terça-feira, 29 de agosto de 2023

Com outro coração e outra mente iremos reaprender a amar o nosso belo planeta.

 

 


 

A obra intitula-se Natureza Sagrada, Recuperar o nosso vínculo com o mundo natural, por Karen Armstrong, Temas e Debates, 2023. Trata-se de um ensaio altamente documentado sobre múltiplos olhares religiosos e de visões espirituais sobre a sacralidade da natureza de que gradualmente nos afastámos sobretudo desde o processo da industrialização. Atingimos o paradoxo de estarmos cada vez mais preocupados com o modo de reverter a alteração climática, tudo isto se processa numa atmosfera de grande indiferença sobre o poder espiritual da natureza, como ela nos dá pelo seu silencio e pelos seus sinais de vida a prova de que temos que reaprender a olhá-la com desvelo e ternura e menos como uma entidade global em que a vida humana pode deixar de existir se a temperatura subir mais.

Esta embaixadora das Nações Unidas para o projeto Aliança das Civilizações escreveu este notável trabalho em 2021, e comenta: “As temperaturas nos Estados Unidos e no sul da Europa atingiram os seus maiores níveis de sempre, conduzindo a devastadores incêndios florestais que destruíram comunidades inteiras. Ao mesmo tempo, a Alemanha e os Países-Baixos sofreram inundações sem precedentes. As alterações climáticas já não são uma alteração alarmante; tornaram-se uma temível realidade. O desastre só pode ser evitado se mudarmos a forma como vivemos. Esta crise foi causada pelo nosso modo de vida moderno, o qual, apesar das suas realizações consideráveis, está fatalmente errado. Temos de mudar não apenas o nosso estilo de zvida, mas todo o nosso sistema de crenças. Saqueámos a natureza, tratando-a como um mero recurso, porque ao longo dos últimos 500 anos cultivámos uma visão do mundo que é muito diferente da dos nossos antepassados.” E procede a uma narrativa que nem sempre é de fácil digestão, são invocados nomes e obras que falam das tais crenças do passado como de cientistas como Newton, que alteraram a nossa visão face à natureza. E recorda as religiões que nutriram a humanidade, como o confucionismo e daoismo; o hinduísmo e o budismo na Índia, o monoteísmo em Israel e o racionalismo na Grécia, criaram novos tipos de espiritualidade, todas elas tinham uma compreensão semelhante da relação da humanidade com o mundo natural.

Para se entender a mudança de paradigma, a autora invoca o papel da mitologia e do racionalismo, há que reaprender o funcionamento dos mitos, pois eles revelam uma tentativa de descrever a realidade oculta do mundo natural. E assim vamos viajando por crenças até chegarmos à perceção de que as religiões não descuravam a santidade da natureza, a autora lembra-nos o livro de Job, releva-se o papel que tinha o silêncio e como hoje vivemos completamente dependentes de conversa e estímulos intermináveis. “Desde o século XIV, construímos uma noção de sagrado completamente diferente. Racionalizando a natureza e confinando Deus aos céus, reduzimos o divino de modo tão drástico que para muitos ele se tornou ou incrível ou impercetível. Em simultâneo, nas nossas sociedades industrializadas, temos estados a destruir sistematicamente a ordem natural. Forçando o mundo natural a melhorar as nossas vidas e fracassando em ver a sua santidade essencial. Excluindo uma reverência pela natureza da nossa conceção do divino, desenvolvemos uma perceção não natural de Deus.”

E, igualmente, a autora socorre-se de mitos, da análise de sacrifícios animais para ilustrar como nas crenças antigas havia uma leitura de santidade dos objetos naturais. Socorre-se igualmente de várias crenças não só monoteístas, colocando-as a par de antigos mitos da criação, para nos dar o quadro mental de como a humanidade, no passado, procurava orientar as pessoas a sujeitar os seus desejos e o seu comportamento aos ritmos naturais da vida. Havia o elogio da gratidão pela natureza e Karen Armstrong invoca um poema escrito por S. Francisco de Assis, onde se tecem louvores à irmã lua e às estrelas que o Senhor criou no céu, ao irmão vento, à irmã água, ao irmão fogo, à nossa madre terra que nos sustenta e governa, e aproveita a autora para comentar: “Ler este poema podia tornar-se uma meditação diária, na qual deliberadamente trazemos à mente elementos do mundo natural que costumamos tomar como garantidos: o ar, do qual dependemos a cada segundo das nossas vidas; a humildade da água; ou o festivo vigor do fogo. E recorda-nos a nossa própria mortalidade que partilhamos com toda a natureza.”

