quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Aqui Podia Haver Árvores: participe, contribua!

 


Rua de Campolide, Lisboa 















São Cristóvão pela Europa (199).

 


 

Continuamos na região da Suábia do Estado da Baviera

No complexo sistema administrativo alemão, Augsburg é, ao mesmo tempo um distrito e uma cidade.

No distrito de Augsburg situa-se a igreja de São Jorge de Westendorf.

Num dos seus altares laterais, uma bela imagem do nosso Santo.

 






A cidade de Augsburg tem, na catedral, uma das imagens mais conhecidas de São Cristóvão, já aqui publicada:

http://malomil.blogspot.com/2019/09/sao-cristovao-pela-europa-94.html

Mas na última visita pude encontrar mais duas.

Na Igreja da Santíssima Trindade, no altar dedicado a São José, um quadro representando São Cristóvão acompanhado como é hábito pelo Menino Jesus mas também por São Tarcísio, jovem mártir do tempo romano.

 




A igreja de São Maurício é uma das principais do centro da cidade

Era a paróquia dos banqueiros Fugger e por isso muito rica. Teve muitas fases e estilos. Era barroca quando foi completamente destruída durante a II Guerra Mundial.

À catástrofe sobreviveu um conjunto de estátuas de madeira da autoria de Georg Petel (1601-1635), escultor que tendo convivido com Rubens se inspirou muito nele. Uma delas representa São Cristóvão e constituiu um modelo para várias esculturas do Santo na Região.

A igreja foi reconstruída num estilo moderno e despojado de grande beleza.







 

Fotografias de 13 de Agosto de 2022

 

José Liberato




quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Entre Oriente e Ocidente (20).

 



 

Nas cidades de Vlore e Berat encontram-se vestígios da estética do realismo socialista do tempo da ditadura albanesa:


 





A paisagem mostra pontes bem vetustas e campos de petróleo. A Albânia possuirá as maiores reservas da Europa em terra firme.

 



 

A Cidadela de Berat abriga a Catedral do Adormecimento da Virgem e o Museu Onufri.

O adormecimento de Maria corresponde a uma das diferenças entre católicos e ortodoxos. Estes não reconhecem o dogma da Assunção de Maria determinado pelo Papa em 1950. Segundo os ortodoxos, um anjo anuncia a Maria que a morte se aproxima. Ela adormece e Jesus Cristo colhe a sua alma representada por um bébé. Aqui numa obra do pintor Onufri:

 


 

Onufri foi um pintor activo no Século XVI, criador da Escola de Berat. As suas origens são desconhecidas. Provavelmente passou por Veneza. Uns dizem-no albanês, outros grego. O que é certo é que os seus ícones são de uma beleza extraordinária, caracterizados pelo vermelho de Onufri.

 




 

 

Fotografias de 19 de Maio de 2022

 

José Liberato

 

 




terça-feira, 25 de outubro de 2022

São Cristóvão pela Europa (198).

 


 

No Estado da Baviera existe a Região da Suábia.

Divide-se por sua vez em vários distritos. Hoje trato de um deles: o de Donau-Ries.

A igreja de Santa Maria em Auhausen é hoje de culto luterano.

Fez parte de um imenso mosteiro beneditino construído no início do Século XII.

No altar-mor, avulta um magnífico retábulo constituído por 16 painéis da autoria de Hans Schäufelin, activo na primeira metade do Século XVI e contemporâneo de Dürer. O tema é a coroação de Maria, mas um dos painéis é dedicado aos 14 Santos auxiliares dos quais se destaca São Cristóvão.

Finalmente uma estranha imagem do nosso Santo em calcário de que só subsiste a metade inferior. De meados do Século XV tem 2,86m de altura o que permite imaginar a altura original da estátua.

  





 

 

Em Bühl am Ries, a Igreja de Santa Maria também está dedicada ao culto luterano.

Destaca-se pelos seus frescos muito antigos.

Entre eles, o que representa São Cristóvão, de cerca de 1300, e o que mostra os medalhões com os símbolos dos evangelistas de cerca de 1450:

 




 

Fotografias de 13 de Agosto de 2022

 

José Liberato





sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Salazar global.


