quinta-feira, 27 de junho de 2024

Guardo esta carta fechada, voltei a pôr na folha lá dentro, encontrei um começo.

 

 

Por uso e costume, e manda o rigor de quem tem opiniões próprias, quem aprecia uma obra literária, não embandeira em arco com sinopses feitas por outros. Contudo, encontrei num jornal online de alunos de Comunicação Social da Universidade do Minho a referência ao livro A Palavra que Resta, de Stênio Gardel, Publicações D. Quixote, 2024, que passo a tomar como minha, como ponto de partida da leitura que pude fazer desta obra-prima:

A Palavra que Resta marca o romance inaugural de Stênio Gardel no universo literário, amplamente premiada, e mesmo em dois continentes.

A narrativa desenrola-se ao redor de uma antiga carta preservada por mais de meio século e jamais lida, que se torna a chave de uma jornada pessoal para Raimundo Gaudêncio. O homem carrega consigo não apenas a carta: há também a memória de um amor secreto e trancado na sua juventude. Analfabeto, Raimundo Gaudêncio nunca pôde decifrar o conteúdo daquela missiva, mas agora, com 71 anos, propõe-se aprender a ler, decidido a desvendar os segredos da carta e, com isso, curar a ferida emocional que o acompanha desde a juventude.

Nascido e criado na roça, Raimundo não frequentou a escola, pois desde cedo precisou de ajudar nas tarefas do campo. Há muito tempo, foi forçado a deixar a família e a sua vida no interior do Brasil para trás. Desse tempo, ele guarda apenas a carta que recebeu de Cícero, quando o amor proibido entre os dois foi descoberto. Cícero partiu sem deixar rasto, exceto aquela carta que Raimundo não sabe ler (pelo menos até agora).

Com uma personagem principal tão humana e real, o autor deixa-nos presos a esta história desde as primeiras linhas. A sua escrita livre, em fluxo, torna-se atordoante para o leitor, não por ser críptica, mas por representar com maestria o turbilhão de sentimentos de Gaudêncio. É notável a forma como Gardel consegue transmitir as mais profundas angústias e os demais confrontos enfrentados por Raimundo.

Mais do que uma história de amor entre duas pessoas do mesmo género, A Palavra que Resta não é só um romance arrebatador sobre a repressão, o preconceito homofóbico e a violência física ou psicológica. É, acima de tudo, uma história de superação e de coragem para ultrapassar todos estes desafios.”

A primeira tentação é a de procurar catalogar a obra: que este romance pertence ao género da literatura homoerótica, no fundo houve o amor de Raimundo e Cícero, de que resta uma carta, cujo conteúdo é um completo enigma para o leitor. Acontece que este tipo de carpintaria literária, independentemente do tema, tem uma longa história, é um expediente com um poder catalisador, mas que também se pode limitar a uma mera e ofuscante pirotecnia. O que não é o caso deste livro, os valores infundidos podem reclamar-se do preconceito sexual, mas no caso vertente todo este amor escondido é uma peça clássica que pode perfeitamente decorrer numa relação heterossexual. Penso que posicionar esta escrita é uma operação de valorizar a sinceridade desta escrita, um amor transcendente, uma fidelidade amorosa que jamais perde a esperança. Então, não é que a primeira obra-prima da literatura mundial, que terá saído do punho de Homero, não fala de uma Penélope que aguarda a chegada de Ulisses, afastando todos que a pretendem?

O que domina esta pulsão da escrita é o uso de uma simplicidade, de um casticismo, de um processo ficcional em que se sente desde a primeira página que estamos a cavalgar num mundo de sentimentos nobres sob a pena da exclusão, somos engolfados na ilusão de que aquela carta irá restituir a dois longevos o que a juventude não permitiu, como se o mais importante não fosse mesmo o esplendente da esperança. O velho Raimundo Gaudêncio guardou a carta toda a vida, então começa a história, os pais descobrem aquele amor adolescente, dar-se-á a separação entre amantes. E agora voltamos ao velho Raimundo Gaudêncio que está a aprender a ler para depois regressar a um amor proibido que Stênio Gardel conduz com uma delicadeza ímpar: “Nas peles nuas, a saliva dos beijos e o suor dos abraços irrigavam, dentro deles, raízes fortes, de agarrar as tripas e o que mais tivesse dentro. Até a alma. E as raízes faziam das veias seiva e cresciam pelos poros como galhos trepadeiros em direção ao sol. Quando se tocavam, se engarranchavam e viravam uma planta só, com flor que se abria sobre o peito. Papoula amarela de cálice cor de sangue.”

