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Ao
ser eleito, um novo Papa perfaz duas escolhas simbólicas relativas à sua
identidade recém-adquirida: no próprio momento subsequente à aceitação, a do
nome apostólico por que quer vir a ser conhecido a partir de então; e, um pouco
mais tarde, a das armas que passará a usar como chefe da Igreja.
No
que respeita à onomástica, Joseph Ratzinger quebrou com a tradição dos seus
quatro antecessores imediatos: não se chamou João, nem Paulo, nem ainda João
Paulo – nomes que se inscreviam num desígnio reformador e na homenagem aos que
haviam trilhado tal caminho desde 1958. Escolheu, com ressonâncias bem
diferentes, o nome de Bento, já usado por quinze outros Papas antes dele (o
último dos quais falecera em 1922).
A
quebra da tradição foi porém mais substancial no que respeita às opções
heráldicas tomadas por Bento XVI. O novo Papa escolheu um escudo com a partição
heráldica chamada chapado, carregada
de três figuras (uma concha, uma cabeça de negro ou de mouro, e um urso): armas
complexas, tão ricas do ponto de vista simbológico quão contestáveis na sua
dimensão estética, e que se inscrevem claramente numa tradição germânica.
Mas
a verdadeira revolução heráldica guardava-se para o exterior do escudo de
armas. Praticamente desde que os Papas passaram a usar emblemas heráldicos,
estes foram acompanhados pelas insígnias desta sua dignidade: as chaves de São
Pedro, evocativas da sucessão apostólica; e a tiara, peculiar forma de coroa, pela
qual se pretendia simbolizar o exercício de um poder que era a um tempo
espiritual e temporal.
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Armas de Paulo VI
Armas de João Paulo I
Armas de João Paulo II
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Por
via de tal simbolismo, a tiara era tradicionalmente usada na cerimónia de
coroação dos pontífices. Paulo VI foi o último protagonista deste ritual, em
1963. Depois dele, os Papas renunciaram ao uso dum objecto que parecia
demasiado ligado ao poder temporal. Mas mantiveram o seu uso nas armas, em
conjugação com as duas chaves passadas em aspa. Juntas, estas duas insígnias constituíam
os elementos que, desde o século XIV e no fortemente hierarquizado sistema da
heráldica eclesiástica, identificavam de forma inequívoca os chefes da Igreja
Católica.
Daí
a surpresa perante a renúncia heráldica com que Bento XVI iniciou o seu
ministério. Em vez da tiara, insígnia tradicional e evidente da sua dignidade,
o novo pontífice, mantendo embora as chaves petrinas, combinou-as simplesmente
com uma mitra e um pálio, nenhum dos quais constituía emblema exclusivo do seu múnus (a mitra cabe por direito a todos
os bispos e a alguns cónegos e abades, ditos mitrados; o pálio corresponde normalmente a atributo
metropolitano).
Ao
agir de tal sorte, Bento XVI insistia na dimensão pastoral da sua missão, ao
mesmo tempo que reforçava o carácter colegial do cargo para o qual tinha sido
eleito. Em detrimento dum entendimento simultaneamente místico e soberano do
poder pontifício.
Nesse
sentido, a sua rejeição heráldica inicial trazia já implícita, se não inerente,
a possibilidade de uma plena renúncia futura. Porque traduzia uma
dessacralização do poder do Sumo Pontífice. Bento XVI foi e continuará a ser o
Papa sem tiara (agora emérito). Aguardemos para ver o que fará o seu sucessor.
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Armas do Papa Bento XVI
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Armas do Cardeal Joseph Ratzinger
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Noticiário
heráldico: as armas do Papa Bento XVI
Cada
eleição de um novo pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana representa
sempre, para os heraldistas, um momento de certa expectativa. É sabido que,
após a decisão tomada pelo colégio cardinalício, aquele que é chamado a ocupar
o trono de São Pedro deve designar o nome por que quer passar a ser chamado e
conhecido; tal escolha afigura-se reveladora porque, só por si, representa uma
opção simbólica capaz de transmitir aos fiéis a ideia de uma devoção e
porventura de um programa ou de uma tenção específicos. Não menos importante se
afigura, no entanto, outra escolha simbólica e simbológica que compete ao Papa
recém-eleito: a de definir as suas armas próprias.