 





Apresentação de O Estado Novo de Salazar

– Uma terceira via autoritária na era do fascismo

 

 

 

          Começo por saudar o coordenador, António Costa Pinto, amigo de muitos anos, e todos os colaboradores deste livro, dizendo-lhes, antes de mais, e com toda a franqueza, que estais perante um erro de casting, e por uma razão muito simples: tendo investigado há uns anos alguns aspectos do salazarismo, não faço investigação há algum tempo nesta área (em bom rigor, em área nenhuma), ou seja, distraí-me, deixei passar este e muitos outros comboios, e há dias, quando comecei a folhear este livro, apercebi-me da complexidade, da diversidade e da profusão de estudos que actualmente existem sobre o Estado Novo, fruto do dinamismo que este campo alcançou, do trabalho das novas gerações de investigadores, cuja precariedade não afectou a qualidade, do nível de internacionalização que aqui se atingiu, existindo muita investigação de estrangeiros ou obras colectivas co-organizadas por estrangeiros.

 

          O estudo do Estado Novo mudou, e mudou muito, sem dúvida para melhor no que ao alargamento de horizontes respeita, e é de elementar justiça afirmar, hoje e aqui, que o principal artífice desta mudança se chama António Costa Pinto.

 

          Trata-se do culminar de uma trajectória por ele iniciada há anos – não diria há muitos e muitos anos, pois o António ainda é jovem – e começada logo nos trabalhos do seu doutoramento em Florença, em 1992. Logo aí, seja no ensaio sobre os «camisas azuis» de Rolão Preto, seja no livro de enquadramento sobre o salazarismo e o fascismo europeu, se notava o propósito de situar o estudo do regime de Salazar num contexto mais vasto, com vista a romper o círculo vicioso em que caíra a discussão paroquial sobre se o regime do Estado Novo fora ou não um fascismo.

 

          Compreender o Estado Novo no ambiente internacional da época, o tempo dos fascismos do entre-guerras, não significa perdoar-lhe os defeitos ou negar-lhe a natureza de ditadura. Eis um caso clássico em que tout compreendre não é tout pardonner, longe disso. Simplesmente, e na peugada daqueles que, em obras notáveis, tinham desbravado os primeiros caminhos para um estudo histórico do salazarismo, de Manuel Lucena a Braga da Cruz, passando por Fernando Rosas ou Fátima Patriarca, importava dar um passo adiante, sem necessariamente ir contra o que já se havia avançado; e esse passo adiante, até por força de ter sido dado por António Costa Pinto numa instituição estrangeira e internacional, passava necessariamente por um esforço comparativo.

 

          António Costa Pinto foi, assim, o primeiro historiador que se debruçou sobre o Estado Novo a partir de fora, duplamente a partir de fora: fazendo-o inserido numa rede internacional de colegas que historiavam os autoritarismos e fazendo-o com o benefício da distância em relação às controvérsias domésticas que radicavam, na maioria das vezes, em apriorismos ideológicos de parte a parte, como, de resto, ainda hoje em dia sucede, aliás.

 

          Para alguns, mais provincianos, tratou-se de um excesso de estrangeiramento, mas o decurso do tempo mostraria que era este o caminho certo, o caminho da internacionalização, que acabaria por se converter no paradigma das ciências sociais portuguesas, porventura excessivamente em certos casos, diria eu.

 

          Este cosmopolitismo deu a António Costa Pinto outra vantagem, tremenda e muito invejada: deu-lhe uma visão distanciada, distendida e complacente em face das misérias do nosso quotidiano académico (que, no entanto, continua a acompanhar com a ávida curiosidade de uma porteira), uma tolerância face às falhas alheias e próprias, uma joie de vivre e um espírito de convivialidade, de amizade, de diálogo aberto e moderação que fazem dele um caso singular da nossa academia.

 

          A preocupação em situar os temas e os problemas em contextos mais vastos, a par dos contactos internacionais que a sua transbordante simpatia foi forjando por esse mundo fora, levaram António Costa Pinto, naturalmente, para os estudos comparatísticos, que desenvolveu não apenas na História, mas noutro dos seus domínios de interesse, a ciência política, de que é exemplo o Oxford Handbook of Portuguese Politics, que coordenou com Pedro Magalhães e Jorge Fernandes e que em breve será publicado entre nós.   

 

E agora, nos seus trabalhos mais recentes, começa a trilhar até caminhos jurídicos, ligados ao constitucionalismo comparado ou àquilo a que pomposamente se chama o interconstitucionalismo.

