A declaração unilateral de
independência da Guiné-Bissau
Nove feitos e efeitos da Proclamação
I
Em
24 de Setembro de 1973, o Estado da Guiné-Bissau foi solenemente proclamado em
nome do povo por uma Assembleia Nacional Popular (ANP), convocada pelo PAIGC.
Além do texto da Proclamação do Estado, a ANP também aprovou a Constituição da
República e quatro diplomas complementares. O artigo 1.º da Constituição
definia a Guiné-Bissau como uma República soberana, democrática,
anti-colonialista e anti-imperalista, que lutaria pela libertação total, pela
unidade da Guiné-Bissau e do Arquipélago de Cabo Verde e pelo progresso social
do seu povo.
Na
concepção de Amílcar Cabral, assassinado no início desse ano e a quem a ANP atribuiu
o título de “Fundador da Nacionalidade”, tratava-se de um passo transcendente
pois da situação de colónia que dispunha de um movimento de libertação nacional
a Guiné-Bissau passava «à situação de um país que dispõe do seu Estado e que
tem uma parte do seu território nacional ocupado por forças armadas
estrangeiras».
II
Tratou-se dum original modo de criação do
Estado, que levantou variadas questões de direito e relações internacionais,
sobretudo quanto ao reconhecimento de Estado. Apresentou quatro traços
fundamentais:
a)- no século XX, nenhuma outra colónia
conseguiu consumar a sua independência unilateralmente;
b)- não há outro exemplo de promoção de eleições
gerais constituintes por um partido antes de assumir formalmente o poder
soberano;
c)-
apresentava-se como uma solução única (quanto ao processo) e, perante a
sistemática recusa de negociações por parte do Governo português, a única
solução (quanto à conclusão);
d)- o seu reconhecimento universal concluiu-se
no prazo de um ano e, entretanto, foi uma das causas do “25 de Abril” em
Portugal.
III
Apesar
de algumas divergências doutrinárias na matéria, enquanto modo de formação do
Estado a declaração unilateral da República da Guiné-Bissau correspondeu a uma
descolonização, não a uma secessão (mesmo considerando que o novo Estado foi
criado mediante o uso da força). Não foi, no Império Português, o primeiro caso
de declaração unilateral de independência, a cuja via também recorrera o Brasil
em 7 de Setembro de 1822, só reconhecida por Portugal na sequência do Tratado
de 29 de Agosto de 1825.
A partir do fim da II Guerra Mundial a criação
do Estado deixou de ser considerada um fenómeno essencialmente extra-jurídico.
Ora, o direito internacional da descolonização desenvolveu-se nos anos sessenta
e autonomizou-se nos anos setenta do século XX, com base nas lutas de
libertação nacional, no costume internacional e nas resoluções da ONU e
assentou em quatro núcleos:
a)- a evolução do princípio da
autodeterminação para direito à autodeterminação e independência dos povos
coloniais (e, mesmo, jus cogens);
b)- o reconhecimento da legitimidade das lutas
(armadas) de libertação nacional;
c)- o estatuto dos movimentos de libertação
como sujeitos de direito internacional, enquanto únicos e autênticos
representantes dos respectivos povos, dotados de um estatuto proto-estadual (de
que o PAIGC foi o “piloto” e modelo);
d)- este direito da descolonização não foi
igual e totalmente aceite por todos os Estados e só parcialmente foi
democrático (sobretudo, pela desvalorização das eleições e referendos
constituintes).
Em suma, o processo de independência da
Guiné-Bissau fundou-se primacialmente no princípio da legitimidade, isto é, nos
interesses e valores da autodeterminação dos povos coloniais, com relativização
do princípio da efectividade (que é, sim, a condição prioritária da secessão). Comprovou
que a autodeterminação dos Povos foi constitutiva (não foi a libertação que
nasceu do direito, foi o direito que surgiu da libertação) e que a complexidade
do direito à autodeterminação levou a que ele se exprimisse de modo pluriforme
e pluridimensional.
IV
Embora
a evolução histórica propendesse a considerar a titularidade (e plenitude) da
soberania da metrópole uma sobrevivência do sistema colonial, devendo a
“potência administrante” limitar-se a exercer uma missão de serviço público,
cabia-lhe organizar o processo de independência pelo que a formação do novo
Estado exigia o seu acordo ou concessão.
Porém,
a partir de 1945, o reconhecimento dos novos Estados tornara-se declarativo e
mera rotina: os inúmeros Estados africanos, asiáticos e americanos que se tornaram
independentes com o acordo da "potência administrante" foram
generalizadamente reconhecidos, singular e colectivamente, pela comunidade
internacional, consumando-se o processo com a admissão imediata na ONU.
V
Na
Ásia, a descolonização apresentara, no imediato pós-guerra, dois casos pouco
marcantes de declaração unilateral: a Indonésia e o Vietname do Norte. Ora, quanto
à República da Guiné-Bissau, a incidência do princípio da autodeterminação
levou a uma “efectividade qualificada”, pois os requisitos da estabilidade ou
permanência enfatizados pela prática do século XIX tornaram-se secundários e o
direito à autodeterminação serviu para legitimar um reconhecimento de Estado
que, noutra hipótese, seria prematuro.