Na
tradição heráldica da Igreja Católica, os eclesiásticos têm a liberdade de
escolha das suas armas, podendo ordená-las mediante recurso a três fontes de
inspiração:
·
retomar a heráldica da família a que
pertencem ou na qual pretendem entroncar (genealógica ou simbolicamente);
·
criar armas de fé, recorrendo a símbolos
religiosos que espelhem uma devoção ou vivência particular ou ainda um
determinado programa de vida ou de acção pastoral;
·
recorrer à heráldica de funções ou de
instituições religiosas a que pertencem ou a que se encontrem ligados os seus
percursos eclesiásticos (como por exemplo uma ordem religiosa, uma instituição
de ensino ou formação, uma diocese).
Para
além destes elementos livremente seleccionados por cada sacerdote, e que devem
ser ordenados no interior do escudo em conformidade com as leis da armaria, a
Igreja impõe estritas regras no que respeita aos elementos exteriores ao mesmo
escudo. Tal condicionamento prende-se com o facto de esses elementos exteriores
tornarem patente, por um código devidamente institucionalizado e difundido, as
dignidades, os cargos e os títulos do utente das armas.
Analisemos
pois a heráldica do Papa Bento XVI à luz desta dicotomia que rege a armaria da
Igreja: concentremo-nos primeiro no escudo assumido pelo pontífice, procurando
descortinar-lhe a simbologia, para em seguida nos determos nos seus elementos
exteriores, reveladores do alto cargo ocupado por Joseph Ratzinger.
O
escudo escolhido pelo actual Papa tem um formato boleado, comum na heráldica
eclesiástica e que lembra o aspecto de um cálice, numa possível (ainda que não
explícita) alusão ao mistério da Eucaristia. O campo do escudo apresenta uma
partição invulgar na heráldica pontifícia – um chapado, com o seguinte
ordenamento: chapado de vermelho e de ouro, no campo de vermelho uma vieira do
segundo, no campo de ouro, à dextra uma cabeça de mouro de sua cor, com cabelo
de negro, com lábios, coroa e colar de vermelho e com um brinco de ouro na
orelha, e à sinistra um urso de sua cor em banda, lampassado e carregando um
fardo de vermelho. Os esmaltes presentes nos campos desta partição – vermelho e
ouro – representam uma ruptura com o cromatismo heráldico dos pontífices
anteriores, cujas armas se compunham de bicromias diversas. Pensemos nos
escudos dos quatro antecessores imediatos: João Paulo II optara pelo azul/ouro;
João Paulo I pelo azul/prata; Paulo VI e João XXIII pelo vermelho/prata. Na
verdade, para encontrar armas dominadas pelos esmaltes vermelho e ouro, é
mister remontar a Bento XIV, cujo pontificado decorreu entre 1740 e 1758. Não
sabemos que critérios levaram Joseph Ratzinger a optar pelo cromatismo
vermelho/ouro, mas não deixa de ser assinalável o facto de o último Papa a ter
usado tais esmaltes ostentar o mesmo nome de Bento. Um dos símbolos
tradicionais do poder pontifício, o ombrellino,
usado antigamente nas procissões solenes e hoje identificativo do cardeal
camerlengo que rege os destinos da Igreja na ausência temporária de Papa (sede vacante), é listrado de ouro e de
vermelho. Convirá outrossim assinalar que o vermelho tem antiquíssima tradição
como cor dos pontífices, cujas vestes são brancas e rubras, e mesmo como cor do
campo das armas da Igreja, as quais se ordenam de vermelho com duas chaves
passadas em aspa, uma de ouro e a outra de prata.