 

          Ou seja, António Costa Pinto foi o primeiro e o pioneiro no estudo comparado do salazarismo, sendo este livro o culminar desse percurso de três décadas. Mas há, naturalmente, uma evolução notável: enquanto no passado estudou a circulação dos modelos de fora para dentro, ou seja, aquilo que o salazarismo terá recebido do fascismo europeu e dos demais autoritarismos, agora dá-se um passo mais ousado, muitíssimo mais ousado (e até arriscado), que é analisar o salazarismo de dentro para fora, como artigo ou modelo de exportação para outras paragens.   

 

          Como disse, é um passo arriscado e diria até polémico, o que não deixa de surpreender, pois sendo António Costa Pinto tão consensual, tão português suave, acaba por produzir obras que escandalizam. E se no passado escandalizou por, sem quaisquer negacionismos, chamar a atenção para a necessidade de estudarmos o salazarismo na sua época e no ambiente geocultural europeu, agora vai muito mais longe e eleva o Estado Novo a arquétipo e paradigma de autoritarismos da Europa e da América Latina.

 

          Para aqueles que cultivam um tipo de História «militante» que não se destina tanto a estudar o passado, mas a denegri-lo, isto parecerá uma heresia, pois à primeira vista é, digamos, um «ponto a favor» de Salazar, dizendo-se que o seu regime, apesar de provinciano e tacanho, foi apreciado e saudado pelo mundo fora, foi «modelar» no estrangeiro.

 

          Quando pensava na proposta de António Costa Pinto e dos demais autores deste livro, sopesando os seus méritos e os seus problemas, lembrei-me de uma frase de uma escritora britânica recentemente falecida, Hilary Mantel, que teve, se quisermos, uma daquelas intuições femininas de pitonisa, surgidas do nada, situadas fora dos seus campos de trabalho e de escrita, e que também encontramos em mulheres como uma Agustina Bessa Luís ou uma Clarice Lispector, por ex.

 

Dizia Hilary Mantel: «os factos não são a verdade, ainda que façam parte dela. E a História não é o passado – mas sim o método que desenvolvemos para organizarmos a nossa ignorância do passado. É o registo das coisas de que existe registo», da mesma maneira que uma certidão de nascimento não é um nascimento, que um mapa não é uma viagem, que um guião não é um filme.

 

          Ou seja, e sem cairmos num relativismo pós-moderno em que tudo é precário e instável, tudo se dissolve no ar, importa, na verdade, percebermos de uma vez por todas que é tão grande, tão colossal, a nossa ignorância do passado, é tão vasto aquilo que não sabemos e nunca viremos a saber (as conversas telefónicas de Salazar com os seus ministros, as trocas de olhares e o body language nas audiências em São Bento, os bilhetes e os papéis que foram destruídos, o que verdadeiramente sabiam e pensavam os vários actores desse drama pretérito), é tão grande este nosso desconhecimento, dizia, que, na verdade, a História não é uma disciplina de conhecimento, mas de organização de ignorância. E o dia de ontem ou a semana passada não são «História» não por causa de ainda serem demasiado próximos de nós, a eterna questão da «distância», mas por sabermos demasiado como foram o dia de ontem ou a semana passada. Mais do que distância, a História exige ignorância. Caso contrário, será memória, não História.

 

           Vem esta conversa a propósito do presente livro de António Costa Pinto & friends porque, como qualquer livro de História, como qualquer bom livro de História, ele parte da ignorância e, a partir dela, formula uma hipótese. Uma grande escritora russa, Maria Stepanova, autora de um livro deslumbrante há pouco publicado entre nós, Memória da Memória, fala justamente da memória e da História como uma “operação de salvamento”, de resgate, muito na linha daquilo que atrás falei sobre a ignorância do passado. E este livro coordenado por António Costa Pinto, como qualquer bom livro de História, é uma operação de resgate, que extrai do esquecimento dados e informações que de todo ignorávamos, desde logo sobre a vastidão e a profundidade com que o salazarismo foi estudado, ou pelo menos citado, dos dois lados do Atlântico. À excepção de França, pouco se sabia disso e, por isso, este livro é já uma aposta ganha, no que toca ao avanço de conhecimento que traz e partilha. Mas o livro vai mais longe e, a partir desse conhecimento novo, formula uma hipótese, tem uma «tese».   