Natureza Sagrada proporciona-nos uma viagem singularíssima, são mesmo citados autores britânicos com Wordsworth que não escondeu a sua nostalgia face às visões da sua infância que se alteraram profundamente na idade adulta, ou Samuel Coleridge que fazia do silêncio e de um certo grau de solidão para apreciar as maravilhas da natureza.” Se queremos parar a crise ambiental, necessitamos primeiro, como Coleridge, de procurar uma recetividade silenciosa ao mundo natural, trazendo-o as nossas vidas, a pouco e pouco, todos os dias.” Aliás, a autora irá citando poemas de Coleridge que nos ajudam a percecionar a gravidade da nossa crise ambiental “e a nossa responsabilidade pessoal por ela, mas também empenhados numa transformação da mente e coração que nos impelirá para reparar os danos. Vimos como a natureza era reverenciada pelos grandes sábios, místicos e profetas do passado. Depende agora de nós reviver esse conhecimento e compromisso e recuperar o nosso vínculo com o mundo natural”.

Esta obra foi considerada o melhor livro do ano para The New Yorker, recebeu os maiores elogios da imprensa internacional por abrir uma perspetiva espiritual, por trazer um contributo para o debate dos mais candentes problemas ambientais, trazendo compreensão de que o mundo natural é parte integrante de nós mesmos.

Pela intensidade e valor das suas mensagens, temos tudo a ganhar com este poderoso ensaio de uma das mais originais pensadoras do papel da religião no mundo moderno.


                                                                            Mário Beja Santos





segunda-feira, 28 de agosto de 2023

São Cristóvão pela Europa (228).

 

 

 

Na última visita que fiz à cidade italiana de Treviso, a tal de que o Infante D. Pedro filho de D. João I foi Marquês, falhei lamentavelmente a notável igreja de São Francisco.

Colmatei agora a lacuna. Ficou ainda a faltar a de Santa Luzia, irremediavelmente fechada.

Como todas as igrejas históricas da região tem um passado tormentoso. Após passagem de São Francisco de Assis na cidade, a construção iniciou-se em 1231, curiosamente o ano em que morreu em Pádua, Santo António.

Sofreu um incêndio em 1386, foi um centro de estudos teológicos e tribunal da Inquisição. Teve o seu primeiro grande atentado quando Napoleão aí instalou uma caserna, um hospital militar e estábulos para cavalos. Os Austríacos transformaram a Igreja num armazém militar de três andares divididos por andaimes.

Só em 1928, a Igreja foi devolvida ao bispo de Treviso, após profundo restauro.

O estilo é de transição entre o Românico e o Gótico. A presença de seis representações de São Cristóvão deriva certamente do elevado número de viajantes que passava pela igreja.


 


 

No interior, dois belíssimos frescos representando São Cristóvão. O primeiro em estilo Românico-Bizantino, do final do Século XIII, numa das paredes. O segundo do final do Século XIV, num pilar.


 


 


Existem quatro capelas com frescos de São Cristóvão.

A primeira é a chamada Capela de Santa Rita.

Num arco, um fresco representando o nosso Santo e São Francisco.

 



Na Capela Coletti, um fresco, da autoria de um artista veneziano do final do Século XIV, representando a Crucificação apresentando Jesus Cristo crucificado, ladeado por Nossa Senhora das Dores. Presentes também São Tiago, São Bento, São João Apóstolo, São Bartolomeu, São Francisco e São Cristóvão.


 

 

Na Capela Giacomelli, um fresco da autoria de Tomaso da Modena datado de 1354 representando a Virgem entronizada com o Menino.

Inicialmente estava ladeada apenas por São Lourenço, São João Baptista, São Luís de Toulouse e São Tiago Apóstolo. Posteriormente foram acrescentadas as figuras de Santo Antão, Santa Catarina de Alexandria e São Cristóvão. Têm aliás outra cor.




A Capela de São João Apóstolo, mandada construir pela família nobre Rinaldi, tem um fresco de 1351 também representando Nossa Senhora no trono e rodeada de vários santos: Santo Antão, São Francisco, São Boaventura e São Cristóvão:


 



A Catedral de Treviso existe desde o Século VI mas foi reconstruída em 1759 no estilo neoclássico.