Quanto
ao significado da partição adoptada por Bento XVI, o chapado remete para a
figuração de uma capa, veste usada em primeiro lugar pelos monges beneditinos
(o que remete para São Bento como fundador do monaquismo ocidental e como
patrono da Europa) e depois por outras ordens religiosas, e como tal símbolo do
ideal monástico de vivência da fé. O chapado encontra-se pois presente na
heráldica de ordens monásticas, em particular na dos dominicanos, que adoptaram
como armas, na modalidade mais simples, um chapado de prata e de negro, em
nítida representação das vestes próprias destes frades. Esta versão das armas
dominicanas foi incluída no chefe das armas do Papa Bento XIII, oriundo da
ordem dos Pregadores. É interessante notar que os dominicanos exerceram
tradicionalmente o papel de guardiães da ortodoxia, do mesmo modo que Joseph Ratzinger
exerceu durante longos anos o cargo de prefeito da Congregação para a Doutrina
da Fé; nesse sentido, poderá pôr-se a hipótese de o chapado das actuais armas
pontifícias ser uma alusão ao das armas dominicanas.
Tendo
visto o significado da partição e dos esmaltes das armas de Bento XVI,
concentremo-nos agora nas figuras que carregam o escudo. São, como vimos, três:
uma vieira de ouro sobre o campo de vermelho; uma cabeça de mouro na metade
dextra do chapado; um urso na metade sinistra. Antes de prosseguirmos na
análise de cada uma destas figuras, atentemos que o seu número se adapta à
tripartição do escudo.
·
Remete em primeiro lugar para uma
parábola colhida em Santo Agostinho: passeando este santo certo dia pela praia,
encontrou um jovem que se azafamava a tirar água do mar com uma concha,
vertendo-a de seguida num buraco que cavara na areia. Inquirindo Agostinho o
que motivava tal acção, o jovem respondeu-lhe que pretendia esvaziar a água do
mar. Reflectindo sobre a vanidade da actuação do jovem, Santo Agostinho
compreendeu então que a actividade que presenciara era semelhante à do Homem
que procura conhecer a infinidade de Deus, inalcançável para os limitados
recursos da mente humana. A concha simboliza portanto em simultâneo a ânsia e
as limitações do Homem em busca do conhecimento de Deus;
·
Em segundo lugar, a concha constitui,
desde os tempos medievais até aos nossos dias, o símbolo consagrado dos
peregrinos, que a ostentavam nas suas vestes de forma a dar a conhecer a tarefa
que se haviam proposto levar a cabo. Neste sentido, Bento XVI pretende
evidenciar que a passagem do Homem pelo mundo corresponde a uma peregrinação em
busca de Deus.
·
Por fim, a concha faz parte das armas do
mosteiro bávaro de Schotten, junto a Regensburgo, cenóbio a que o actual
pontífice se encontra ligado por profundos laços espirituais, tendo aí dado
aulas entre 1969 e 1977.
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O Mouro de Freising
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A
segunda figura presente nas armas de Bento XVI consiste na cabeça de mouro
representada no campo dextro do chapado. São as armas da diocese-principado de
Freising, existentes desde o século XIV pois está documentado o seu uso pelo
bispo Conrado III em 1316. A cabeça de mouro é uma figura que gozou de certa
difusão na heráldica medieval, associando-se naturalmente ao contacto entre a
cristandade e o islão. Na armaria germânica, esta figura recebe a designação de
caput ethiopicum, e encontra-se fortemente relacionada com a diocese de
Freising, a qual terá servido como um dos seus principais polos de difusão. Não
se conhece ao certo, todavia, o significado original deste elemento exótico das
armas da diocese de Freising; poder-se-á conjecturar que se trata de uma forma
de lembrar o trabalho de difusão da mensagem cristã junto das populações
seguidoras de outra fé. As armas da diocese de Freising transitaram para as da
arquidiocese metropolitana de Munique e Freising, criada em 1818, de que Joseph
Ratzinger foi titular entre 1977 e 1982. Nas armas dos arcebispos de Munique, é
norma a conjugação da simbólica da respectiva diocese (a cabeça de mouro) com
elementos próprios escolhidos pelo detentor do cargo (sejam eles de origem
familiar ou armas de fé). Joseph Ratzinger, quando acedeu ao munus arquiepiscopal, usou um escudo
esquartelado: em I e IV, de azul, um urso passante de ouro, carregando um fardo
de vermelho; em II e III, uma estrela de cinco raios de prata, campanha
nebulada do mesmo; escudete sobre-o-todo de ouro, carregado de uma cabeça de
mouro de sua cor, com lábios, coroa, brinco e colar de vermelho. Nas armas
pontifícias, no entanto, a cabeça de mouro não alude apenas ao arquiepiscopado
bávaro, mas possui também uma conotação mais ampla: como representação de um
elemento exótico na óptica dos povos europeus, a cabeça de mouro simboliza a
universalidade da Igreja e a missão ecuménica de apostolado pontifical. Deve
entretanto assinalar-se a delicadeza desta opção, dado o aceso confronto actual
entre o mundo ocidental e o islâmico.
