho para se ter uma noção real do local do crime e das
particularidades relevantes para a constituição da prova.
Também até àquele ano, 1982, os retratos robot eram apenas desenhados em
função da descrição da vítima ou da testemunha. De 1982 a 1998 passou a haver
na sala de desenho caixas de kits de
acetato compostas por faces, testas, queixos, cabelos, barbas e bigodes. Depois
de completado pela vítima/testemunha, o conjunto escolhido era fotocopiado. A
partir de 1998 surgiu uma nova técnica em computador.
*
Os médicos-legistas do IML recusavam ir ao local do crime, pelo que
éramos nós quem observávamos o cadáver em primeira mão na procura de sinais de violência
externa que, conjugados com o ambiente envolvente, nos dessem uma noção do
modus operandi. Também éramos nós que fazíamos a recolha de vestígios, que
depois enviávamos para o LPC - Laboratório de Polícia Científica - através de
um ofício com os respetivos quesitos.
Uma das nossas principais reivindicações foi, desde sempre, a criação de
laboratórios ambulantes para avaliação, análise e recolha de vestígios, tal
como existiam nos países mais desenvolvidos, o que só passou a ser uma
realidade um ano depois de me ter reformado. Em 2006 foi adquirida a primeira
carrinha-laboratório, equipada com algumas valências forenses, que entrou ao
serviço na Diretoria de Lisboa. Hoje existem ao todo 13 carrinhas-laboratório,
equipadas com todas as valências, distribuídas pelos departamentos da PJ. As
carrinhas-laboratório têm competência nacional, a partir de Lisboa, a pedido do
Ministério Publico para casos mais complexos e mediáticos.
*
Na segunda metade dos anos 70 a identificação de um cadáver deu brado
pela sua originalidade. Fomos contactados por uma senhora que nos disse ter
fortes suspeitas que o seu irmão tinha sido enterrado por identificar, há cerca
de 2 meses, no cemitério de Setúbal. Para além disso, suspeitava que a sua
morte não se devera a causa natural. Trazia consigo um documento militar do
irmão com impressões digitais.
Apesar do tempo já decorrido, decidimos avançar para a exumação do
cadáver com a esperança de ainda ser possível a sua identificação através das
impressões digitais. Pedimos que um técnico do IML nos acompanhasse a Setúbal,
mas foi-nos dito não haver ninguém disponível. Devido à nossa insistência,
acabaram por nos entregar um frasco com formol e disseram-nos para colocar a
mão direita do cadáver lá dentro, que eles depois se encarregariam de “dar um
jeito à coisa”.
Combinámos o dia da exumação com o responsável pelo cemitério, para que
o mesmo fosse fechado ao público, o que acontecia sempre que havia exumações, e
lá fomos nós munidos do respetivo ofício judicial a autorizar a diligência
investigatória.
À medida que o coveiro ia cavando o cheiro ia-se intensificando, até que
se tornou insuportável. Por sorte estava nesse dia uma forte ventania, o que
permitiu protegermo-nos do cheiro colocando-nos junto à cova com as costas
voltadas no sentido do vento. Mas o coveiro não aguentava o cheiro, pelo que
resolveu encharcar um lenço com álcool puro, que trazia sempre consigo num
frasco para esfregar as mãos, e colocou-o de modo a proteger o nariz e a boca.
Mas mesmo assim não aguentava o cheiro por muito tempo. Para não ter que voltar
constantemente à superfície pediu-me para lhe molhar o lenço com álcool sempre
que necessitasse. Foi dramático.
Conseguiu finalmente separar a parte direita do tronco do defunto, incluindo
o braço, evitando as vísceras (o foco do mau cheiro), que se levou em seguida
para a casa mortuária do cemitério, onde um de nós serrou o pulso do cadáver e
colocou a mão no frasco com formol. Tivemos sorte porque tinha havido um
processo de mumificação das extremidades do corpo, o que tornava possível a
recolha de impressões digitais. O passo seguinte foi a entrega no IML do frasco
com a mão.
Os técnicos do IML fizeram um trabalho notável. Cortaram o indicador
direito, aqueceram o dedo, amaciaram-no e massajaram-no. A seguir procederam a
um corte delicado com um bisturi em volta do dedo, a meio, e retiraram a pele,
que ficou com um formato de “meia-cana”. Depois de seca, a pele foi levada para
a sede da PJ onde os nossos técnicos de dactiloscopia conseguiram retirar a
respetiva impressão digital e compará-la com a do documento militar,
provando-se assim que se tratava da mesma pessoa.
