O Leão de Flensburg no Arsenal de Berlim, ca. 1868
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Cópia do Leão de Flensburg, Wannsee, ca. 1880
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Vista do Bergpark com o Leão, ca. 1892
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Desmantelamento do Leão em Bergpark, 1938
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Transporte do Leão de Bergpark para Heckeshorn, 1938
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O Leão de Wannsee prestes a ser transportado para restauro, 2005
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Haus der
Wannsee-Konferenz.
Saí de lá como entrei: sozinho. Mas abalado – muito – pela visão dos
documentos dactilografados da reunião havida naquela casa em 20 de Janeiro de
1942, o encontro que determinou a Solução Final. Mais do que as terríveis
fotografias do Holocausto, que todos já vimos em tantos lugares, o que ali mais
me impressionou, naquelas margens do Lago Wannsee, numa villa burguesa e elegante dos arredores de Berlim, foi poder
folhear a cópia de um dossier com as
actas da conferência em que altos funcionários do III Reich organizaram o
extermínio de milhões de pessoas. Quantas pessoas morreram por cada página que
folheei? Nem sei.
Cá fora, depois da visita, os jardins da casa e um dia soalheiro. Barcos a
velejar no lago, muitos. Aguardava o autocarro de regresso à estação de comboio
quando, ao longe, no fundo de uma alameda de grandes árvores, vi uma estátua
imponente. Um leão, de costas. O leão de Wannsee.
O leão de Wannsee é uma cópia de outro leão. Em Julho de 1850, para
comemorar a vitória sobre as tropas do Schleswig-Holstein na batalha de Isted
(ou Idstedt), as autoridades dinamarquesas encomendaram ao escultor Hermann
Wilhelm Bissen uma estátua em bronze de um leão. Era um animal simbólico, pois
quer nas armas da Dinamarca quer nas do Schleswig existem leões. Como existiam
leões, mas de verdade, de pele e juba, no Jardin
des Plantes, em Paris. Bissen foi até lá, para ver e desenhar um leão in vivo. Quando regressou à Dinamarca, o
escultor fez um modelo de um leão, em tamanho natural, que não sei se ainda
existe.
Em 25 de Julho de 1862, no 12º
aniversário da batalha de Isted, a estátua foi inaugurada, com pompa e
cerimónia, junto ao Cemitério de Santa Maria, em Flensburg. À festa
compareceram várias celebridades do reino da Dinamarca. Entre elas, um
escritor, Hans-Christian Andersen. Os alemães viram neste gesto uma provocação,
já que o leão poderia ter sido erguido em Copenhaga ou no local da batalha, em
Isted, mas os dinamarqueses escolheram colocá-lo em Flensburg, a maior cidade
do Schleswig, num acto de simbolismo vitorioso.
Mal haviam passado dois anos sobre esta inauguração triunfal quando, em
1864, na sequência da batalha de Dybbøl, a Dinamarca foi forçada a ceder à
Prússia os territórios de Schleswig e Holstein. O leão ficou, portanto, do lado
germânico da fronteira. Alguns nacionalistas germânicos, por certo mais
exaltados, tentaram destruir o leão da Dinamarca. Tiraram-lhe a cauda e parte
do dorso e só não lhe fizeram mais mal porque entretanto chegaram as
autoridades. Para evitar mais desmandos, o chanceler Bismarck determinou que a
estátua fosse deslocada do Velho Cemitério de Flensburg para o pátio do
edifício-sede do governo do Schleswig.
Em 1867, por ordem do general Friedrich von Wrangel, o Leão foi trazido de
Flensburg para a capital da Prússia, como um troféu de caça. Então, o rei
Guilherme I ordenou que fosse colocado no pátio do Arsenal de Berlim, onde aí
permaneceu até 1878. O Arsenal seria transformado num museu, não havendo espaço
para continuar a alojar o leão da Dinamarca. De novo o removeram do lugar onde
majestosamente repousava, transferindo-o para a região de Lichterfelde. Ficou
no pátio da Academia de Cadetes. Imperturbável, permaneceu ali vários anos,
mais de seis décadas. Pelo leão de bronze passaram duas guerras mundiais.
Assistiu ao Holocausto que altos funcionários nazis arquitectaram numa reunião
que durou noventa minutos, nas margens do Lago Wannsee.