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Jan Polack, O Milagre do Urso (1489).
Museu da Diocese de Freising.
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O
urso presente nas armas do actual Papa tem, também ele, uma origem bávara,
relacionando-se com a hagiografia de São Corbiniano. Reza a lenda que este
santo se encontrava de viagem entre as suas terras nativas germânicas e a
cidade de Roma, quando, no meio da floresta, um urso o atacou. A fera, tendo
devorado a montada em que Corbiniano seguia, investiu de seguida contra o
romeiro. São Corbiniano, entretanto, invocou o auxílio divino e logrou amansar
o urso: este não só lhe poupou a vida, como se pôs ao seu serviço ao longo do
restante trajecto, carregando às costas o fardo das suas bagagens. O urso de
São Corbiniano tem um significado pessoal para o Papa Bento XVI na medida em
que aquele santo se tornou, no século VIII, no fundador da diocese de Freising;
quando Joseph Ratzinger foi elevado a arcebispo de Munique e Freising,
incorporou nas suas armas o urso da lenda. Mas, tal como sucede com a cabeça de
mouro, o urso não se limita a um significado local, conotativo da origem
geográfica e da actividade pastoral de Ratzinger. Segundo a parábola
hagiográfica, o episódio da romaria de São Corbiniano demonstra a capacidade
que a Igreja tem de domar pela palavra as forças selvagens, devendo entender-se
como uma imagem do triunfo sobre as forças do paganismo. É aliás interessante
notar que o urso sempre desempenhou, na mitologia e no folclore germânicos e
nórdicos, o papel de «rei da floresta», consagrando-se como símbolo guerreiro e
pagão. Por este motivo, a imagem do urso foi sistematicamente combatida e
denegrida pela Igreja, que procurou e logrou substituí-la pela do leão, animal
exótico sem conotações possíveis com os antigos rituais germânicos ou
escandinavos, alçado a símbolo de Cristo e ao título de «rei dos animais». Para
além desta simbologia hagiológica, o urso de São Corbiniano possui também,
segundo a explicação do próprio utente das armas que vimos analisando, o
significado de besta de carga ao serviço de Deus, disposta a arcar com o fardo
das suas obrigações morais e das suas funções eclesiásticas, por muito pesado
que tal fardo se revele.
Tendo
analisado cada uma das figuras presentes no escudo de armas de Bento XVI,
procuremos agora classificá-las consoante a sua tipologia simbológica.
Verificamos que o Papa escolheu estas figuras dando primazia à concha, imbuída
de simbolismo religioso e representativa do seu entendimento da vida cristã e
sacerdotal. As outras duas figuras, a cabeça de mouro e o urso, têm uma
dimensão regional, demonstrativa da origem bávara do pontífice, mas conjugam-na
com um simbolismo religioso. Ao somarmos as mensagens transmitidas pelas três
figuras, apercebemo-nos de um verdadeiro programa de vida e de acção: a
caminhada permanente do cristão em busca de Deus; a universalidade e o ecumenismo
da Igreja; o fardo da função religiosa contínua e cegamente ao serviço de Deus.
Convém realçar a complexidade da simbologia das figuras escolhidas por Bento
XVI, cada uma das quais possui significados polissémicos que se completam e
esclarecem mutuamente. No final desta leitura simbológica, sobressai não só o
nítido carácter doutrinário das armas pontificais, bem de acordo com o facto de
o seu detentor ter exercido por longos anos os cargos de prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, de presidente da Pontifícia Comissão
Bíblica, de presidente da Comissão Teológica Internacional, e de presidente da
comissão encarregada de preparar o novo Catecismo da Igreja Católica. Da
análise simbológica que conduzimos sobressai também a realidade de estas armas
transmitirem a imagem de um percurso pessoal, esclarecendo o observador acerca
da origem, da formação, das opções e prioridades morais e teológicas de Joseph
Ratzinger.