Se bem me recordo, o caso tinha a ver com uma questão passional em que a
causa da morte terá sido envenenamento. Mas o que ficou para a história foi a
identificação do cadáver.
Atrás
de tempo, tempo vem
O Decreto-Lei n.º 275-A/2000 fez com que fossem transferidos,
principalmente para a PSP, mas também para a GNR, cerca de 90% dos inquéritos a
cargo da PJ.
Era uma reivindicação antiga da generalidade dos funcionários de
investigação criminal, mas já nessa altura havia quem a criticasse (eu apoiei)
com o argumento de que a PJ, ao ser-lhe retirada a pequena criminalidade iria
perder muita informação útil para a resolução de crimes mais complexos. Além
disso, o facto de se perder o contacto direto com a "arraia-miúda",
acabaria por, a médio ou a longo prazo, ter consequências nefastas para a
investigação criminal.
*
Quando se aventou a hipótese das habilitações necessárias para concorrer
à PJ passarem a ser licenciaturas, houve vários tipos de reações. Eu fui um dos
céticos.
Por essa altura pensava que o que se ganhava em capacidade tecnológica e
conhecimentos do Direito, perdia-se na perspicácia, que está diretamente ligada
ao traquejo adquirido na vida real, que do meu ponto de vista era essencial
para o êxito da investigação criminal. Muitos dos agentes que conheci tinham
sido profissionais noutras áreas desde muito jovens, incluindo o operariado,
antes de concorrerem à PJ. Esta variedade de experiências de vida, que
enriquecia a investigação criminal, iria perder-se porque a generalidade dos
licenciados candidatar-se-iam logo após terem terminado os seus cursos. Ou
seja, a sua experiência de vida iria ser muito influenciada pelo ambiente
estudantil, que não lhes dava o traquejo necessário para enfrentar a vida real
que iriam encontrar no dia-a-dia na investigação criminal.
Os polícias, pensava eu, não tinham de ser especialistas em Direito. Bastava-lhes
ter uma noção ampliada e direcionada para o concreto, sem ter de passar pelo
estudo da sua vertente especulativa. Tinham era de saber disposições práticas e
organizativas essenciais para poderem exercer a sua profissão com competência.
Por outro lado, se antes havia quem se aproveitasse da PJ como trampolim
para voos mais altos, com a introdução das licenciaturas corria-se o risco
desse fenómeno se ampliar, o que seria bastante negativo para a instituição.
Havia uma outra questão que me intrigava e que tinha a ver com a relação
PJ/MP ou vice-versa, que nunca foi exemplo para coisa nenhuma: Como será esta
relação – perguntava a mim próprio - quando os investigadores da PJ tiverem o
mesmo nível de formação que os magistrados do MP? Será que vai haver uma maior
aproximação, ou mesmo uma colaboração aberta e franca, tendo em conta que os
objetivos a prosseguir vão no mesmo sentido? Só que o poder não pactua com a
racionalidade. E quem tem, de facto, o poder, é o MP.
Os argumentos em contrário apontavam para a necessidade dos
investigadores criminais serem mais qualificados para poderem acompanhar a
evolução de uma sociedade cada vez mais sofisticada.
A este argumento costumava responder com alguma ironia, dizendo: «Se a
sociedade continuar a desenvolver-se a este ritmo de qualificação, o que parece
ser a tendência, daqui a alguns anos os investigadores da PJ serão professores
doutores.»
Um outro argumento era de que só com a entrada de licenciados seria
possível manter o nível dos nossos ordenados.
Esta medida foi implementada através do Decreto-Lei n.º 275-A/2000.
*
Hoje há quem afirme que a PJ se "aburguesou", transformando-se
numa polícia com mentalidade elitista. Outros dizem que o modo de investigar
passou a ser essencialmente de natureza técnica, em que a prova testemunhal
deixou de ser valorizada pelos tribunais. Por outro lado, há quem argumente
que, pelo facto de vivermos numa sociedade do conhecimento, os criminosos estão
mais bem preparados para se defenderem das acusações que lhe são imputadas, o
que dificulta sobremaneira o trabalho do investigador. A própria sociedade
civil tem uma maior consciência dos seus direitos e o individualismo cerceia os
deveres morais de cidadania.