O Leão em Berlim-Lichterfelde,
quando o edifício servia de aquartelamento ao Leibstandarte Adolf Hitler,
ca. 1942
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Acabada a 2ª Guerra,
derrotada a Alemanha, a Dinamarca requereu a devolução do leão. É espantoso
pensar que, em 1945, quando a Europa saía daquela que foi provavelmente a pior
catástrofe da sua História, as autoridades dinamarquesas se tivessem lembrado
de uma estátua em bronze de um leão. A ideia partiu de um jornalista, Henrik V.
Ringsted, correspondente em Berlim do jornal dinamarquês Politiken. Rapidamente o ministro dos Estrangeiros da Dinamarca,
John Christmas Møller, reclamava a estátua, escrevendo aos Aliados: «A
remoção deste monumento aos mortos, que neste país é considerado um santuário
nacional, e a sua erecção numa academia militar alemã causou um ressentimento
que ainda hoje subsiste em largas franjas do povo da Dinamarca». Quase um
século depois de o terem perdido, os dinamarqueses queriam o seu leão de
regresso a casa. A estátua era mais do que ela, como sucede com todos os
símbolos. Em Outubro de 1945, o general Dwight D. Eisenhower acedeu ao pedido.
O leão foi novamente desmantelado e, a 8 de Outubro de 1945, colocaram-no nas
traseiras do Real Museu do Arsenal de Copenhaga, na Praça Søren Kierkegaard. Ainda que numa instalação provisória,
com o plinto em madeira, a estátua seria inaugurada a 20 de Outubro de 1945,
numa cerimónia a que compareceu o rei Christian X. Deste monarca já se disse
que, durante a guerra, ostentou nas suas vestes a Estrela de David num gesto
admirável de solidariedade para com o povo judaico e de resistência passiva à
ocupação germânica. Ao que parece, a história não corresponde à verdade: os
judeus da Dinamarca não eram obrigados a andar em público com a Estrela de
David. O que o rei fez, isso sim, foi caminhar diariamente pelas ruas de
Copenhaga sem qualquer segurança pessoal. Mais ainda, escreveu no seu diário
pessoal que, se os judeus do seu país fossem ameaçados, ele próprio passaria a
usar ao peito a Estrela de David. Além destas palavras, financiou o transporte
de muitos judeus da Dinamarca para a Suécia, de onde puderam fugir ao plano de
extermínio delineado nas margens do Lago Wannsee.
A inauguração da estátua, em Copenhaga.
Outubro de 1945
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Entre 1945 e 1947, além do leão, muitos dinamarqueses queriam de volta o
Schleswig inteiro. A classe política dividiu-se em torno do assunto e, quando
as fronteiras foram fixadas em definitivo, a possibilidade de retorno do leão a
Flensburg foi liminarmente rejeitada. O tempo, porém, é um grande escultor,
capaz de mover até estátuas de bronze. No final dos anos noventa do século
passado, abriu-se na Dinamarca mais uma discussão sobre o leão de Flensburg. Em
1998, no decurso de um debate parlamentar, a ministra da Cultura, Elsebeth
Gerner Nielsen, defendeu que a estátua deveria regressar a Flensburg. O
argumento, uma vez mais, acusava algum nacionalismo: segundo a ministra, aí
vivia uma importante comunidade dinamarquesa. Outros pensaram em colocar o
monumento num lugar distinto, e a
Fundação Carlsberg ofereceu-se até para pagar os custos de transporte e
acomodação do felídeo de bronze. Um comité da cidade de Fredericia, que alberga
uma parcela significativa da obra do escultor Hermann Bissen, também
reivindicava o leão. A estátua seria restaurada e, uma vez mais, reinaugurada
pela ministra da Cultura da Dinamarca, a mesma que advogara a ida do leão para
Flensburg. A cerimónia de reinauguração teve lugar a 25 de Julho de 2000 –
sintomaticamente, o 150º aniversário da batalha de Isted… – e a ministra de
novo afirmou que o leão de bronze deveria regressar ao Schleswig. O conselho
municipal de Flensburg solicitaria a devolução do bicho e o governo da
Dinamarca acedeu ao pedido. Em 10 de Setembro de 2011, o Leão regressou ao
Velho Cemitério de Flensburg, numa cerimónia a que compareceu Joachim Holger
Waldemar Christian, príncipe da Dinamarca, 6º na linha sucessória.