As
considerações que acima tecemos acerca do conteúdo do escudo referiram-se
apenas ao aspecto simbológico. Comentemos agora a dimensão estética destas
armas. A heráldica eclesiástica pautou os seus dois últimos séculos de
existência pela consagração do saudável princípio de simplificação dos
elementos representados. Sobretudo no século XX, e com o apoio incondicional do
maior estudioso e criador deste ramo da heráldica, monsenhor Bruno Bernard Heim, vieram a aligeirar-se os escudos eclesiásticos. Nas armas do pontífice
anterior, por exemplo, o campo de azul completava-se apenas com duas figuras:
uma cruz adextrada e a letra M, ambas de ouro. Bento XVI, pelo contrário, optou
por introduzir uma partição no seu escudo: o já referido chapado, e carregou os
três campos assim delimitados cada qual com a sua figura. O efeito estético
afigura-se pesado pelo facto de não ficar praticamente superfície livre de
figuras, além de desequilibrado porque cada figura possui uma escala diferente
das restantes. Acresce que duas dessas figuras são de sua cor, o que não sendo
propriamente um erro heráldico, é todavia um factor de diminuição do valor
estético do conjunto. No seu todo, o escudo surge pois demasiado carregado e
até confuso, com uma certa dimensão «folclórica» que de certa forma se
distancia tanto da dignidade do cargo ocupado por Bento XVI, como das preocupações
simbológicas que este pontífice quis transmitir às suas armas. Conhecendo o
percurso pessoal de Joseph Ratzinger como guardião da ortodoxia católica,
compreende-se que ele tenha querido exprimir uma mensagem complexa nas suas
armas como Papa; mas seja-nos permitido perguntar: mesmo pagando o elevado
preço de uma diminuição da carga simbólica do escudo, não teria sido mais
interessante simplificar as suas figuras de forma radical?
Analisemos
agora os elementos exteriores ao escudo de armas de Bento XVI:
-
duas chaves passadas em aspa, uma de ouro e a outra de prata, atadas de
vermelho e sotopostas ao escudo;
-
uma mitra de prata ornada de três tiras horizontais unidas ao centro por uma
tira vertical, todas de ouro, com as suas fíbulas de vermelho ornamentadas com
uma cruz de ouro e franjadas do mesmo;
-
um pálio de prata, ornamentado com três cruzes páteas de vermelho, com o seu
bico de negro.
As
duas chaves passadas em aspa, sotopostas ao escudo, correspondem a um
tradicional atributo iconográfico que, desde o século V, caracteriza São Pedro.
A partir do início do século XIII, desde o pontificado de Inocêncio III, as
chaves passaram a representar o papado. Elas assinalam a consagração do Papa
como herdeiro de São Pedro, a quem Cristo confiou a tarefa de erguer a Igreja,
conferindo-lhe para tal o poder de ligar e desligar os fiéis dela. Em finais do
século XIII, Bonifácio VIII conferiu às duas chaves um uso heráldico, como
elemento externo ao escudo. Quis este pontífice assinalar assim que o Papa é
herdeiro de São Pedro e da sua missão apostólica. Ao integrar nas suas armas a
representação das duas chaves passadas em aspa, Bento XVI deu pois continuidade
a um dos principais símbolos da dignidade pontifícia.