Ainda sou do tempo em que éramos nós o centro da investigação criminal,
ou seja, os que construíam o puzzle
da constituição da prova, sem interferência direta do MP, a não ser em casos
pontuais, em que nos eram solicitadas diligências clarificadoras, necessárias
para a dedução da acusação.
Quando os magistrados do MP se “autopromoveram” a polícias, no exercício
do poder que a Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro lhes conferiu com a titularidade
da ação penal, começaram a delegar cada vez menos na PJ a investigação
criminal, principalmente desde que os inspetores estão ao seu nível académico.
Preferem outros órgãos de polícia mais obedientes que cumpram as suas ordens
sem levantar questões. Ultimamente têm utilizado instituições do Estado, como,
por exemplo, a Autoridades Tributárias e Aduaneiras para executarem diligências
de investigação criminal em crimes que, pela sua importância, impacto público e
complexidade, como é o "caso Sócrates", deveriam estar sob a alçada
da PJ. A banalização desta atividade é perigosa porque pode pôr em causa o
exercício de uma justiça justa.
O facto de a maioria dos portugueses gostar de futebol e dar
"bitates" de natureza técnica ou tática sobre os jogos, não faz deles
treinadores profissionais do desporto rei.
Alguns amigos com quem trabalhei vários anos e que continuam em serviço,
dizem-me que sou o último dos românticos. Se na investigação criminal deixar de
haver um certo romantismo é porque alguma coisa vai mal.
*
Esta é uma profissão em que se fazem amigos para a vida, pelo que
continuo a manter contactos regulares com colegas aposentados e no ativo,
principalmente os que estão colocados na minha antiga secção, ou os que por lá
passaram; uns são do meu tempo e outros são jovens, e menos jovens, inspetores licenciados.
Pelo que tenho constatado, acabei por me convencer de que exigir licenciaturas
como habilitações mínimas para concorrer à PJ, foi uma medida acertada.
Não restam dúvidas que numa sociedade do conhecimento, como é, ou
pretende ser a nossa, polícias de investigação criminal licenciados estão
melhor apetrechados para acompanhar as novas tecnologias e compreender as novas
mentalidades.
Mas é bom não esquecer que a história da PJ sempre se pautou por este
paradigma. A Polícia Judiciária é e sempre foi uma polícia científica. É a sua
mais-valia. O salto qualitativo mais importante após o seu nascimento ocorreu
ainda no Torel em 1957, com a criação do Laboratório de Polícia Científica, do
ARI (Arquivo de Registos e Informações), que incluía a lofoscopia[2]
e da Escola Prática de Ciências Criminais.
*
A Polícia Judiciária, apesar das vicissitudes porque tem passado, mantém
uma boa imagem pública. É o seu principal património. Mas arrisca-se a perdê-lo
se nada fôr feito para alterar a situação atual. Todavia, qualquer alteração a
ser feita no sistema deve ter como objetivo o interesse coletivo dos
portugueses e não interesses corporativos, como lamentavelmente tem sido o
procedimento habitual.
A investigação criminal é uma atividade fantástica. Não acredito que
haja alguém que tenha passado por esta experiência sem ficar marcado para a
vida.
Samuel Antunes Teixeira
(originalmente publicado na revista Investigação Criminal, nº 10, Maio de
2016; republicado no Malomil com permissão do autor)
[1]
- Dados recolhidos de uma entrevista concedida pelo ex-inspetor da PIDE Álvaro
Pereira de Carvalho à jornalista Diana Andringa, para a série da RTP “Geração
de 60” (1990).
(…)
o ex-inspetor da PIDE disse ainda que «depois de tentativas artesanais de escuta, fora Barbieri Cardoso que,
usando as suas boas relações com os serviços secretos franceses, conseguira o
fornecimento de 45 unidades de escuta que permitiam à polícia uma nova
eficiência: assim que o telefone escutado ligava para outro, o sistema – montado
no 4º andar do edifício da sede da PIDE, na R. António Maria Cardoso –
registava o número marcado, começando um gravador a rodar no momento em
que era levantado o auscultador. Evitava-se, assim, a baixa de tensão
sentida nas escutas artesanais, alertando para a entrada de outro aparelho no
circuito.
[2] A organização
desta valência e a formação do pessoal que nela passou a trabalhar contou com a
colaboração de um técnico espanhol.
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