quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
46750.
O João Pina já andou muito. Pelas
cadeias da ditadura portuguesa, pelos desaparecidos da Operação Condor e agora
pelo Rio de Janeiro, favelado e violento. O produto do trabalho dos seus anos cariocas está agora em livro, que pode – e deve!
– comprar até 5 de Março (http://46750book.joao-pina.com/). Sim, é publicidade descarada, pois vale a pena. Sobre
o Rio dos morros há um coffee table book interessante, colorido, apelativo,
Inside the Favelas, de Douglas Mayhew. O
livro do João é diferente, muito diferente. Se me permitem, esmagadoramente
diferente – e melhor.
Minimalismo.
O amor e uma bacana.
Ricardo Álvaro
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Notas sobre A Grande Onda - 16
16.
Uma
das xilogravuras de Hokusai em que é mais notória a interacção entre os dois
elementos – terra e mar – pertence à série Cem
Poemas por Cem Poetas, datada de finais da década de 1830 (mais
precisamente, circa 1835-36).
Publicada
por Nishimuraya Yohachi, o mesmo editor de Trinta
e Seis Vistas do Monte Fuji, onde se insere A Grande Onda, a série Cem
Poemas por Cem Poetas (Hyakunin
isshu uba ga etoki; 百人一首 宇波がゑとき, que em inglês tem a designação One Hundred Poems by One Hundred Poets, Explained
by the Nurse, e em francês Cent
poèmes de cent poétes expliqués para la nourrice, podendo ser traduzida
como Cem Poemas por Cem Poetas, Explicados
pela Nutriz), reveste-se de particular significado na obra de
Katshushika Hokusai, sendo um dos seus últimos trabalhos em xilogravuras de
grande formato.
Da série Cem Poemas por Cem Poetas
Museu Britânico, 1906, 1220, 0.583
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A série
reproduz uma antologia de poemas datada do século XIII que ainda hoje é das
mais apreciadas e populares no Japão, tendo-se prestado no passado a um curioso
divertimento da burguesia citadina: nesse jogo de salão, um dos participantes
citava a primeira estrofe, cabendo aos restantes parceiros dizer quem era o
autor e prosseguir a declamação do poema.
A
xilogravura, descrita aqui, está assinada «Do pincel de Iitsu, o antigo Hokusai» (Saki
no Hokusai Iitsu hitsu; 前北斎為一筆) e tem por título Yamabe no Akahito
(山部の赤人), o nome do autor do poema.
Atente-se no modo como as ondas se projectam
sobre a costa a partir da Baía de Suruga. Ao fazê-lo, entram pela terra
adentro, o que poderia indiciar estarmos perante um mar revolto, o que é desmentido
pela placidez das águas na baía, pela serenidade dos dois navios, pela suave
correnteza das ondas que riscam horizontalmente o espaço central da imagem. À
semelhança de A Grande Onda, os
elementos mais relevantes não se encontram no centro mas nas margens da gravura,
que é preenchida por completo em todas as suas dimensões verticais e
horizontais, estando mais carregada de elementos na secção inferior, com as
figuras humanas e a elevação rochosa ocupando todo o extremo-direito, e o
contraponto das ondas descaído para o centro e a esquerda, numa faixa
horizontal que acaba por destacar a presença do Monte Fuji, o qual surge no espaço
menos preenchido da imagem, erguendo-se na metade superior do desenho.
A terra – se quisermos, a vegetação
terrestre – vai adquirindo uma coloração mais esverdeada à medida que se desce
a encosta. E, no sopé, duas ondas penetram os arbustos, a ponto de apenas
percebermos o que é da terra e o que é do mar devido à coloração distinta das
vagas e das plantas (plantas que, à medida que se desce a encosta, adquirem um
perfil cada vez mais próximo do das vagas marítimas, a ponto de Hokusai ter sentido
a necessidade, por assim dizer, de colocar no fundo um conjunto arbóreo a azul,
com os ramos bem identificados, para se perceber que estamos ainda perante dois
mundos diversos, o da terra e o do mar). Se acaso os arbustos que emergem do mar
tivessem uma cor azul, ou branca, não julgaríamos serem ondas ou a sua espuma?