A
mitra que encima as armas do actual pontífice representa uma assinalável
inovação com relação aos usos estabelecidos. Com efeito, desde a Idade Média,
todos os Papas usaram como insígnia distintiva da sua função não uma mitra
(própria dos bispos, embora de uso extensivo a outros eclesiásticos, como
abades e cónegos ditos mitrados) mas uma tiara de três coroas (triregnum). A tiara pontifícia tem
origens incertas. Muitos estudiosos vêem na tiara uma forma de barrete frígio,
o qual, na antiguidade clássica, simbolizava a alforria e a liberdade. Quer a
tradição que o uso da tiara tenha sido concedido ao Papa Silvestre I por
Constantino I, querendo o imperador significar, por meio desta autorização, que
a Igreja ganhara um estatuto de autonomia, libertando-se pois da autoridade do
soberano temporal. É claro que tal origem lendária constitui uma criação
medieval, destinada a explicar e justificar a detenção de poder temporal pelos
Papas. Na verdade, as primeiras alusões ao uso da tiara pelos sucessores de São
Pedro remontam aos séculos IX ou X, relacionando-se directamente com a
constituição dos Estados Pontifícios. Trata-se pois, muito provavelmente, de um
símbolo de soberania. As primeiras representações da tiara datam do século
XIII, podendo ver-se nelas a figuração de uma só coroa; foi o Papa Bonifácio
VIII (1294-1303) quem, no início da centúria seguinte, lhe juntou uma segunda
coroa, talvez para assinalar a dupla
detenção de poder: espiritual e temporal. A terceira coroa foi acrescentada à
tiara por um dos sucessores de Bonifácio VIII, Bento XI (1303-1304) ou Clemente
V (1305-1314), como forma de simbolizar a supremacia da Igreja sobre todos os
outros Estados, o que se deve compreender no âmbito da rivalidade política
entre o Papa e o imperador.
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Tiara de Pio IX
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A
tiara era uma cobertura de cabeça exclusiva do sumo pontífice, que mais ninguém
podia legitimamente usar (a única excepção duradoura foi a dos patriarcas de
Lisboa), e por isso funcionou como principal elemento identificativo do Papa e
dos Estados Pontifícios, quer do ponto de vista iconográfico quer heráldico. A
tiara não tinha, todavia, um uso litúrgico, mas antes estatal: o Papa cobria-se
com ela para a sua coroação e para outras ocasiões em que aparecia como chefe
de Estado. Não obstante a sua origem profana, a tiara foi ganhando ao longo da
sua existência um simbolismo religioso, passando a exprimir a primazia do Papa
sobre a Igreja considerada nas suas três vertentes: militante, penitente e
triunfante, bem como as três categorias de poderes detidos pelo sumo pontífice:
os de ordem, jurisdição e magistério. O ritual de entronização do sumo
pontífice consagrava a tiara como símbolo específico do seu poder, com a
seguinte fórmula: «Accipe tiaram tribus coronis ornatam; et scies te esse
Patrem Principum et Regum, Rectorem Orbis, in terra Vicarium Salvatoris Nostri
Jesu Christi, Cui est honor et gloria in saecula saeculorum» («Aceita esta
tiara ornada de três coroas; e fica ciente de que te tornas Pai de Príncipes e
Reis, Reitor do Orbe, Vigário na terra de Nosso Senhor Jesus Cristo Salvador,
Cuja glória perdure pelos séculos dos séculos»). O último pontífice a fazer uso
ritualístico da tiara foi Paulo VI. Os seus sucessores entenderam que a
cerimónia de início de um pontificado devia ter um carácter exclusivamente
religioso, abolindo portanto o rito da coroação; a partir de então, o uso da
tiara passou a limitar-se à sua representação nas armas de cada Papa e nas do
próprio Estado da Cidade do Vaticano. O que levou pois Bento XVI a abandonar a
representação da tiara?
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Inocêncio III (1198-1216)
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Bento XI (1240-1304)
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Coroação de Paulo VI
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Tiara de Paulo VI
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Tiara de João Paulo II
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Tiara de Bento XVI,
apresentada em 25 de Maio de 2011, mas nunca utilizada
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É
de crer que tal abandono se insira na prossecução da política de despojamento
da heráldica eclesiástica de todos os símbolos de autoridade temporal, política
seguida desde o século XIX e verdadeiramente consagrada na centúria seguinte.
Os brasões eclesiásticos livraram-se da parafernália de elementos exteriores
conotativos de dignidades seculares, tais como as espadas (símbolos de
jurisdição autónoma) ou os coronéis (sinais nobiliárquicos). A omissão da tiara
nas armas pontifícias insere-se sem dúvida neste processo generalizado, e
constitui um salutar exemplo vindo de cima... Mas procuremos aprofundar o
assunto da representação heráldica da hierarquia no seio da Igreja Católica,
para podermos avaliar o impacto da erradicação da tiara nas armas de Bento XVI.