Da construção anterior, a cripta conserva ainda as características românicas, com as suas 68 colunas.

Entre os frescos, um está consagrado ao nosso Santo.

 





                                    Fotografias de 9 de Agosto de 2021 e 5 de Agosto de 2023

 

                                                                                                        José Liberato








As dietas da moda: umas perigosíssimas, as outras problemáticas.

 




 

A Fundação Francisco Manuel dos Santos levou por diante o projeto de criar uma coleção sobre ciência alimentar, estão publicados cinco números, todos sob a chancela “Pela sua saúde”. Tem sentido referir um dos propósitos da iniciativa: “Hoje, mais do que nunca, valoriza-se a alimentação como comportamento modificável com impacto evidente na promoção da saúde física e mental e na prevenção da doença. Investimento seguro no futuro, a atenção ao que ingerimos depende da informação de que dispomos e da sua aplicação nas escolhas de consumo mais acertadas.” Far-se-á hoje referência ao quarto título da coleção intitulado As Dietas da Moda: Impactos Clínicos, por Ana Brito Costa, FFMS, 2023. Convém deixar claro que se optou por um tipo de comunicação que não visa explicitamente o leitor não iniciado, são textos focados na preparação de futuros profissionais de saúde e de um público com preparação na terminologia científica que é usada em alimentação e nutrição. No caso vertente desta obra de Ana Brito Costa, a autora não foge a procurar resposta a questões muito pertinentes, tais como: é possível perder peso de forma rápida e segura? Quais são os regimes de emagrecimento mais em voga? Como surgem? Com que validação científica? Serão eficazes? Com que efeitos e riscos?

É do senso comum que comer à mesa, nela procurar prazer nos alimentos e bem-estar, mudou radicalmente nas décadas que levamos de sociedade e hiperconsumo, gerando posições extremadas, mitos urbanos, negócios fabulosos de regimes milagrosos para uma população

 Heterogénea que quer comer rápido e barato, que quer adelgaçar a todo o preço, privando-se deliberadamente a festa da comida – vivemos entre as alegrias do ágape e uma comida de privação, não a dos pobres, mas a das classes médias e altas. Os gordos e as gordas reagem, formam mesmo associações para se aceitarem como são, desenvolvem-se as doenças do comportamento alimentar (anorexia e bulimia), o conceito de gordura é formusura vive horas de desespero, e ascendem os gurus que propalam a existência de alimentos que curam, tal como proliferam as lojas de produtos naturais onde se podem encontrar algumas dessas mezinhas que prometem queimar gorduras. É inegável a prevalência da obesidade com a atração dos alimentos-lixo, a vida sedentária, o deixar para muito mais tarde a preocupação entre os nexos existentes entre um regime alimentar equilibrado e muitas das doenças crónicas não transmissíveis (caso das cardiovasculares, as oncológicas e a diabetes).

 A obesidade faz perder anos de vida saudável e é propulsora do aparecimento de outras doenças crónicas, há quem procure a tábua de salvação querendo correr para outro extremo, socorrendo-se das chamadas dietas da moda, as que prometem efeitos rápidos omitindo que são grandes causadoras da destruturação dos hábitos alimentares.

A autora analisa o modo como se muda um comportamento alimentar, recursos com informação sobre alimentação saudável não faltam (mesmo quando essa informação é tendenciosamente interesseira), a motivação é pressionada no vasto campo das tendências da moda, e muito poucos daqueles que vão atrás de uma destas publicitadas dietas se interroga se é desejável uma velocidade na perda de peso e se há fundamento científico em tal dieta. E os desastres são mais do que amargos: “A evidência científica revela que, mesmo as estratégias mais adotadas e, portanto, as que mais estão na moda, apenas são cumpridas por períodos inferiores a 20% do tempo relativamente à duração das estratégias convencionais. O insucesso na gestão do peso a longo prazo, somado à frustração decorrentes das múltiplas tentativas malsucedidas para o conseguir, podem conduzir ao desenvolvimento de processos cognitivos de descrença e, consequentemente, a atitudes de ceticismo e passividade.”