Saberemos quase tudo do itinerário de Raimundo, chegou mesmo a procurar sexo em relações sem compromisso, tudo efémero, encontros nos cinemas porno, o texto intercala a sua relação com Cícero, os ambientes familiares, como Raimundo sobreviveu no trabalho, como os anos passaram, como um dia procurou voltar à terra natal, como Raimundo e Suzzanný travesti vivem juntos, aconchegados, é uma velhice serena: “Quando a gente sai na rua é desse jeito, fica segurando minha mão, ainda hoje tem gente que estranha, homem velho de mão dada com travesti velha, uns cochichando de um lado, uns olhando atravessado de outro, deixa estranhar, um dia eles aprendem, eu aprendi, eles aprendem, mas tem que querer, querer sair da ignorância, é quase como eu querendo aprender a ler e escrever, tomei a decisão de ver o mundo de outro jeito, me sentir mais dentro dele, porque a ignorância faz é isso, exclui, isola, e não era isolado que eu vivia?” Não é que estes dois velhos não tenham arrofos, mas tudo acaba bem.

Há lugares míticos, de lembrança inextinguível, é o caso daquela cruz no rio onde Raimundo e Cícero se iriam encontrar, o que não aconteceu. A irmã de Raimundo, Marcinha, entregou-lhe a carta de Cícero, e o fulgor desta escrita parece um chamamento à coragem do leitor, prosa magnética:

“eu fui deixando, fugindo, ainda estou é fugindo, fugindo de mim, como fugi muito tempo, agora tento fugir do que vou ser depois da leitura da tua carta, e eu trouxe ela aqui pensando em jogar no rio, tanta vez que já pensei dar cabo desse papel mas nunca fui até ao fim, tenho mais uma chance agora, deixar o rio dissolver e afundar tuas palavras, já que não vou saber mais de tu mesmo, e seu eu aprender a ler e puder responder, eu não ia poder te mandar e tu nunca ia descobrir o que eu escrevi, se pelo menos soubesse onde tu está, se tá vivo ainda, me esperando…”

É o derradeiro flashback, Cícero a entregar a carta a Marcinha, podemos supor tudo o que ela contém, talvez Cícero tenha dito que capitulava, ia desaparecer para outro lugar, ter outro destino, aquela exclusão era asfixiante, viveriam sobre o peso da vergonha. É que a esperança nunca morre, Raimundo sabe ler, aprendeu a ler e a escrever, é nesta liberdade que ele encontrou um começo.

Uma obra-prima absoluta. 


                                                        Mário Beja Santos


terça-feira, 25 de junho de 2024

Não há nada mais a fazer, está a morrer, é mentira, há algo a fazer pela dignidade do humano.


 



É bem verdade que temos uma ideia distorcida quanto à natureza dos cuidados paliativos, num certo senso comum é o conjunto de cuidados associados a gente que vai morrer, já nada há a fazer. Uma jornalista pôs-se num encalço de diferentes situações de doença grave ou incurável, ouviu profissionais, doentes e familiares e nesta poderosa narrativa A morrer ou a viver? Histórias de cuidados paliativos, por Sofia Teixeira, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2024, afirma-se a convicção de que estas pessoas estão a viver e têm direito a serem cuidadas para terem o mínimo sofrimento e o máximo de apoio. Uma viagem em que se retratam cinco doentes, Nini, João, Francisco, Maria José e Djamila, e fica-nos uma certeza: há sempre algo mais a fazer. A autora diz-se que chegou ao fim do seu trabalho e ficou mais enriquecida, pois estar doente e pensar na morte ajuda-nos a refletir sobre a vida. “A vida não tem um final surpreendente. Este livro também não. A maioria dos seus protagonistas não teve a oportunidade de ler estas páginas. No entanto, deixaram a sua história, para que os outros a possam conhecer. Queria que este livro servisse que para quem o lê fizesse também a si próprio as perguntas que considera importantes, mesmo que não saiba as respostas.”