Em paralelo com a eliminação de símbolos de dignidades temporais, a heráldica
eclesiástica conheceu outrossim outra tendência não menos radical: a do
banimento de vestes litúrgicas como representação de funções ou dignidades
religiosas. Desta forma, verificou-se uma tendência para erradicar a
representação de mitras nas armas dos prelados de dignidade episcopal (e nas
armas de outros religiosos que tinham direito ao uso de mitra por especial
concessão, caso de certos abades e cónegos). A instrução Ut Sive Sollicite,
emanada pelo Papa Paulo VI a 31 de Março de 1969, proibia de forma explícita
qualquer representação da mitra nas armas de religiosos. Como se pretendia
então simbolizar as funções eclesiásticas? Através do recurso ao chamado chapéu
eclesiástico, de formato típico (copa baixa e redonda, aba larga, dois
cordões ou atilhos laterais de que pendem borlas). Precisamente porque não se
trata de uma veste litúrgica, este chapéu pôde ser usado de forma eficaz para
representar minuciosamente a hierarquia da Igreja, através da variação da cor
da copa, aba, cordões e borlas, e do número de borlas pendentes (desde o chapéu
de vermelho com trinta borlas, próprio dos cardeais, até ao chapéu de negro com
duas borlas, dos simples padres). De certo modo, a tiara pontifícia insere-se
dentro da lógica deste sistema, pois, tal como o chapéu eclesiástico, ela não é
um instrumento litúrgico, mas sim um puro símbolo heráldico. Ao invés, a mitra
escolhida por Bento XVI contraria profundamente a tendência da armaria
eclesiástica, já que, no seio da complexa e eficaz representação heráldica da
hierarquia da Igreja, a mitra pontifícia não constitui um sinal verdadeiramente
específico, pois o seu uso não está reservado ao sumo pontífice. Se o Papa
recém-eleito queria por força abandonar a tiara, porque não criou uma insígnia
que se adequasse melhor ao sistema heráldico vigente? Surge-nos desde logo uma
imagem óbvia: se a representação da hierarquia da Igreja se baseia no chapéu
eclesiástico, porque não criar um chapéu com copa e borlas de branco, que se
tornaria num símbolo específico do Papa?
É
certo que o modelo de mitra adoptado por Bento XVI possui uma simbologia
interessante. Com efeito, a mitra das novas armas papais permite recordar que a
função pontifícia é fundamentalmente uma função pastoral; e que o Papa, chefe
da Cristandade católica, é também bispo de Roma, cidade sede da Igreja. As três
faixas horizontais unidas pela pala vertical recordam o antigo triregnum
da tiara, simbolizando a presença do triplo poder (de ordem sagrada, de
jurisdição e de magistério) numa única pessoa: o Papa. Hábil, pois, do ponto de
vista simbólico, o uso da mitra pontifícia não deixa de se integrar com alguma
dificuldade no sistema heráldico estabelecido dentro da Igreja. O abandono da
tiara quebra com uma tradição existente há meio milénio, e exclui da heráldica
pontifícia o seu principal e consagrado sinal identificativo de função.
O
último dos ornamentos exteriores das armas de Bento XVI é o pálio, que se
encontra sotoposto ao escudo. Tal como a tiara, também o pálio tem origem na
antiguidade: no período do Baixo Império, quer o imperador quer os altos
funcionários áulicos usavam uma estola de lã alva. Depois da dissolução do
Império Romano do Ocidente, os sumos pontífices mantiveram como próprio este
sinal distintivo, que passou a simbolizar a sua função de pastores do rebanho
de fiéis. Pelo menos a partir do século VI, os Papas tomaram o hábito de
conceder o uso do pálio a determinados prelados (em particular aos arcebispos
metropolitas), a título honorífico e pessoal, como forma de simbolizar a
ligação de todas as dioceses com a sede apostólica. No século XII, o pálio
ganhou as características que mantém até hoje: passou ter o formato de um Y e a
ser ornamentado com cruzes páteas. Os prelados a quem o Papa autorizava o uso
do pálio costumavam ostentá-lo nas suas armas, geralmente fora do escudo, mais
raramente dentro dele. Em contrapartida, o pálio nunca se integrou na heráldica
pontifícia. Ao romper com esta tradição, Bento XVI terá procurado atingir dois
objectivos:
·
integrar na heráldica dos Papas aquele
que há séculos era já um sinal distintivo da jurisdição pontifícia, fazendo
assim coincidir os ornamentos exteriores das armas com as insígnias
efectivamente usadas liturgicamente;
·
assinalar a ligação do chefe da Igreja com os
arcebispos seus sufragâneos, e através destes com todos os restantes bispos,
simbolizando assim os princípios de colegialidade e de subsidiaridade da
Igreja.