Os média, as redes sociais, estão infiltrados pelos testemunhos pagos, ou não, em padrões alimentares que podem dar pelos nomes mais diversos: clean diet, alimentação consciente, a dieta por contagem de calorias, a plant-based diet e, um pouco mais atrás, a dieta do jejum intermitente, a dieta sem glúten, a dieta do ciclo de hidratos, a alimentação intuitiva, a dieta cetogénica, a dieta low carb, a dieta paleo e a dieta da limonada. Os resultados globais são manifestamente desastrosos, conforme a autora analisa em quatro grandes grupos de dietas (as que assentam na restrição significativa de hidratos de carbono; as que se baseiam na restrição de gordura; as que se distinguem pela restrição energética temporal e intermitente e as que se apresentam como desintoxicantes). A autora faz o respetivo inventário comentado, e diz preto no branco que umas são verdadeiros atentados à saúde pública e outras profundamente dececionantes. E dá exemplos: “A dieta low carb, pode melhorar os sintomas da doença a curto prazo, mas o seu perfil nutricional pode aumentar o risco de desenvolver doenças neurológicas em indivíduos saudáveis, têm sido consideradas um fator de risco a longo prazo para a litíase renal, o aumento uricemia e a osteoporose, a evidência a longo prazo é escassa.”; “Apesar de as estratégias low fat serem tendencialmente compostas por alimentos considerados mais saudáveis e restritas em alimentos associados ao aparecimento ou agravamento de doenças crónicas, elas também não estão isentas de défices nutricionais. A literatura sugere como frequentes os défices de vitamina E e B12, assim como de zinco, devido ao baixo consumo de carne e gorduras, mas apenas nas dietas muito pobres em gorduras”; “As dietas de jejum intermitente pressupõem a utilização de alimentos de elevada densidade nutricional com escolhas alimentares saudáveis, devendo salvaguardar-se uma ingestão proteica adequada nos dias de jejum. Naturalmente, e se não forem cumpridos estes pressupostos, pode incorrer-se em défices de micronutriente e numa maior perda de massa muscular”; “As dietas de muito baixo valor calórico estão associadas a múltiplos efeitos colaterais com várias complicações, como colelitíase, perda de massa magra, cetose e aumento de concentração de ácido úrico no sangue. O aumento dos corpos cetónicos resultantes destas dietas interfere na excreção renal do ácido úrico, o que resulta num aumento dos níveis desse ácido no sangue e pode levar ao aparecimento de gota. O colesterol sanguíneo pode, igualmente, aumentar, devido à mobilização expressiva da gordura corporal, aumentando o risco de desenvolvimento de cálculos biliares e doenças cardiovasculares.”

Moral da história: “A terapia nutricional deve ser aplicada por nutricionistas como parte de uma equipa multidisciplinar e deve ter como objetivo alcançar resultados de saúde positivos, não apenas a perda de peso. A adesão às mudanças comportamentais a longo prazo pode ser um problema. Neste sentido, e para melhorar a resistência de comportamento alimentares adequados, devem ser programadas intervenções baseadas em padrões alimentares e na qualidade nutricional dos alimentos. A dieta ideal para o tratamento da obesidade deve ser segura, efetiva, nutricionalmente equilibrada, promover a aquisição de hábitos alimentares saudáveis e facilitar a adesão e manutenção a longo prazo.” Não vá em dietas da moda, não aceite qualquer um destes regimes só porque lhe prometem resultados a curto prazo, isto quando a nossa vida saudável é uma corrida a longo prazo.


                                                                                            Mário Beja Santos




quarta-feira, 23 de agosto de 2023

São Cristóvão pela Europa (227).

 


 

 

A Região italiana de Veneto abrange uma parte importante do Nordeste da Itália e tem a sua capital em Veneza.

Na Região estive em duas cidades que têm imagens de São Cristóvão: Robegano e Treviso.

A igreja de São Tiago e São Cristóvão em Robegano foi consagrada em 1707, mas a fachada data de 1856. É em terracota e de estilo Renascença.

 

 


 

No cimo da fachada uma estátua em mármore branco de 1903 da autoria de Enrico Bragantini (1875-1950):

 



No interior, no tecto, um fresco de Giovanni Rossi, representando a Ascensão de Nossa Senhora com o Menino e os santos protectores da Igreja (Tiago e Cristóvão).