Nini nasceu com neurofibromatose, teve cancro nas vias óticas com dois anos; depois de doze anos de paz, veio a leucemia, a doença não cedeu, Nini não desarma: “Vivo um dia de cada vez, agradeço o que tenho e não penso no que me falta.” Entram em ação os cuidados paliativos, Nini continua a ser seguida pela sua oncologista, mas passou a ser acompanhada também pela Equipa Intra-Hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos Pediátricos do IPO do Porto. “A melhor maneira de explicar o que são Cuidados Paliativos é dizendo que oferecem a alguém muito doente o possível – quer do ponto científico, quer humano – exceto a cura da doença potencialmente fatal. Oferecem os cuidados necessários, adequados e proporcionais à situação. E se isso parece pouco é apenas porque nos habituámos a olhar a morte como um fracasso, em vez de uma inevitabilidade.” Por outras palavras, há sempre algo mais a fazer, estes cuidados são prestados por equipas multidisciplinares e interdisciplinares com médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais, outras valências serão suscitadas, como assistentes espirituais, fisioterapeutas, terapeutas da fala e terapeutas ocupacionais.

João tem o mesmo número de anos que de quilos: 14. Não faltam as dificuldades respiratórias, crises epiléticas diárias que não cedem aos quatro medicamentos antiepiléticos que toma e deformidades ósseas na anca e coluna, associadas à imobilidade e às alterações musculares. Não anda, não fala, não chora, não ri. Tem uma doença sem nome, a mãe é combativa. João é seguido pela Equipa Intra-hospitalar e Domiciliária de Suporte em Cuidados Paliativos do Hospital Pediátrico de Coimbra, equipa que segue doenças neurológicas, neuromusculares, genéticas ou metabólicas. A pediatra, Cândida Cancelinha, diz que a forma como o trabalho de equipa é explicado pelos colegas influencia muito a recetividade dos pais. A mãe de João tem esperança, a equipa visita o doente em casa quando ele piora, é um contacto direto, uma disponibilidade que não se encontra noutros serviços do hospital, a equipa dá uma resposta quando é necessária.

Maria José tem 70 anos e nunca tinha estado doente, diagnosticaram-lhe um cancro nos ovários. Olhar para trás e não para a frente foi a forma que encontrou de viver o melhor que pode. É acompanhada pela Equipa Comunitária de Cuidados Paliativos Beja+, estava reticente, mas mudou de ideias quando recebeu a primeira visita da equipa em casa. A autora observa que quando a pessoa doente e a família conseguem reconhecer e apropriar-se do seu sofrimento conseguem também encontrar caminhos para o aliviar um pouco.

Francisco Brandão Ferreira foi jornalista na Rádio Renascença e depois na RFM, reformou-se e a doença chegou depois de cinco anos, com um cancro no pulmão, a seguir foi detetada uma metástase no cérebro, faz quimioterapia. Descobriu-se que o seu cérebro entrara em autodestruição. Incapaz de andar, debilitado e confuso, do hospital passou para uma unidade de cuidados continuados. Por sugestão da médica de família, a mulher, Manuela, recorreu à LInQUE, uma cooperativa que conta com uma equipa multidisciplinar. Uma das fundadoras, a médica Elsa Mourão, depois da experiência que teve no INEM, o problema não era a morte das pessoas, era a morte desacompanhada, assume que uma das dificuldades de encarar esta realidade passa pela formação médica geral. E também aqui a autora observa que o tempo é um inimigo cruel de quem tem demência ou outras doenças progressivas. É graças aos cuidados paliativos que Manuela está consciente de que se aproxima o dia em que terá de fazer uma difícil transição: deixar de amar Francisco na sua presença para o amar na ausência.”