 

Uma hipótese que deve também ter presente o seguinte: para a reconstrução do passado, importam tanto os factos como o discurso que se fez sobre os factos. Ou seja, se quisermos, os discursos são, ou foram, tão constitutivos da realidade quanto os próprios factos, ainda que, obviamente, em níveis e com incidências diferentes.

 

          No fundo, o «programa» deste livro é um programa de Begriffgeschichte em torno da circulação da ideia de corporativismo, a partir do qual é possível fazer algumas reflexões que, porventura, poderão servir para aprofundamentos futuros:

 

          1 – A primeira tem que ver com a diferença entre factos e discursos, ou seja, mesmo assumindo que os discursos, as ideias, são tão constitutivas da realidade como os factos, são elas mesmas «factos», quando se estuda a circulação de uma ideia e se afirma, ademais, o seu valor modelar ou paradigmático, importa não ver apenas se essa ideia circulou e foi ventilada, citada em escritos de intelectuais ou manifestos políticos; interessa saber se tal ideia ou conceito moldou efectivamente a construção e a prática jurídica de um Estado, impregnou a sua vivência social, dominou o seu panorama intelectual. Que uma ideia circulou, é comprovado por ser citada, falada, discutida etc (e até, se fosse possível, seria interessante fazer uma métrica disso, como nas revistas científicas de agora). Coisa diferente é essa ideia ter valor modelar ou paradigmático, efectiva concretização prática, o que implica ver a influência real e o perfil e o peso das personalidades que a veicularam (os «salazaristas» estrangeiros eram pessoas influentes nos seus países ou intelectuais marginais?), os textos legais, a prática política. Neste livro dá-se esse passo, indo-se da teoria à prática, mas ele deve ser aprofundado em investigações posteriores, até através de um cruzamento com saberes jurídicos que António Costa Pinto, leitor de Mirkine-Guetzevitch, bem conhece

 

          2 – Por outro lado, se usamos este método comparativo, importaria fazer uma «comparação das comparações», isto é, não analisar apenas se o corporativismo salazarista é falado e citado, mas cotejar com a frequência e a influência com que outros também são citados, desde logo o fascismo, mas também outras experiência autoritárias. É que uma coisa é isolarmos o corporativismo salazarista e registarmos o número de ocorrências e citações, outra é colocá-lo ao lado de outros possíveis modelos ou fontes de influência, porventura tão falados ou citados como ele. E há também, como o livro em parte mostra, diversas formas e intensidades de alusão ao salazarismo, ou seja, uma coisa é referi-lo como uma curiosidade interessante, outra é assumi-lo verdadeiramente como modelo ou figurino.

 

          3 – Em terceiro lugar, confesso que a expressão «terceira via» pode merecer reservas, até pela confusão com outras e bem recentes tentativas de third way feitas pelo blairismo. E, mais ainda, porque «terceira via» é demasiado multiforme, como aliás se nota neste livro, pois tanto pode ser uma via intermédia ou um tertio genus entre socialismo e liberalismo, como entre fascismo e comunismo, como entre fascismo e nazismo. Por exemplo, na página 10 deste livro tanto se aponta para uma terceira via entre fascismo e comunismo, como entre democracia  liberal e fascismo, ou seja, é possível e até provável que o corporativismo procure um meio caminho no meio de uma floresta ou galáxia de ideologias, mas devemos ter presente que nuns contextos e numas geografias o corporativismo salazarista foi, como cá, uma terceira via entre liberalismo e socialismo, enquanto noutros terá sido ou poderá ter sido entre liberalismo e comunismo e, noutros ainda, entre liberalismo e fascismo. Ou seja, há contextos em que a «ameaça» do comunismo pode ter sido mais intensa, noutros a mais intensa terá sido o fascismo ou o nazismo (como na Europa ocupada), pelo que se o corporativismo se situa à distância ou à equidistância de dois pólos, interessa saber quais foram.   