Originalmente, pensou-se que a série Cem Poemas… teria, como o nome indica,
cem gravuras, sendo um empreendimento de grande fôlego. Muito provavelmente,
foi a crise económica que afectou o Japão em meados e finais da década de 1830 que
levou à interrupção da série, da qual só foram publicadas 27 estampas.
Da série Cem Poemas por Cem Poetas
Museu Britânico, 1951, 0714, 0.40
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Por esse motivo, conserva-se uma peça
única, de extraordinário valor, descrita aqui: o desenho original de Hokusai para uma das
gravuras, não destruído no processo de impressão. Mais precisamente, aquilo que
se designa «desenho pronto para gravação» (hatsushita-e ),
tal como Hokusai o traçou. Taira no Kanemo (平兼盛), o nome do poeta falecido em 990 a.C. A gravura, de delicado traço, mostra um conjunto
de viajantes que fazem uma paragem na sua jornada para consultar um
fisionomista profissional, que analisa o carácter e a personalidade de um dos caminheiros
escrutinando o seu rosto com o auxílio de uma lupa.
terça-feira, 27 de fevereiro de 2018
Ao fundo das malhas.
De
Maria Clotilde Almeida, Bibiana de Sousa, Paula Órfão e Sílvia Teixeira, eis um
livro portentoso. Jogar Futebol com as
Palavras. As metáforas nas páginas de A
Bola. A primeira parte pode parecer enfadonha e excessivamente académica.
Mas, feito o intervalo, regressa-se ao campo com pérolas inauditas, tais como:
− «A testa franzida do grego do Alto
do Pina» (sobre Fernando Santos)
− «Banho turco de João Moutinho
homem invisível da armada lusa»
− «Os dois querem dançar com a
rainha» (Vitória de Guimarães e FCPorto, sendo a Taça de Portugal a «prova
rainha do futebol português»)
− «Jesus diz que é tempo de esquecer
a nota artística»
− «Meio olé a caminho da vitória»
(empate com a selecção de Espanha)
− «Águia empurra águia para baixo»
(Académica vs. SLBenfica)
− «Que se Danny o empate!»
− «FCP com baixa para Manchester mas
carregadinho de moral»
− «Dois sopros de Quaresma afugentaram
o fantasma»
− «Com o mágico de serviço foi uma
noite do diabo»
− «Novo fantasma no horizonte de um
dragão sem medo do passado: entre o céu e o inferno»
− «Lisandro ofereceu corpo a dragão
pouco arrojado»
− «Quem escapa em dois infernos
merece bem o paraíso»
− «A história de um dragão
preguiçoso que virou papão»
− «Jorginho de bandeja… César a
banquetear-se»
− «“Rato” Miccoli devorou a massa
tenra leiriense»
− «Caldeirão nem aqueceu»
− «Camarões para intoxicar!»
− «Recheio de Figo»
− «O título está na ementa»
− «No confronto dos génios… o
Mustang virou Ferrari!»
− «Sado de águas tranquilas»
− «Atitude de campeão maquilhou
rugas de mau futebol»
− «Primeiro foi o eclipse e só
depois alguma luz»
− «Plantel vai emagrecer»
− «De fraque ou fato-macaco, leão
não perde a classe»
− «Confronto de almirantes»
− «Ronaldo dinamitou o Villa»
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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018
Notas sobre A Grande Onda - 15
15.
Algumas
análises do trabalho de Katsushika Hokusai, como a que é empreendida por Olaf
Mextorf em Hokusai (Könemann, 2017),
sublinham a existência de várias fases numa obra que se desenvolveu ao longo
de várias décadas.
Assim,
distingue-se o período Shunrō, de 1779 a 1794, o período Sōri, de 1794 a 1798,
o período Hokusai, de 1798 a 1810, o período Taito, de 1810 a 1820, o período
Iitsu, de 1820 a 1834, e, no final, o período Gakyō rōjin Manji, de 1834 a 1849.
As
ondas – marítimas, fluviais, lacustres – estão presentes em todas as etapas da
trajectória artística de Hokusai.
