segunda-feira, 30 de junho de 2014

O Leão de Wannsee.

 
 
 







O Leão de Flensburg no Arsenal de Berlim, ca. 1868

Cópia do Leão de Flensburg, Wannsee, ca. 1880

Vista do Bergpark com o Leão, ca. 1892

Desmantelamento do Leão em Bergpark, 1938 
 
Transporte do Leão de Bergpark para Heckeshorn, 1938
 
O Leão de Wannsee prestes a ser transportado para restauro, 2005

 
 

 
Haus der Wannsee-Konferenz.
Saí de lá como entrei: sozinho. Mas abalado – muito – pela visão dos documentos dactilografados da reunião havida naquela casa em 20 de Janeiro de 1942, o encontro que determinou a Solução Final. Mais do que as terríveis fotografias do Holocausto, que todos já vimos em tantos lugares, o que ali mais me impressionou, naquelas margens do Lago Wannsee, numa villa burguesa e elegante dos arredores de Berlim, foi poder folhear a cópia de um dossier com as actas da conferência em que altos funcionários do III Reich organizaram o extermínio de milhões de pessoas. Quantas pessoas morreram por cada página que folheei? Nem sei.
Cá fora, depois da visita, os jardins da casa e um dia soalheiro. Barcos a velejar no lago, muitos. Aguardava o autocarro de regresso à estação de comboio quando, ao longe, no fundo de uma alameda de grandes árvores, vi uma estátua imponente. Um leão, de costas. O leão de Wannsee.
O leão de Wannsee é uma cópia de outro leão. Em Julho de 1850, para comemorar a vitória sobre as tropas do Schleswig-Holstein na batalha de Isted (ou Idstedt), as autoridades dinamarquesas encomendaram ao escultor Hermann Wilhelm Bissen uma estátua em bronze de um leão. Era um animal simbólico, pois quer nas armas da Dinamarca quer nas do Schleswig existem leões. Como existiam leões, mas de verdade, de pele e juba, no Jardin des Plantes, em Paris. Bissen foi até lá, para ver e desenhar um leão in vivo. Quando regressou à Dinamarca, o escultor fez um modelo de um leão, em tamanho natural, que não sei se ainda existe.    
 Em 25 de Julho de 1862, no 12º aniversário da batalha de Isted, a estátua foi inaugurada, com pompa e cerimónia, junto ao Cemitério de Santa Maria, em Flensburg. À festa compareceram várias celebridades do reino da Dinamarca. Entre elas, um escritor, Hans-Christian Andersen. Os alemães viram neste gesto uma provocação, já que o leão poderia ter sido erguido em Copenhaga ou no local da batalha, em Isted, mas os dinamarqueses escolheram colocá-lo em Flensburg, a maior cidade do Schleswig, num acto de simbolismo vitorioso. 
Mal haviam passado dois anos sobre esta inauguração triunfal quando, em 1864, na sequência da batalha de Dybbøl, a Dinamarca foi forçada a ceder à Prússia os territórios de Schleswig e Holstein. O leão ficou, portanto, do lado germânico da fronteira. Alguns nacionalistas germânicos, por certo mais exaltados, tentaram destruir o leão da Dinamarca. Tiraram-lhe a cauda e parte do dorso e só não lhe fizeram mais mal porque entretanto chegaram as autoridades. Para evitar mais desmandos, o chanceler Bismarck determinou que a estátua fosse deslocada do Velho Cemitério de Flensburg para o pátio do edifício-sede do governo do Schleswig.
 
 

 

Em 1867, por ordem do general Friedrich von Wrangel, o Leão foi trazido de Flensburg para a capital da Prússia, como um troféu de caça. Então, o rei Guilherme I ordenou que fosse colocado no pátio do Arsenal de Berlim, onde aí permaneceu até 1878. O Arsenal seria transformado num museu, não havendo espaço para continuar a alojar o leão da Dinamarca. De novo o removeram do lugar onde majestosamente repousava, transferindo-o para a região de Lichterfelde. Ficou no pátio da Academia de Cadetes. Imperturbável, permaneceu ali vários anos, mais de seis décadas. Pelo leão de bronze passaram duas guerras mundiais. Assistiu ao Holocausto que altos funcionários nazis arquitectaram numa reunião que durou noventa minutos, nas margens do Lago Wannsee.