A autora não se limita a esta verificação, procura saber o depois, volta a ouvir os cuidadores, e, quando possível, os doentes, caso de Maria José Mestre ou da Nini. Temos por último Djamila, autora e doente conversaram na Unidade de Cuidados Paliativos das Irmãs Hospitaleiras da Idanha, em Belas, Djamila tem um cancro no útero, já com metástases noutros órgãos, veio para Portugal à procura de soluções que já não existem na Guiné-Bissau. É uma paciente com necessidades complexas, pois não se consegue manter de pé, precisa de um rigoroso controlo sintomático, a urina e as fezes são drenadas diretamente para sacos externos. O médico paliativista Paulo Pina recorda que os pacientes chegam demasiado tarde; é que além dos sintomas físicos chegam com outras necessidades: fragilidades emocionais, dúvidas espirituais, uma família preocupada.

É o momento propício para a autora discorrer sobre a amplitude dos cuidados paliativos:

“A morte é cada vez menos um acontecimento inesperado, prematuro e repentino. Os números mostram que a maioria das pessoas não morre no decurso de eventos súbitos, como um ataque de coração fulminante ou um acidente de viação fatal, mas de doenças crónicas e prolongadas que causam sofrimento. Isso significa que morrer não é apenas um momento, mas um processo, que será mais ou menos penoso consoante as decisões médicas tomadas, os cuidados paliativos a que cada um tem acesso e a cultura familiar, social e comunitária em torno destes temas.” O epílogo da obra é uma peça de grande humanidade sobre quem morre e quem fica, avulta um mistério, quando a autora escrevia, Djamila continuava internada em Belas, pois há mistérios que nem as equipas médicas sabem explicar.

De leitura obrigatória, mormente para quem é profissional de saúde ou tem a seu cargo doentes de longa duração ou mal incurável. 


                                                                Mário Beja Santos


sexta-feira, 14 de junho de 2024

(Des)(des)confia.

 



 

Numa das frases mais citadas de sempre, provavelmente apócrifa, como são quase todas as frases mais citadas de sempre, G.K. Chesterton explica-nos que quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, passam a acreditar em qualquer coisa. Em Portugal, ao progressivo esvaziamento das igrejas (mas não de Fátima!), tem-se sucedido, de facto, um progressivo enchimento de pavilhões – e não dos pequenos – com crentes desejosos de assistir a sessões de coaching, mentoria, empoderamento, motivational talks, desenvolvimento pessoal, e mais uma série de nomes, portugueses ou estrangeiros, que especialistas (ou specialists) diversos nos garantem não serem sinónimos, mas aos quais os mais descrentes, falhos do mindset adequado, dedicam uma opinião semelhante, nada agradável, do género – obrigado, Sérgio Godinho! – “fraudes da mesma mó”.

Achando talvez que a facturação desses grandes espaços, Meo Arena à cabeça, não atingira ainda os valores desejados, Joana Marques (a humorista, não a ex-Procuradora-Geral da República) resolveu promover o maior evento de anti-coaching de sempre, esgotando duas vezes o monumental recinto sob o signo da comédia. Não satisfeita, exportou o espectáculo para o Porto, e eu, iluminista racional altamente desconfiado de tudo o que não é ciência pura e dura (nasci a 13 de Setembro e os Virgens são muito cépticos), fui vê-lo, e aqui deixo o relato possível do acontecimento.       

Mandam as regras não escritas do ofício, nobre e conceituado desde a época de Pedro de Barcelos e Fernão Lopes, que o aspirante a cronista chegue cedo ao alvo da sua análise, de maneira a conseguir descrever, em modo de sociologia barata, os portadores de bilhete. Sendo a Super Bock Arena (perdoa-me, Rosa Mota!) um pavilhão com apenas cinco ou seis mil lugares sentados, não me foi difícil concluir, com uma margem de erro de 0,5%, que 72,31% da assistência era do sexo feminino, uma percentagem enigmaticamente semelhante à que caracteriza o público das talks de Cristina Ferreira, talvez o alvo principal da sátira de Joana Marques.