Muitas
aproximações à Grande Onda começam
por escrutinar o modo como Hokusai representava as ondas, ou como foi evoluindo
essa representação na sua obra.
O
catálogo do Museu Britânico tem 743 entradas referentes a Katsushika Hokusai,
mas nem todas possuem imagens disponíveis online.
Procedeu-se
a uma selecção de alguns exemplos mais significativos, com base exclusivamente
na colecção do Museu Britânico, ou seja, não contemplando outras obras onde a
presença das ondas é marcante, com destaque para Vista de Honmoku ao largo de Kanagawa, de 1803, e Kaijo no Fuji, no segundo volume de Cem Vistas do Monte Fuji, de 1834.
Vista de Honmoku ao largo de Kanagawa,1803
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Versão colorida de Kaijo no Fuji
Cem Vistas do Monte Fuji, 2ª volume, 1834
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Mais
do que um inventário exaustivo, este itinerário não cronológico por 18 imagens permite
entrever semelhanças – e dissemelhanças – com A Grande Onda.
No
entanto, e talvez mais interessante do que explorar o modo como Katsushika
Hokusai desenhava as ondas será ver a forma como a terra se confunde com o mar;
em termos simples, as ondas terrestres.
Na
série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji,
onde se inscreve A Grande Onda, encontra-se
uma xilogravura da qual existem duas impressões, uma com as rochas esverdeadas (descrição aqui),
outra inteiramente feita a azul da Prússia (descrição aqui). Tem a assinatura «Do pincel de Ilitsu,
o antigo Hokusai» (Saki no Hokusai Litsu
hitsu, 前北斎為一筆).
A paisagem representa Kajikazaw, na província de Kai, e a gravura foi impressa
no início da década de 1830.
Da série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji
Museu Britânico, 1907, 0322, 0.3
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Da série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji
Museu Britânico, 1937, 0710, 0.162
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As afinidades com A Grande Onda são flagrantes.
Primavera em Enoshima, 1797
Museu Britânico, 1937, 0710, 0.206
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É
comum apresentar-se como antecedente de A
Grande Onda a representação do mar em Primavera
em Enoshima (Enoshima Shumbo, 江ノ島春望), xilogravura de 1797 assinada «desenhada por Hokusai Sori» (Hokusai Sori ga, 北斎宗理画), integrada no livro Yanagi no ito (descrição aqui).
xilogravura sem título
Museu Britânico, 1907, 0531, 0.158
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Atente-se no mar serpenteante e naquilo que parece ser, não o sendo, espuma que se acumula aos pés da figura feminina – ou de actores em papéis femininos (onnagata) – presente nesta xilogravura sem título de finais de 1770 a princípios de 1790, correspondendo à primeira fase da carreira de Hokusai, o período Shunrō (1779 a 1794). A inscrição no lado esquerdo da imagem diz precisamente «desenhado por Shunro» (Shunro ga, 春郎画) (descrição aqui).
Um
dos tópicos mais interessantes desta xilogravura consiste precisamente na
indistinção entre terra e mar, um elemento sincrético também marcante em A Grande Onda. O rochedo é envolto pelas
ondas a ponto de se confundir com elas, sensação que se adensa pela continuidade
das elevações rochosas de ambos os lados da figura feminina e, bem assim, pelos
pontos negros que salpicam a parte inferior da paisagem, os quais tanto podem
ser solo firme como salpicos salgados de um mar bravio.
Rostos do apartheid: David Goldblatt.
Duas crianças brincam, uma branca e uma
negra. Fotografadas assim, na África do Sul, corria 1963. Aparentemente, tudo
normal. Mas era a África do Sul de 1963, em que a criança branca era um kleinbaas, um «pequeno senhor», e a
negra era um klonkee, um «pequeno
negro». Brincavam juntas, mas na hora de puxar o carrinho, quem se erguia e
esforçava era o negro, sempre o negro. «Quem puxava sempre era o negro», diz
David Goldblatt (1930-), que há mais de sessenta anos fotografa o seu país, a preto e
branco. Agora, o Centro Pompidou dedica-lhe uma enorme retrospectiva.
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