 

          4 – Uma outra questão que interessaria analisar é a seguinte: falar com admiração não significa assumir como modelo. Tentando explicar: nos anos 30, o salazarismo foi, do ponto de vista interno, português, uma fórmula de sucesso, pois conseguiu responder às duas maiores ansiedades do tempo – as contas públicas e a paz social -, ou seja, fizera uma «revolução na paz», equilibrando o défice sem greves nem sobressaltos. Se esse sucesso se fez sentir em termos domésticos, garantindo a Salazar o lugar de «mago» ou «ditador das finanças» e um apoio generalizado da população, é mais do que óbvio e natural que o êxito também seria admirado lá fora. Ou seja, este livro não vem descobrir o óbvio, vem apenas atestar a vastidão e a profundidade da admiração que existiu pelo salazarismo e que, aliás, não terminou nos anos 30 (no pós-guerra e no contexto de Guerra Fria, existir uma dictablanda um pequeno país da Europa, sem riscos de comunismo, era uma bênção para personalidades como Eisenhower, o que favoreceu a nossa imediata adesão à NATO. Também Pio XII foi, mesmo no pós-guerra, um admirador de Salazar). Nos anos 30, e como o seu nome é citado no livro, basta lembrar o marechal Pilsudski, quando disse, a propósito dos revoltosos que foram deportados para a Madeira: «abençoado país que tem a sua Sibéria na ilha da Madeira». Quer dizer, e penso que este ponto não é devidamente salientado no livro, num contexto de uma Europa em convulsão, a tranquilidade portuguesa era motivo de admiração. No fundo, aquilo que servira para a propaganda do regime na frente doméstica também o ajudou na frente externa, ainda que, e o ponto é curioso, não tenha existido um especial esforço propagandístico no exterior, isto é, Salazar parece não ter tido grande interesse em exportar o seu figurino.

 

          Além disso, a par da segurança e da paz social (no fundo, como nos dias de hoje, com os estrangeiros que gentrificam Lisboa), também haveria apreço técnico pelo Salazar-economista que pusera ordem nas finanças. E, assim, poderão não ter sido apenas razões ideológicas puras, mas antes a percepção destas duas realidades práticas – ordem nas ruas, contas em ordem – que levaram à admiração pelo regime português. Compreende-se: aos que se amedrontavam perante a violência dos camisas negras ou castanhas, mas também dos comunistas, o corporativismo salazarista era uma escapatória radiosa, luminosa, soalheira e pacata, ademais protectora da fé cristã e dos bons costumes, ou seja, tratou-se muito mais de uma atracção emocional, pragmática, do que uma adesão ideológica a um dado corpo de doutrinas, tanto mais que, no plano doutrinário, à parte umas proclamações retóricas sob o capital e o trabalho e do amparo evangélico da Quadragesimo Ano, o corporativismo não tinha grande elaboração ou profundidade para apresentar. Até por isso, e uma vez que estamos muito, como se disse, no território da história dos conceitos, importaria distinguir com mais finesse noções então convergentes, mas distintas, como corporativismo, reacionarismo, tradicionalismo, conservadorismo.

 

          E, sobretudo, importa separar claramente afirmação e louvor, por um lado, de adesão a um corpo ideológico e a um modelo político, por outro.

 

Um Eisenhower, por exemplo, poderia ficar sossegado com o Portugal de Salazar, mas não o assumiu como «modelo» para a América. Ou seja, é importante fazer a destrinça – que este livro faz, em boa parte, mas não completamente – entre referências laudatórias, expressões de admiração e até fascínio, por um lado, e, por outro lado, assimilação efectiva de uma doutrina e de uma concepção política.     

 

          5 – Sobre esta concepção política, e permitam-me este aparte, poderíamos talvez chegar a uma ideia paradoxal, que era a de julgar que Salazar, que tinha fama de grande realismo político, foi, ao cabo e ao resto, um grande pensador utópico, quase diria um socialista utópico, no sentido de que sonhava com uma utopia corporativa em que capital e trabalho deixassem de se digladiar. Uma utopia que falhou em toda a linha, como se tornou evidente nos anos 40 e 50, quando se fez um balanço nada entusiasmante dos falhanços do modelo, aquilo a que Fezas Vital chamou os «desvios do corporativismo português». Aliás, se atentarmos na discussão na génese da Constituição de 1933, os Integralistas afastam-se de Salazar justamente por esta questão, por ele não ter levado o corporativismo integral até às últimas consequências, nomeadamente quando não consagrou a representação orgânica na Assembleia Nacional e relegou a Câmara Corporativa para um lugar secundário (ao contrário do que ainda se diz, a Câmara Corporativa não era uma segunda câmara de um parlamento bicameral, era um órgão auxiliar de uma assembleia unicameral). 