 


O Leão em Berlim-Lichterfelde,
quando o edifício servia de aquartelamento ao Leibstandarte Adolf Hitler,
ca. 1942
 
 
Acabada a 2ª Guerra, derrotada a Alemanha, a Dinamarca requereu a devolução do leão. É espantoso pensar que, em 1945, quando a Europa saía daquela que foi provavelmente a pior catástrofe da sua História, as autoridades dinamarquesas se tivessem lembrado de uma estátua em bronze de um leão. A ideia partiu de um jornalista, Henrik V. Ringsted, correspondente em Berlim do jornal dinamarquês Politiken. Rapidamente o ministro dos Estrangeiros da Dinamarca, John Christmas Møller, reclamava a estátua, escrevendo aos Aliados: «A remoção deste monumento aos mortos, que neste país é considerado um santuário nacional, e a sua erecção numa academia militar alemã causou um ressentimento que ainda hoje subsiste em largas franjas do povo da Dinamarca». Quase um século depois de o terem perdido, os dinamarqueses queriam o seu leão de regresso a casa. A estátua era mais do que ela, como sucede com todos os símbolos. Em Outubro de 1945, o general Dwight D. Eisenhower acedeu ao pedido. O leão foi novamente desmantelado e, a 8 de Outubro de 1945, colocaram-no nas traseiras do Real Museu do Arsenal de Copenhaga, na Praça Søren Kierkegaard. Ainda que numa instalação provisória, com o plinto em madeira, a estátua seria inaugurada a 20 de Outubro de 1945, numa cerimónia a que compareceu o rei Christian X. Deste monarca já se disse que, durante a guerra, ostentou nas suas vestes a Estrela de David num gesto admirável de solidariedade para com o povo judaico e de resistência passiva à ocupação germânica. Ao que parece, a história não corresponde à verdade: os judeus da Dinamarca não eram obrigados a andar em público com a Estrela de David. O que o rei fez, isso sim, foi caminhar diariamente pelas ruas de Copenhaga sem qualquer segurança pessoal. Mais ainda, escreveu no seu diário pessoal que, se os judeus do seu país fossem ameaçados, ele próprio passaria a usar ao peito a Estrela de David. Além destas palavras, financiou o transporte de muitos judeus da Dinamarca para a Suécia, de onde puderam fugir ao plano de extermínio delineado nas margens do Lago Wannsee. 
 

A inauguração da estátua, em Copenhaga.
Outubro de 1945
 
 
 
Entre 1945 e 1947, além do leão, muitos dinamarqueses queriam de volta o Schleswig inteiro. A classe política dividiu-se em torno do assunto e, quando as fronteiras foram fixadas em definitivo, a possibilidade de retorno do leão a Flensburg foi liminarmente rejeitada. O tempo, porém, é um grande escultor, capaz de mover até estátuas de bronze. No final dos anos noventa do século passado, abriu-se na Dinamarca mais uma discussão sobre o leão de Flensburg. Em 1998, no decurso de um debate parlamentar, a ministra da Cultura, Elsebeth Gerner Nielsen, defendeu que a estátua deveria regressar a Flensburg. O argumento, uma vez mais, acusava algum nacionalismo: segundo a ministra, aí vivia uma importante comunidade dinamarquesa. Outros pensaram em colocar o monumento num  lugar distinto, e a Fundação Carlsberg ofereceu-se até para pagar os custos de transporte e acomodação do felídeo de bronze. Um comité da cidade de Fredericia, que alberga uma parcela significativa da obra do escultor Hermann Bissen, também reivindicava o leão. A estátua seria restaurada e, uma vez mais, reinaugurada pela ministra da Cultura da Dinamarca, a mesma que advogara a ida do leão para Flensburg. A cerimónia de reinauguração teve lugar a 25 de Julho de 2000 – sintomaticamente, o 150º aniversário da batalha de Isted… – e a ministra de novo afirmou que o leão de bronze deveria regressar ao Schleswig. O conselho municipal de Flensburg solicitaria a devolução do bicho e o governo da Dinamarca acedeu ao pedido. Em 10 de Setembro de 2011, o Leão regressou ao Velho Cemitério de Flensburg, numa cerimónia a que compareceu Joachim Holger Waldemar Christian, príncipe da Dinamarca, 6º na linha sucessória.  