A inauguração da estátua, em Flensburg.
Setembro de 2011
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Em bom rigor, e como se viu, há dois leões nesta história, o original e a
cópia. O original andou para cá e para lá, só há pouco ganhou repouso, nem se
sabe se eterno. A cópia, talvez por ser mera cópia, foi deixada em sossego no
seu lugar. Em 1863, o banqueiro berlinense Wilhelm Conrad adquiriu a área de
Wannsee para aí edificar uma zona residencial de luxo. Em 1874, mandou fazer
uma cópia do Leão de Flensburg e colocou-a no Bergpark. A cópia, de zinco, teve
até direito a uma rua, a Strabe zum Löwen, por onde passei. Depois da morte de
Conrad, os herdeiros venderam a propriedade e o leão foi algo maltratado. Em
1919, roubaram-lhe a cauda e arrancaram-lhe os dizeres do plinto. A imprensa
dinamarquesa, em 1934, lamentou o estado de degradação do animal. Em 1938,
quando o mundo se encaminhava para o abismo da guerra, o leão foi levado para
Heckeshorn. No entanto, nada mais foi feito. Só em 2005 restauraram o Leão de
Wannsee.
E ele lá está, em repouso, olhando altivamente o imenso lago e o seu azul
profundo. Aí o encontrei por acaso, enquanto tentava esquecer-me do que vira a
poucos metros dali, folhas dactilografadas por assassinos de secretária. Wannsee será sempre recordada não por
causa da estátua de um leão mas por um encontro de burocratas que levou à morte
de milhões de seres humanos.
Quando pensei contar esta
história, reparei que todas as fotografias que tirara em Wannsee se tinham
esfumado do meu computador. Não eram grandes fotografias, mas eram as minhas,
turísticas, as que fizera quando estivera ali, nas margens daquele lago tão
belo quanto sinistro, numa manhã soalheira de um sábado de Abril. Na Internet,
existem centenas ou milhares de imagens do Leão de Wannsee, mas nenhuma teria o
mesmo valor do que aquelas, pois foram essas que eu vivera. A muito custo, com
muitos custos, consegui recuperá-las. Como na história dos leões de Flensburg e
de Wannsee, nenhuma cópia substituiria o original. Os alemães do Schleswig,
como os dinamarqueses de Copenhaga, poderiam ter feito uma réplica da estátua.
Aliás, o banqueiro Wilhelm Conrad fizera-o, e a sua cópia da estátua do leão
sempre andou por ali, em Wannsee, entre o Bergpark e Heckeshorn, sem suscitar
problema ou levantar celeuma. Isto apesar de a réplica ostentar no plinto a
efígie de um príncipe da Prússia e não, como acontecia no original, medalhões
com as figuras de quatro generais dinamarqueses (quer dizer, o Leão de
Wannsee tinha um atributo simbólico exactamente oposto ao do Leão de
Flensburg).
Tenho azar a estátuas de leões de escultores dinamarqueses. Há muitos anos
– mais de trinta –, quase ia perdendo também as fotografias que tinha tirado de
outro leão, o leão de Lucerna. Estátua intrigante e comovente, da autoria de
Bertel Thorvaldsen, que evoca os guardas suíços massacrados durante a Revolução
francesa e que Mark Twain descreveu, com poético exagero, como «the most
mournful and moving piece of stone in the world».
Bertel Thorvaldsen, Leão de Lucerna, 1820-21
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O Leão de Wannsee não suscita a comoção dolorosa do seu congénere da Suíça.
Como obra artística, não passa de uma réplica, feita aliás num material menos
nobre do que o original. Custeada por um banqueiro, pouco se moveu do local
onde a colocaram, ao invés da sua gémea de bronze, que passou a vida em
constante sobressalto. E, no entanto, sem que saibamos como nem porquê, a estátua
de Wannsee irradia uma estranha e tranquila força. Talvez porque esteja situada
ao lado da casa onde se planeou, com milimétrico rigor, uma das maiores
tragédias do nosso tempo. Ou, mais provavelmente, porque tento tirar dali o que
só existe dentro de mim. Em todo o caso, assim o senti.
António Araújo