 


No altar-mor, uma escultura em madeira datada de 1610 da autoria de Francesco Terilli (1550-1630):






 

                                                            Fotografias de 28 de Julho de 2023

                                                             José Liberato






domingo, 20 de agosto de 2023

São Cristóvão pela Europa (226).

 


 

Dediquei há dois anos vários posts à cidade de Veneza.

Voltei agora e encontrei mais imagens de São Cristóvão.

A começar por um dos mais icónicos monumentos da cidade: o Palácio Ducal mais conhecido como Palácio dos Doges.




A Sala do Grande Conselho é uma das mais imponentes do Palácio.

Era onde reunia o órgão legislativo da República e onde se elegia o doge.

Merece a pena mencionar o muito complexo (e exótico) processo de eleição do doge, conforme nos é apresentado pela escritora Jan Morris (1926-2020).

Sorteavam-se nove membros do Conselho. Esses nove escolhiam 40 eleitores, mas cada um tinha de ser aprovado por sete. Destes 40 sorteavam-se 12. Estes 12 escolhiam 25. Entre os 25 sorteavam-se nove. Estes 9 escolhiam 45. Dos 45 sorteavam-se 11, estes escolhendo 41.

Os 41 reuniam-se e elegiam por maioria de 25 o doge. Tudo se passava evidentemente no universo da aristocracia veneziana, mas com o objectivo de limitar a influência de cada família em particular. Imagino, contudo, que as grandes famílias apenas tiveram de se adaptar ao sistema.

A Sala do Grande Conselho ardeu em 1577 e teve de ser parcialmente refeita.

Ponto crucial da sala é a imensa tela da autoria de Tintoretto (1518-1594), O Paraíso. Trata-se de uma das maiores telas jamais pintada com uma largura de quase 23 metros contendo cerca de 500 figuras.

Foi o resultado de um concurso público ganho aliás por Veronese. Tendo este sido surpreendido pela morte, entrou em cena Tintoretto, o filho e a sua escola.

O escritor Robert Dessaix (nascido em 1944) ironiza acerca da tela e opina que o Paraíso de Tintoretto não é propriamente muito apetecível.




Entre as centenas de santos e bem-aventurados é possível divisar o nosso São Cristóvão:

 



Apresenta-se de uma maneira original. Não há Menino Jesus, talvez por o próprio Jesus Cristo estar representado adulto no centro da tela. Ele próprio transporta o globo celeste encimado pela cruz. Ajuda Raquel, a figura bíblica, e várias crianças a atravessar um rio. Uma destas crianças é uma filha do pintor.

 

Noutra área do Palácio, uma imagem de madeira pintada e dourada do Século XVIII representa o nosso Santo

 


E, cume da presença de São Cristóvão no Palácio, o famosíssimo fresco de Tiziano (1488/1490-1576), paradigma de muitas representações do Santo no mundo inteiro, pintado em 1523-1524 num autêntico vão de escada nos aposentos privados do doge:

 

 

Veneza está na linha do horizonte.

 

Ticiano faz-nos lembrar a belíssima Basílica Santa Maria Gloriosa dos Frades em Veneza. Nela, avultam outra obra-prima de Tiziano, a Assunção da Virgem, recentemente restaurada, e o monumento em sua memória, erigido pelos Austríacos num acto político:

 



E no coro, o cadeiral em madeira tem numa imagem de São Cristóvão:

 


                                                               Fotografias de 28 de Julho de 2023

 

                                                               José Liberato

 

 


sábado, 19 de agosto de 2023

Todos os Homens São Mentirosos, por Alberto Manguel.

 




 

Todos os Homens São Mentirosos, por Alberto Manguel:

Um quase inquérito policial sobre acidente ou crime, verdade ou fantasia

 


 

Este escritor polifacetado (não lhe escapa o ensaio, o romance, a crítica literária, a antologia, a tradução, a edição, a intervenção televisiva com que agora nos honra, desde que escolheu viver entre nós e oferecer a sua biblioteca monumental aos lisboetas) é medularmente argentino e sente-se à légua a dívida que tem com um escritor seu conterrâneo, o genial Jorge Luis Borges. Porque este romance Todos os Homens São Mentirosos, Tinta da China, 2023, cultiva os enredos pautados pelo inexplicável, o duvidosamente visto. Quando um jornalista francês se lançou à procura do esclarecimento da morte do genial escritor sul-americano Alejandro Bevilacqua, que se despenhara mortalmente do balcão da casa onde vivia, em Madrid, isto nos anos 1970, vai recolher testemunhos absolutamente dispares, mas todos eles fabulosos, harmoniosamente labirínticos, crípticos: da sua presumível amante espanhola, de um escritor argentino que garante ter sido o seu único confidente, do cubano que jura a pé juntos ter partilhado a cela com ele durante a ditadura militar argentina e, pasme-se, até de um delator que já morreu, mas continua a informar desde o além. A trama parece desorientar, e será sempre mais fácil para o leitor que para o jornalista dizer uma de duas coisas: todos os homens são mentirosos ou para cada um a sua verdade.