Analisemos
agora os ornamentos exteriores das armas de Bento XVI no seu conjunto.
Verificamos que o actual pontífice introduziu modificações revolucionárias com
relação aos usos vigentes. Tradicionalmente, os Papas usavam como ornamentos
exteriores as duas chaves passadas em aspa e a tiara. Bento XVI apenas
conservou as chaves, e baniu a tiara. Em sua substituição, passou a usar um
modelo próprio de mitra e um pálio. Tais opções têm um sentido nítido:
pretendem erradicar insígnias que já não correspondam a um uso efectivo (pois
os Papas deixaram de ostentar a tiara como forma própria de coroa), e aproximar
os usos heráldicos dos usos efectivos e dotados de simbolismo religioso (a
mitra e o pálio). O efeito, porém, afigura-se-nos empobrecedor do ponto de
vista heráldico: quer a mitra, não obstante a sua ornamentação peculiar, quer o
pálio, não são atributos específicos do sumo pontífice. Ao eliminar a tiara e
substituí-la pela mitra e pelo pálio, Bento XVI retirou aos ornamentos
exteriores das armas pontifícias o seu aspecto claramente distintivo. Ora, a
heráldica é um código simbológico que visa, precisamente, identificar e
distinguir da maneira mais evidente que for possível.
As
armas escolhidas por Joseph Ratzinger como Papa são pródigas em novidades
heráldicas e em complexidade simbológica. A ruptura com os antecedentes
situa-se tanto no interior como no exterior do escudo: Bento XVI adoptou uma
partição e uma bicromia pouco comuns na heráldica pontifícia (o chapado curvado
de vermelho e de ouro), preenchendo-a com três figuras também elas inusitadas:
uma concha, uma cabeça de mouro e um urso. Fora do escudo, as inovações do
actual Papa foram ainda mais radicais, pois dos tradicionais ornamentos
exteriores apenas reteve as duas chaves passadas em aspa (alusivas a São Pedro)
e abandonou a tiara. Em substituição desta última, Bento XVI criou uma mitra
própria, dotada de três tiras horizontais unidas por uma vertical – a que
poderíamos chamar criptotiara pois trata-se de uma tiara encoberta – e
completou os ornamentos exteriores ao seu escudo de armas com a representação
do pálio, antiquíssima insígnia dos sumos pontífices mas nunca até agora usada
na respectiva heráldica.
No
que respeita ao conteúdo simbológico das armas de Bento XVI, destaca-se a sua
complexidade, bem expressiva dos seus desígnios e das suas crenças: a concha
simboliza o peregrino em contínua busca da Fé; a cabeça de mouro alude à
universalidade e ecumenismo da Igreja; o urso com o seu fardo representa o
poder e a missão do sacerdote ao serviço de Deus. Para além desta simbólica
universalista, os dois últimos móveis reenviam também para o percurso pessoal
de Joseph Ratzinger como arcebispo de Munique e como prefeito da Congregação
para a Doutrina da Fé. No seu conjunto, as armas assumidas por Bento XVI
apresentam-se, para quem as souber observar e ler, como um reflexo do seu
programa de pontificado.
Miguel Metelo de Seixas
(publicado na revista Tabardo,
do Centro Lusíada de Estudos
Genealógicos e Heráldicos,
n.º 3, 2006, pp. 343-352)