A inauguração da estátua, em Flensburg.
Setembro de 2011


 
 
 
Em bom rigor, e como se viu, há dois leões nesta história, o original e a cópia. O original andou para cá e para lá, só há pouco ganhou repouso, nem se sabe se eterno. A cópia, talvez por ser mera cópia, foi deixada em sossego no seu lugar. Em 1863, o banqueiro berlinense Wilhelm Conrad adquiriu a área de Wannsee para aí edificar uma zona residencial de luxo. Em 1874, mandou fazer uma cópia do Leão de Flensburg e colocou-a no Bergpark. A cópia, de zinco, teve até direito a uma rua, a Strabe zum Löwen, por onde passei. Depois da morte de Conrad, os herdeiros venderam a propriedade e o leão foi algo maltratado. Em 1919, roubaram-lhe a cauda e arrancaram-lhe os dizeres do plinto. A imprensa dinamarquesa, em 1934, lamentou o estado de degradação do animal. Em 1938, quando o mundo se encaminhava para o abismo da guerra, o leão foi levado para Heckeshorn. No entanto, nada mais foi feito. Só em 2005 restauraram o Leão de Wannsee.   
E ele lá está, em repouso, olhando altivamente o imenso lago e o seu azul profundo. Aí o encontrei por acaso, enquanto tentava esquecer-me do que vira a poucos metros dali, folhas dactilografadas por assassinos de secretária. Wannsee será sempre recordada não por causa da estátua de um leão mas por um encontro de burocratas que levou à morte de milhões de seres humanos.
         Quando pensei contar esta história, reparei que todas as fotografias que tirara em Wannsee se tinham esfumado do meu computador. Não eram grandes fotografias, mas eram as minhas, turísticas, as que fizera quando estivera ali, nas margens daquele lago tão belo quanto sinistro, numa manhã soalheira de um sábado de Abril. Na Internet, existem centenas ou milhares de imagens do Leão de Wannsee, mas nenhuma teria o mesmo valor do que aquelas, pois foram essas que eu vivera. A muito custo, com muitos custos, consegui recuperá-las. Como na história dos leões de Flensburg e de Wannsee, nenhuma cópia substituiria o original. Os alemães do Schleswig, como os dinamarqueses de Copenhaga, poderiam ter feito uma réplica da estátua. Aliás, o banqueiro Wilhelm Conrad fizera-o, e a sua cópia da estátua do leão sempre andou por ali, em Wannsee, entre o Bergpark e Heckeshorn, sem suscitar problema ou levantar celeuma. Isto apesar de a réplica ostentar no plinto a efígie de um príncipe da Prússia e não, como acontecia no original, medalhões com as figuras de quatro generais dinamarqueses (quer dizer, o Leão de Wannsee  tinha um atributo simbólico exactamente oposto ao do Leão de Flensburg).
Tenho azar a estátuas de leões de escultores dinamarqueses. Há muitos anos – mais de trinta –, quase ia perdendo também as fotografias que tinha tirado de outro leão, o leão de Lucerna. Estátua intrigante e comovente, da autoria de Bertel Thorvaldsen, que evoca os guardas suíços massacrados durante a Revolução francesa e que Mark Twain descreveu, com poético exagero, como «the most mournful and moving piece of stone in the world».
 
Bertel Thorvaldsen, Leão de Lucerna, 1820-21
 

 
O Leão de Wannsee não suscita a comoção dolorosa do seu congénere da Suíça. Como obra artística, não passa de uma réplica, feita aliás num material menos nobre do que o original. Custeada por um banqueiro, pouco se moveu do local onde a colocaram, ao invés da sua gémea de bronze, que passou a vida em constante sobressalto. E, no entanto, sem que saibamos como nem porquê, a estátua de Wannsee irradia uma estranha e tranquila força. Talvez porque esteja situada ao lado da casa onde se planeou, com milimétrico rigor, uma das maiores tragédias do nosso tempo. Ou, mais provavelmente, porque tento tirar dali o que só existe dentro de mim. Em todo o caso, assim o senti.
 
António Araújo
 
 
 

 
 




 

domingo, 29 de junho de 2014

Violência doméstica.



 





O livro não é recente mas o Malomil, temos pena, também não é uma montra de novidades. Publicado em 2006 pela The MIT Press, Domesticity at War, de Beatriz Colomina, é obra que merece brevíssima nota (uma recensão a sério, aqui). Os Cold War Studies estão, já há algum tempo, em grande voga nos meios académicos. O nome de John Gaddis – e o seu já clássico sobre a Guerra Fria, até editado entre nós – impõe-se a todos quantos se interessem por conhecer melhor aquela age of anxiety. Será que já saímos totalmente dela? Beatriz Colomina não responde à questão – nem, se quisesse, seria capaz de o fazer. O seu livro tem um propósito mais circunscrito e, por isso mesmo, particularmente apelativo. Beatriz Colomina, professora de arquitectura em Princeton, analisa o modo como a guerra – em especial, a Guerra Fria – nos entrou portas adentro. Nos Estados Unidos, mais do que noutros lados. Mas ninguém ficou indiferente às transformações impostas pelo surdo conflito entre dois grandes blocos. O que deve o Bairro dos Olivais, por exemplo, à disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética?
 