Aos pares ou em grupos maiores, alguns deles de amplo espectro geracional, desfilavam pelos corredores os outfits distintivos da classe C1, equivalente contemporâneo do agrupamento pequeno-burguês que tirava o Dr. Cunhal do sério, ou seja, e sem pretensões de exaustividade, calças de ganga largas de cintura subida, t-shirts, blazers q.b., umas poucas de Birkenstocks, muitas sapatilhas (suponho que em Lisboa optaram por ténis). As tatuagens, discretas, não apresentavam os nomes das crias, confirmando assim, ao nível da análise estereotipada que dá corpo à minha prática, a pertença a um estrato socioeconómico urbano e escolarizado de ascendência não proletária.

A investigação pormenorizadamente levada a cabo durante dez minutos, associada a uma temperatura altíssima para os parâmetros do Entre-Douro-e-Minho, na ordem dos 22/23 graus!, acabou por me provocar sede, pelo que me dirigi a um dos bares, todos eles com fila, com o intuito de beber um fino (suponho que em Lisboa optaram por imperiais), manobra infelizmente abortada quando o solícito empregado me pediu 4,5 euros, ou 902 escudos na moeda antiga, e eu lhe fiz ver, educadamente, que o meu objectivo não era comprar o estabelecimento mas apenas uns poucos centilitros de cerveja. E foi assim, sequioso e ligeiramente enervado, digamos que naquele ponto em que me daria jeito um guru portátil carregado de estratégias prêt-à-porter para lidar com a fúria, o chamado anger management, ou gestion de la colère, fazendo pendant com o prêt-à-porter, que me dirigi para a sala, onde imediatamente me acalmei graças ao choque térmico infligido pelas potentes máquinas que transformaram um espaço com 90.000 m3 num frigorífico. Pude concluir, desta forma, que o preço das bebidas foi calibrado tendo como ponto de partida a necessidade de pagar a conta da EDP.

Casa cheia, luzes apagadas, entra em palco Joana Marques e respectivos convidados, a primeira equipada com a sua aptidão para o humor autodepreciativo, os segundos, ou pelo menos alguns deles, equipados com episódios verdadeiros extremamente desagradáveis, como é o caso de Sara Norte, uma actriz que, na esteira de D. Sebastião, resolveu complicar a própria existência em aventuras norte-africanas. As risadas da assistência iam confirmando o acerto da aposta, ainda que as maiores, sem sombra de dúvida, tenham tido como gatilho não as piadas proferidas voluntariamente em directo, mas as palestras gravadas, e reais, dos genuínos coachs/mentores/influencers que iam aparecendo nos ecrãs gigantes, trazidos à cena para ilustrar o ridículo, e que cumpriram com involuntária eficácia o papel que a produção lhes destinou.

Não que a estratégia de autodepreciação de Joana Marques funcione mal, pois embora seja provavelmente desenvolvida a partir de Ricardo Araújo Pereira, acaba por o conseguir ultrapassar em verosimilhança (é necessário um menor grau de suspensão da descrença para acreditarmos que a humorista em causa é baixinha e ingere demasiadas calorias do que para acreditarmos que RAP é uma besta sem talento); e também não se dá o caso de os participantes do (Des)confia terem apresentado histórias desinteressantes ou terem falhado na arte da comunicação. O que aconteceu foi simplesmente um daqueles casos, frequentes, em que a arte imita a vida sem conseguir superá-la no que esta tem de risível, pateta e embaraçoso. Despindo o fato de sociólogo de contrafacção e vestindo o de psicólogo de feira com chapéu de adivinho, pressentia-se até, em muitas das gargalhadas, uma ligeira afinação nervosa, consequência normal de estarem a ser expelidas por seres humanos anteriormente apanhados, esporadicamente ou por sistema, nas malhas da “ciência” que estava ali a ser desmontada a golpes de sarcasmo, apanhados talvez não através daqueles coachs/mentores/influencers em concreto, mas eventualmente através dos seus equivalentes que apostaram na classe C1. Uma “ciência”, com aspas, e por isso causadora de riso nervoso, que pelos vistos passa imediatamente a ciência, sem aspas, quiçá até a Ciência, sem aspas e com letra maiúscula, se for exercida por profissionais devidamente certificados pelas instituições universitárias reconhecidas pelos poderes oficiais.