Alberto Manguel veste o fato do tal escritor argentino que garante ter sido o seu único confidente. Teriam sido amigos que não tinham nada em comum, vai encher a entrevista com mais perguntas que respostas, descreve a genealogia dos Bevilacqua, gente que vem de Bérgamo, e dá-nos o retrato desse homem que saltou do balcão da casa e se estatelou no solo da rua: “Tinha uma espécie de graça natural, uma elegância simples, uma presença anónima. Alto e magro como era, movia-se lentamente, como uma girafa. A sua voz era ao mesmo tempo rouca e tranquilizadora. Os seus olhos encapuchados, latinos, diria eu, davam-lhe um aspeto sonolento. Quando estendia os seus dedos finos, amarelos de nicotina, para agarrar a manga do interlocutor, deixávamo-nos prender, sabendo que toda a resistência era inútil.” Dirá mesmo que era um cavalheiro da província. Ficamos a saber que não era muito amigo do trabalho, que recebera uma herança da avó, que inesperadamente se encontraram em Madrid, dois exilados. Fatal como o destino, volta-se ao passado para falar de Buenos Aires, um confidente tem muitos segredos, o entrevistado fala dos amores precoces de Bevilacqua, a importância que teve na vida dele Loredana, que vivia com um artista de marionetas, tudo acabou na água; e depois temos a vida cosmopolita e intelectual de Madrid, volta-se ao passado para falar de Graciela, outro amor sem futuro, agora em Madrid Bevilacqua dá-se com a ardente Andreia, nesta altura Bevilacqua vende bugigangas nas ruas e a Andreia descobre na casa onde vivem um saco onde havia um embrulho, ela abriu e era uma pilha de folhas, a primeira tinha um título: Elogio da Mentira, por portas e travessas teremos obra editada, a crítica exalta-a, no mínimo trata-se de uma obra-prima. E caminha-se para o mistério.           No dia do lançamento o autor foge, recolhe a casa, há uma confusão de entradas e saídas. E não tem resposta para estas perguntas: quem era esse homem que ele conhecera sob o nome de Alejandro Bevilacqua, quem tinha sido essa personagem contraditória, luminosa e opaca?

O jornalista bate a outras portas. Há quem conteste tudo quanto disse Manguel. A amante arvora-se na verdadeira conhecedora de Alejandro, conta a história do saco e do manuscrito, fez-se a edição à revelia de Bevilacqua. E há uma história estranha de alguém que apareceu dizendo que era autor daquele livro, há para ali páginas de uma grande beleza: “Escrever é uma forma de ameaça com o que não se pronuncia em voz alta, com a sombra das letras a atormentar-nos entre as linhas.” Ela confessa que Alejandro tinha sido preso e espancado, que havia policias sinistros. E termina o seu depoimento: “Li em algum sítio que a única coisa que podemos fazer para lutar contra a irrealidade do mundo é contar a nossa própria história.”

E surge alguém que conheceu Bevilacqua na prisão, era escritor, confessa ser o autor do Elogio da Mentira, pediu a Bevilacqua que se acaso ele saísse da prisão em primeiro lugar levasse o manuscrito. Passou-se este tempo todo, também veio para Madrid, está presente no dia do lançamento, mais tarde trocam confidências e Bevilacqua chega a dizer-lhe que já não se lembrava que tinha tal manuscrito e não era minimamente responsável pela sua publicação. E descreve aquela balbúrdia lá em casa que culminou talvez com um assassinato ou um suicídio.

Há parágrafos prodigiosos que surgem como um solilóquio, é alguém que ganha a vida como informador da polícia política, irá também convergir para Madrid, o nevoeiro sobre o destino de Bevilacqua adensa-se, é como se alguém nos estivesse a falar do outro mundo.