 

Martha Rosler, Cleaning The Drapes
(da série House Beautiful. Bringing War Home), 1969-72
 
 
           Colomina conduz-nos por vários pontos, desde a Dymaxion Deployment Unit, uma casa de ferro planeada para servir de abrigo nuclear, aos modelos de urbanismo e everyday life de Charles e Ray Eames, passando pelos inúmeros produtos e materiais que foram criados no contexto da guerra e posteriormente adaptados a usos domésticos. O livro, atenção, não analisa apenas o mais óbvio, isto é, as formas, por vezes caricatas e risíveis, como os ocidentais, em particular os norte-americanos, experienciaram a ansiedade de um  iminente Inverno atómico (li, não sei bem onde, que um míssil esteve prestes a ser disparado por se ter detectado uma intrusão numa base militar americana; no final, descobriu-se que era um urso castanho que por ali andava, a tentar pular a cerca e armado em pardo). A obra de Colomina é mais vasta, procurando abracar diversas facetas da cultura do pós-guerra. Com apontamentos curiosíssimos – por exemplo, sobre o modo como os americanos vêem o relvado (o lawn à frente de cada casa ou o logradouro) como um direito inalienável e um local patriótico. Isso explica muita coisa: o cuidado com a relva bem aparada, o tiro dado no intruso que inadvertidamente atravessa o quintal das traseiras. A domesticidade tornou-se uma arma, uma arma de defesa ou de arremesso no contexto da Guerra Fria. Um território inexpugnável, o abrigo mas também o ponto de irradiação propagantística de uma cultura e de um estilo de vida, supostamente «melhores» do que os do inimigo. A diferença entre público e privado esbateu-se a partir do momento em que, paradoxalmente, se elevou o lar a último reduto de paz radiosa e baby-boomer mas, em simultâneo, a montra de exposição opulenta da superioridade do american way of life. De súbito, os americanos preocuparam-se em ter casas práticas e funcionais, passaram a cuidar mais da aparência dos seus interiores, num misto de sofisticação apressada e exibicionismo para os vizinhos da frente ou para os colegas de escritório do marido. O livro conjuga bem com outro, de Victoria de Grazia, Irresistible Empire. Já não conjuga tão bem com o que disse Hannah Arendt sobre as origens do totalitarismo; este começa quando se esbatem as fronteiras entre público e privado. Mas isso são contas de outro rosário. Livro muito bom, com um senão: para fazer uma coisa «diferente», a obra é apresentada num «pack» com dois livrinhos. O texto em baixo, as imagens no bloquinho de cima. A legibilidade sai muito castigada. Às tantas, desiste-se de acompanhar a leitura com as visão das imagens (por sinal, muito boas). Já não é a primeira vez que a The MIT Press gosta de se aventurar nestas obras «giras», provavelmente pensando que assim os leitores se sentem mais atraídos para comprar, folhear… mas não ler. É pena. Mas, num balanço global, Domesticity at War é um livro que merece e justifica a nossa melhor atenção, na companhia da série de criações de Martha Rosler, nos anos 60 e 70, intitulada Home Beautiful. Bringing the War Home.
 
 

sábado, 28 de junho de 2014

Capas africantistas transalpinas.

 
 
 









 
 
 
 
 
 
 

Desnudismo Integral, de Laura Brunet.

 
 
(Do Baú da Herança Camarido)



O gajo de 1979.

 
 