Esta é, pelo menos, a opinião da Ordem dos Psicólogos, que num parecer emitido sobre o coaching, definido no documento como uma actividade que pretende “promover o potencial de alguém, maximizando o seu desempenho e facilitando a aprendizagem e o desenvolvimento de competências” (ou seja, traduzindo para linguagem chã: “ajudar o Éder a marcar o golo decisivo na final do Euro 2016”), mostra preocupação pela prática do ofício num ambiente de negócio não regulado, e também pela profusão de coachs (“coachs”, neste caso) munidos de pseudo-qualificações. Em resumo: a UEFA deve retirar a taça à selecção das quinas, uma vez que Susana Torres, a mulher que devolveu a confiança a Ederzito António Macedo Lopes, não está inscrita na inexistente – mas porventura desejada – Ordem dos Coachs.

Brincadeiras – e corporativismos – à parte, e tendo naturalmente em conta a posterior quezília entre o futebolista e a sua ex-guru, um desaguisado que poderá inclusive terminar na mesa de trabalho de Joana Marques (a ex-Procuradora-Geral da República, não a humorista), é óbvio que a falta de enquadramento legal destas tretas / orientações de enorme utilidade (riscar o que não interessa) potencia a ocorrência de fraudes deliberadas (financeiras, principalmente). Já quanto à eventual relação directa entre qualificações não pseudo e a probabilidade de sucesso dos procedimentos, a conclusão não é assim tão simples, pois estamos no escorregadio universo da auto-estima e da psicologia da insegurança, o estado emocional responsável – cobrindo-me agora com o fato de técnico do Instituto Nacional de Estatística – pelo aparecimento de 99% destes “novos” negócios (serão mesmo novos ou apenas reinvenções de antigos?). A mente humana, dizem-nos vários estudos, nomeadamente no âmbito dos placebos, é uma caixinha de surpresas, e há sempre espaço, desde que com conta, peso e medida, para abordagens “whatever works”, como bem nos ensinou Woody Allen num filme homónimo. Se um mentor de feng shui, desagradado com a orientação solar da nossa casa, nos recomenda uma visita ao banco com o objectivo de nos endividarmos até ao pescoço para comprar uma nova, o melhor talvez seja agradecer o conselho e esquecê-lo rapidamente; se, por outro lado, a terapia do dito-cujo para uma crise de insónias se resume a afastarmos a cama da parede 5 centímetros, então não há mal nenhum em aplicá-la, depositando um pouco de fé no intrujão / indivíduo de extrema sabedoria (riscar o que não interessa).

Em certa medida, foi isso que muitas pessoas procuraram, e encontraram, no espectáculo de Joana Marques, não um evento de anti-coaching, mas um evento de coaching para não mais recorrer a coachs, uma sessão de empoderamento para não mais precisar de assistir a sessões de empoderamento, uma palestra de uma influencer sobre como não cair na tentação de correr atrás de influencers. Em jeito de conclusão, uma vacina. Que costuma ser produzida, como é sabido, com variações do próprio vírus. E que tem o inconveniente, à semelhança dos discursos motivacionais, de precisar de doses de reforço regulares para manter a eficácia. Vai resultar? Talvez, a não ser que a vacina (Des)confia não passe de uma substância meramente homeopática, embora com um preço – do bilhete e do raio da cerveja – nada diluído!

 

                                                        Sérgio Barreto Costa



 

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia 

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Como Portugal viveu uma revolução turbulenta e se tornou numa democracia bem-sucedida.

 



 

 

A proposta de ensaio de Tiago Fernandes parte da premissa de que as relações sociais democráticas são processos de mudança política historicamente raros, e dentro dessa raridade consta Portugal. Desenvolve a sua análise a partir de um estudo comparado da revolução portuguesa de 1974-75 com outros ciclos revolucionários europeus do século XX, procura os fundamentos de quando se dá o predomínio das forças liberais/moderadas face aos movimentos contrarrevolucionários e ao radicalismo esquerdista, tais forças moderadas gozam da capacidade de organização cívica e contam com aliados determinantes nas forças militares; os conflitos findam porque esse predomínio de forças liberais/moderadas se torna no eixo de sustentação do regime democrático – situação que porventura se viveu e vive em Portugal, e o ensaio dá como demonstrado.