Compete ao jornalista o grande final, não há euforia, ele parece arrepelar o cabelo, toda esta trama, os depoimentos do tal confidente, da amante, daquele que jura ter partilhado a cela, do delator que depõe como se estivesse numa reunião espírita, é tudo nevoeiro, e clama para que o leitor não se sinta defraudado: “O que importa foi dito. Saber quem matou quem, como, porquê, são assuntos que apenas interessa ao burocrata ou ao inspetor de polícia, e eles não lerão estas páginas. A personagem que cheguei a conhecer por interposita persona é quase inexistente; transita de hipótese a hipótese segundo a sua figura concorde com determinados dados e preconceitos (…) Nem todos esses diversos Bevilacquas são os que o jornalista persegue. Nem todas as facetas de uma realidade lhe interessam. Apenas uma, se é sincero, ou talvez nenhuma. Por isso escreve. Para dá-la a conhecer de um ponto de vista particular, privado (…) Agora que conheço (ou penso conhecer) a história de Alejandro Bevilacqua, sei que não a escreverei. Em parte, porque não existe como história, como essa que os leitores de Elogio da Mentira esperam, prólogo ou coda ao livro fantasma, biografia desse espectro quase anónimo que hoje usurpa o papel de autor nas bibliotecas do nosso mundo (…) Não sei se o próprio Bevilacqua teria reconhecido, nesse catálogo de versões biográficas, a sua, a verdadeira. Como saber, entre tanta figura que se parece connosco nos espelhos, qual é a que nos representa cabalmente e qual é a que nos atraiçoa. Do nosso ínfimo ponto do mundo, como poder observamo-nos a nós próprios sem falsas imaginações? Como distinguir a realidade do desejo?”

Atrevo-me a dizer que mesmo quem souber ler nas entrelinhas será capaz de descobrir se houve acidente ou crime e quem, acima de tudo, era esse ser humano que dava pelo nome de Alejandro Bevilacqua, se era infame, herói, genial escritor ou oportunista. Afinal, nada se fica a saber em concreto.

De leitura obrigatória.


                                                                                            Mário Beja Santos





sexta-feira, 18 de agosto de 2023

São Cristóvão pela Europa (225).

 

 

Nos últimos dias de Julho e primeiros de Agosto dei uma volta pela Itália e pela Áustria, sempre atento a imagens do nosso Santo.

Comecei pela Laguna de Veneza. Bem conhecidas são as belíssimas ilhas de Murano e Burano. Mas menos conhecida é a ilha de Torcello. Chegou a ter cerca de 20000 habitantes na época do final do Império Romano quando as populações aí encontravam um abrigo (relativo) das invasões dos Hunos e dos Lombardos.

Foi mesmo sede de bispado, dispõe de uma catedral, já referida em documento do longínquo ano de 639.

A Basílica de Santa Maria da Assunção, meia bizantina meia gótica mostra como estamos em local de confluência de civilizações. Está ladeada pela Igreja de Santa Fosca.

  



O Museu de Torcello está instalado no que foi o Palácio do Conselho da Ilha.

Na sua frente, um assento imponente conhecido pelo trono de Átila, havendo que reconhecer que a sua presença na ilha é uma mera lenda.


 



 

No interior do Museu uma pintura em madeira do Século XV, atribuída à escola de Michele Giambono, num estilo gótico tardio, representa São Cristóvão.

 


Torcello foi um ponto de grande influência nos primórdios de Veneza, e teve, segundo a escritora Jan Morris, ruas pavimentadas e muitas pontes. vinte igrejas esplêndidas. Diz-se que os dois cidadãos que roubaram o corpo de São Marcos, trazendo-o para Veneza, eram de Torcello.

Mas o progresso de Veneza, o assoreamento e as doenças levaram a um declínio inevitável. As pedras das suas igrejas foram pilhadas pelos venezianos para a construção dos seus palácios.

Só começou a ser redescoberta quando uma certa elite lhe encontrou uma melancolia romântica.

E também pelos caçadores. Um deles foi Ernest Hemingway que aqui caçava patos bravos e depois se apresentava no célebre Harry’s Bar com as suas presas ainda penduradas no cinto.

 

                                    Fotografias de 27 de Julho de 2023

 

                                    José Liberato