 
Maverick 1979
 
O gajo de 1979 acorda, toma banho e consulta a agenda. Sim, o dinossauro de 79 ainda tem agenda de papel, com encadernação e argolas, coisa brega de sujeito que ainda não sabe que há apps que funcionam como agenda no ecrã do telemóvel. Não surpreende: o gajo de 79 é uma besta analógica. Depois de consultar a agenda, o gajo de 79 apanha o Metro em direcção ao primeiro compromisso do dia. Na carruagem, levanta-se para dar lugar à velhota. Ele é o único que vê a senhora. Não surpreende: o resto está tocando, cutucando, masturbando as apps dos iphones, dos ipads e demais quinquilharia indispensável ao gajo de 2014. Uma sinfonia de onanismo internético que transforma o gajo de 1979 num cavalheiro do século XIX, perdão, num marquês do XVIII. Um reaccionário, portanto.
Pobre coitado. Durante o trabalho, consegue passar várias horas concentrado numa só coisa. Não pára para fazer dezenas de mijinhas internéticas no facebook ou twitter. No fundo, é um bicho do mato sem consciência da necessidade da interactividade na vidinha moderna. Sim, isso de andar a postar de 10 em 10 minutos não é défice de atenção, é apenas o zénite da sociedade de informação. Só o idiota de 79 é que não percebe isto. Quando regressa a casa, o gajo de 79 já traz a filha ao colo e, nesse momento, ele passa a ser a velhinha. Ninguém se levanta para lhe dar lugar. O gajo de 79 tem assim de distribuir rotativos à Van Damme para conseguir um mísero lugar sentado. Então não vê que eu estava a jogar Candy Crush?
Quando chega a casa, o gajo de 79 procura falar com os amigos, mas não consegue. Não tem facebook, twitter ou uma coisa chamada whatsapp. O gajo de 79 só quer ver a bola, beber imperiais e comer tremoços, mas isso agora só mesmo com marcação, se possível pelo whatsapp. Quando, por mero acaso, encontra um amigo no café de sempre, ele tenta a conversa, a piada, as gajas, o argumento político, a erudição cinéfila, mas nada. Do outro lado só ouve "espera aí, tenho de ver isto, já te mando por mail". O gajo de 79 ainda pensa em dizer "mas eu não quero me que mandes nada, pá, fala comigo agora", mas cala-se. Vai para casa dormir. Será que há apps para contar carneiros?
 
 
Henrique Raposo
 
 
PS: com um abraço para Gregorio Duvivier.
 
 
 
 
(publicado no Expresso, de 24 de Junho de 2014)
 
 
 
 
 
 

Nem sempre fomos aquilo que somos (Lisboa).

 
 
 




(Do Baú da Herança Camarido)



sexta-feira, 27 de junho de 2014

«Obrigado» é pouco.

 
 
 









 
Ainda estou apalermado com a maravilha que conheci hoje, graças ao António Duarte Silva. A Hemeroteca Municipal de Lisboa, a propósito da Exposição Colonial Portuguesa  (Porto, 1934), comissariada por Henrique Galvão, decidiu oferecer-nos um tesouro, aqui à mão. Inesgotável, infindo, várias e várias publicações d’época, todas digitalizadas e organizadas na perfeição. Um trabalho notável, puro serviço público. Essencial, por exemplo, para estudar a imagem dos negros na cultura visual do século XX português. Lá fora, fizeram isto: http://www.imageoftheblack.com/. Por cá, é urgente que se faça algo semelhante. Até porque há muito património em extinção. Mas, não desesperemos, também há muito património em recuperação – e à sua disposição. Como esta maravilha iconográfica e informativa que a Hemeroteca Municipal de Lisboa nos trouxe. Dizer «obrigado» é pouco.
 
 
 

 

Volunturismo.

 
 




Num célebre artigo de jornal, saído há muitos anos, Alfred Sauvy criou a expressão Tiers Monde, o sucedâneo contemporâneo do Tiers État. E, ao longo de décadas, houve missionários religiosos, cooperantes ideológicos, viajantes do absurdo. Agora, dizem aqui, existem volunturistas.  Gente, geralmente jovem, que vai para África ou outros lugares remotos em busca de um desejo de evasão ou auto-realização pessoal, mais do que por um genuíno propósito de ajuda. Sinais dos tempos: o Instagram ou o Facebook contribuem para a festa e muitos cedem à tentação de colocar imagens suas, muito sorridentes e de colete caqui, com um rancho de neguinhos em redor. O debate talvez não faça sentido. Porventura tudo não passa de um desabafo ou acto de contrição de um ou outro voluntário. Mas também é certo que pode existir muito de «egoísta» nestas expedições exótico-humanitárias. As fronteiras não são fáceis de traçar e é perigosíssimo fazer generalizações. Jamais saberemos onde acaba o voluntarismo e começa o volunturismo. As intenções e as motivações, de resto, são algo secundárias. Não interessa se vão para lá por narcisismo, crença religiosa ou outras razões, desde que isso não prejudique o trabalho  que se propõem fazer. O que importa são os resultados. Se, no terreno, o volunturismo fizer algo de bom por quem precisa, então viva o volunturismo.