É, pois, proposta ousada a do ensaio intitulado Portugal, 1974-1975, Revolução, Contrarrevolução e Democracia, por Tiago Fernandes, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2024. Diz o autor na introdução que o seu livro procura um objetivo teórico mais geral: o de compreender as razões pelas quais as revoluções originam regimes democráticos. É facto que a maioria das revoluções não deram lugar a democracias, acabam em ditaduras de partido único, autarcias geridas por autocratas, juntas militares, ídolos nacionalistas populistas ditos marxistas ou não.

O interesse pelo que se passou em Portugal também é ditado pelo facto desta revolução ter sido a última grande revolução social europeia do século XX. “Por definição, as revoluções sociais caracterizam-se por extremo conflito social de classes, polarização política, colapso do Estado e, nalguns casos, violência generalizada. O seu rescaldo imediato traduz-se geralmente numa contrarrevolução da direita nacionalista ou ditaduras revolucionárias de partido único.”

Há requisitos entusiasmantes para estudar esta revolução portuguesa onde predominou um regime autoritário de partido único durante 48 anos, segue-se um período marcadamente turbilhonante, mas pouco violento e impõe-se a pergunta o que é que pode explicar a singularidade democrática da revolução portuguesa. O autor passa em revista situações revolucionárias europeias do século XX, desvela transformações sociais e económicas radicais que se operaram na revolução portuguesa de 1974-1975, onde não faltou uma vaga de nacionalizações, coletivização de terras no sul do país, purgas na máquina do Estado e nas Forças Armadas; e lança a questão sobre os termos, as condições em que as situações revolucionárias produzem o regime democrático-liberal.

O ensaio de Tiago Fernandes está ricamente fundamentado pelo estudo de revoluções vitoriosas e fracassadas e quais os fatores emergentes nas revoluções democráticas, dizendo claramente que apesar da vasta mobilização popular em diferentes níveis, no Portugal revolucionário, permaneceu o predomínio das forças moderadas na coligação democrática. A avaliação que o autor faz é que essas forças moderadas já detinham elevada capacidade de organização no período ditatorial. Subsiste uma explicação para o surto de contrarrevoluções, também ocorreram em Portugal, mas foram focos que acabaram por ficar reduzidos a uma pura excrescência, não se puderam jamais confrontar com organizações partidárias robustas onde predominam as classes médias urbanas, e o autor dirá porquê: “É uma aliança de classes trabalhadoras urbanas e rurais e de setores dos militares, organizada em robustos movimentos cívicos.”

Procura demonstrar que havia já no regime anterior uma sociedade civil com pujança e autonomia que permitiu a constituição de partidos moderados, o PS e o PSD, que bloquearam o caminho às forças radicais. “No MFA, o contexto cultural europeu era favorável a uma combinação entre socialismo revolucionário e democracia. Era uma geração profundamente influenciada pelo Maio de 1968, pelos movimentos estudantis, pelos debates dentro do marxismo ocidental e as críticas ao modelo soviético e pelo consenso do anticolonialismo. Permitiu um consenso entre as forças militares e civis e terminar rapidamente a guerra, descolonizar e realizar eleições livres.” Estes, os fatores endógenos. Mas há que ter em contas os fatores exógenos: “O contexto internacional era favorável à democratização portuguesa. Por um lado, não havia uma potência hegemónica regional de extrema-direita que patrocinasse a contrarrevolução.” A Espanha vivia o seu próprio processo de transição, havia os acordos de Helsínquia, é um tempo em que vão soçobrar os regimes ditatoriais da Espanha e da Grécia.