Esta
última conclusão terá sido confirmada pelos dois casos de declaração unilateral
que mais se aproximaram do processo da Guiné-Bissau, e que, actualmente, se
encontram “bloqueados”: a República Árabe Sarauí Democrática (RASD), proclamada
em 27 de Fevereiro de 1976, e a Autoridade Palestiniana desde 15 de Novembro de
1988. Diferente de todos (embora também seja um caso de descolonização) foi a
independência de Timor-Leste, proclamada unilateralmente pela Frente
Revolucionária do Timor-Leste Independente (FRETILIN) em 28 de Novembro de 1975
e só internacionalmente reconhecida, num processo dirigido pela ONU, a 20 de
Maio de 2002, após ocupação indonésia.
VI
O
sucesso da declaração unilateral da República da Guiné-Bissau apresentou cinco
particularidades:
a)- culminou uma formação do Estado (em
sentido amplo) realizada “passo a passo” e cujo momento de nascimento (em
sentido restrito) pertenceu a uma assembleia soberana, reunida no território;
b)-
a proclamação foi concebida por um movimento de libertação nacional, representando
o povo na sua integralidade, detendo a exclusividade dessa representação e
exercendo funções do Estado antes de o Estado estar juridicamente formado; por
isso, a República da Guiné-Bissau surgiu, em grande medida, como mera
“sucessora” do PAIGC;
c)-
diplomaticamente, a proclamação beneficiou do conselho e apoio da Argélia,
tornou-se um “quebra-cabeças” para a diplomacia portuguesa, alcançou um
imediato e amplo reconhecimento – por grande número de Estados, pela ONU (que,
em 2 de Novembro de 1973, em resolução da Assembleia Geral, se felicitou pelo
acesso à independência e considerou ilegal a presença portuguesa no território
da Guiné-Bissau, exigindo a retirada das respectivas forças armadas) e pela OUA
(onde, em 20 de Novembro de 1973, foi admitida como 42.º Estado membro) – colocou
um dilema aos Estados Unidos, França e Reino Unido como membros permanentes do
Conselho de Segurança e distanciou o Brasil da política africana portuguesa;
d)-
a existência da República da Guiné-Bissau condicionou a descolonização
portuguesa;
e)-
o processo da independência unilateral completou-se em 17 de Setembro de 1974
quando, com “apadrinhamento” português, a República da Guiné-Bissau passou a
ser o 138.º membro da ONU, admitida por unanimidade e aclamação.
VII
A
Constituição Política, embora do tipo balanço-programa, pretendeu instituir um
Estado de legalidade. Foi “outorgada”, desenvolvendo o “Programa Mínimo” do
PAIGC.
A
organização constitucional do poder derivava da matriz soviética: os princípios
da hegemonia do PAIGC (isto é, da direcção política, intelectual e moral do
Estado e da sociedade) e da "democracia nacional revolucionária"
(isto é, da transição para o socialismo) reflectiam-se, sobretudo, em dois
domínios: primeiro, no estatuto do PAIGC, definido constitucionalmente como
força política dirigente e estatutariamente organizado segundo o “princípio do
centralismo democrático"; depois, numa organização do poder político
assente na concentração e unidade do "poder de Estado", sem separação
de poderes.
VIII
O
Acordo de Argel, de 26 de Agosto de 1974, celebrado entre o Governo português e
o PAIGC, consagrou as duas exigências constantes da Declaração do Comité Executivo
da Luta do PAIGC, de 6 de Maio, para uma solução política da guerra e abertura
de conversações: a) reconhecimento da República da Guiné-Bissau; b)-
reconhecimento do direito à independência de Cabo Verde. A ambas acedeu o Governo
português e, por isso, do Acordo de Argel não consta qualquer menção a
autodeterminação ou “concessão” de independência quanto à Guiné-Bissau, sim e
apenas ao reconhecimento de jure da
República da Guiné-Bissau.
Além
do reconhecimento (de que decorriam a saída das forças armadas portuguesas e o
desarmamento das forças africanas) e da mútua promessa de cooperação futura,
nada mais, nem quanto a pessoas nem quanto a bens. Isto é, o Acordo de Argel
regulou reconhecimentos e a partida das tropas portuguesas mas não a sucessão
de Estados.
Mais
do que isso. O Acordo Argel não só abriu a descolonização portuguesa como
definiu o seu modelo: independência rápida mediante acordo com os movimentos de
libertação nacional, aceitando a sua legitimidade e exclusividade de
representação.
IX
Em
19 de Outubro de 1974 ocorreu a “tomada” de Bissau. Na terminologia oficial,
terminava o período da “libertação total” e começava a fase da “reconstrução
nacional” (cujas maiores expressões iriam ser o III Congresso do PAIGC em 1977
e a frustrada Constituição de 1980, ambas em função do “Programa Maior” do
PAIGC).
O
PAIGC tomou todo o poder. Convolou-se em Partido-Estado. Bissau tornou-se a
“cidade-Estado” do território e devorou a própria luta de libertação.
(intervenção, em
25/11/2015, no 25.º aniversário da Faculdade de Direito de Bissau)
António
Duarte Silva