O autor mostra como se passou de um apertado controlo político, onde preponderavam caciques locais para uma abertura que foi diluindo e desagregando o autoritarismo: o Concílio Vaticano II, a carta do Bispo do Porto a Salazar, o aparecimento de cooperativas, a postura oposicionista das organizações de Ação Católica, entre outros fatores. “É a partir deste setor católico reformista que em parte emerge no final dos anos 1960 a primeira oposição ao regime institucionalizada, uma ala liberal que defendia a transformação pacífica da ditadura num regime social-democrata de estilo europeu.” Dá-nos o quadro da evolução dos partidos da oposição ao regime de Salazar e Marcello Caetano e as suas posições anticolonialistas, revela-nos a evolução política dos jovens oficiais portugueses, como da contestação ganhou corpo a ideia de roubo do Governo. Na sequência do 25 de Abril explode a participação cívico-política, a sociedade civil foi-se organizando em bases democráticas, as ideias do passado e a tentação contrarrevolucionária perderam o entusiasmo. E o autor disserta como o processo revolucionário começa por derrotar a direita autoritária e como fracassou o radicalismo esquerdista e se abriu caminho a uma democracia bem-sucedida, é um dos tópicos mais originais desta investigação que nos leva à essência de uma vida associativa que precede o 25 de abril, envolvendo as oposições comunista como a socialista e a católica, o crescimento do corporativismo, das coletividades, o aparecimento de uma oposição sindical dentro das estruturas corporativas. E no período revolucionário, derrotado o vanguardismo esquerdista, impuseram-se as forças moderadas, foram elas que pouparam Portugal a uma invasão militar e a uma guerra civil. Foram essas mesmas forças moderadas o esteio da institucionalização democrática. Esta a singularidade do processo português: destruição das antigas estruturas a par da promoção da igualdade e do pluralismo políticos – tudo produto do predomínio das forças moderadas na coligação revolucionária. “Isto é possível quando essas mesmas forças já tinham elevado a capacidade de organização cívica no regime anterior, quando o conflito militar termina com o eclodir da própria revolução, e, por último, quando as forças radicais são dividas entre si.”

Uma perspetiva com a cordite suficiente para alargados debates.

 

                                                                Mário Beja Santos


sexta-feira, 7 de junho de 2024

Carta de Bruxelas.

 

 Para assinalar oito meses passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023



Um turista israelita de visita à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (quatro palavras, quatro mentiras, como dizia Castoriadis) conta que, durante uma viagem de comboio de Moscovo para Minsk, foi interpelado por um jovem. Entabulada a conversa, o jovem, também ele judeu, reparou no jornal hebreu do turista e perguntou-lhe se não era difícil ler da direita para a esquerda. «Para nós israelitas nada mais natural», respondeu o viandante. Ao que o jovem retorquiu, «Bem vistas as coisas, deve ser bastante fácil. Afinal é dessa maneira que todos os dias leio o Pravda

E é assim que desde 7 de Outubro de 2023 se deve ler grande parte da imprensa mundial.

 

                                                                João Tiago Proença


quinta-feira, 6 de junho de 2024

Carta de Bruxelas.

 

              



                                                                                    Dão-se alvíssaras

 

Segundo noticiado, um grupo de mais 100 funcionários das instituições europeias manifestaram-se «em memória das vítimas da guerra em Gaza e para assinalar o que descreveram como a «morte dos valores europeus». Para tal os funcionários organizaram um «funeral simbólico, os manifestantes recorreram a sacos de cadáveres para representar a «morte do direito internacional, dos tratados da UE e da Convenção sobre o Genocídio.» A vigilância cívica, o compromisso com os mais elevados valores europeus é de louvar. Note-se que, num arroubo de alma, «fizeram um minuto de silêncio pelas vidas palestinianas perdidas no conflito». Convém repetir: pelas vidas palestinianas. Até ao momento, não se conhece outra acção deste tipo levada a cabo por grupos de funcionários cujo protesto, declaram, não é político. «Somos neutros», afiança uma funcionária, «estamos apenas a defender os direitos da União Europeia». Tão neutros que não houve uma referência que fosse ao massacre de 7 de Outubro de 2023 ou sequer aos reféns israelitas. Dão-se alvíssaras a quem vislumbrar no horizonte o próximo genocídio que levará para a rua esta gente neutra.

 

                                                                                    João Tiago Proença