 

          O corporativismo português falhou, pois isso estava escrito nas estrelas: é que, na teoria e no plano dos conceitos, o corporativismo pressupõe um elevado grau de autenticidade, o que implica que os seus diversos actores tenham autonomia. Ou seja, só há uma duradoura composição de interesses se os diferentes corpos da sociedade e da economia tenham uma independência e uma autonomia pouco compatíveis com a ideia de «corporativismo de Estado», uma contradictio in terminis, e menos ainda compatíveis com uma ditadura. Não é por acaso, que as actuais experiências neo-corporativas de concertação, em regime democrático, são bem mais duradouras e consistentes do que o corporativismo autoritário dos anos 30. Num certo sentido, para que o esquema corporativo possa funcionar exige-se liberdade. Caso contrário, tudo não passa de uma farsa, de um simulacro, coisa de que os diversos intervenientes rapidamente se apercebem. Veja-se, de resto, a ambiguidade de estatuto dos dois esteios do regime, a Igreja e as Forças Armadas: sacerdotes e militares pertenciam a corpos autónomos, com interesses próprios e capacidade de actuação autónoma, ou eram funcionários públicos idênticos aos demais?

 

          Talvez seja demasiado ousado dizê-lo, mas tudo leva a crer que Salazar nunca acreditou no corporativismo e nas suas virtudes. Desde logo, porque aquilo que o levava a descrer da democracia em Portugal era a impreparação dos povos latinos, o seu atraso, muito na linha de vários autores franceses, que enalteciam a qualidade, mas a singularidade irreplicável, da democracia anglo-saxónica. Isto é, se o povo português não estava preparado para a democracia, também não o estava para o corporativismo. E este, ademais, se se desenvolvesse e articulasse verdadeiramente iria ser um sério entrave à dominação que Salazar pretendia imprimir. Ou seja, é muito mais credível que, em lugar de uma utopia com que Salazar sonhou, o corporativismo foi um, mais um instrumento do seu poder, seja como chavão propagandístico, seja como meio de disciplina das forças sociais, dos corpos do Estado, do capital e do trabalho.

 

          Por isso, talvez este livro pudesse ter tido o título «o passado de uma ilusão», como o de Furet, pois tudo indicia que o corporativismo foi mais uma das muitas ficções em que o teatro de sombras do salazarismo foi fértil. E talvez isso explique o pouco empenho de Salazar em exportá-lo ou apresenta-lo ao mundo. E talvez isso leva à conclusão de que, á semelhança de muitos portugueses, em que se destacavam jovens ardentes como Marcello Caetano e Pedro Theotónio Pereira, os «intelectuais-políticos» católicos de vários países foram enganados pelo «manholas de Santa Comba». Ao contrário do que dizia Manoieluscu, outro dos enganados, o corporativismo português não era «autêntico» nem «sério». Porquê? Porque «pluralismo limitado» é coisa que não existe: a partir do momento em que se consente o pluralismo, este adquire uma dinâmica que não consente limitações.  

 

          O produto que compraram estava avariado, tinha um defeito congénito, de fabrico, a falta de liberdade política, económica e social, pelo que não estranha que, apesar de muito louvado por leigos e membros da Companhia de Jesus, o modelo salazarista nunca frutificou verdadeiramente em lugar algum.

 

          Daí a abissal distância entre a grandeza da promessa e a sua nula concretização, entre a teoria aclamada e a prática depois vivida, entre as ideias e os factos, os discursos e as realidades.

 

          Ainda assim, e enquanto artificio ideológico e encenação verbal, foi uma indiscutível trouvaille no áspero e conflituoso panorama doutrinal dos anos 30. Se não garantia a salvação dos povos, adiava a solução dos problemas, dissimulava as falhas, camuflava aspirações insatisfeitas de operários e de patrões, da pequena e da grande burguesia, dos corpos intermédios da sociedade e do Estado. Quem conseguisse passar a tormenta da luta épica entre fascismo e comunismo, poderia pensar depois como iria resolver o dilema, o insolúvel dilema, entre corporativismo social e ditadura política. Quase todos os que seguiram o «modelo» de Salazar acabaram por soçobrar. Ele, sobreviveu.     

 

          E é também a história dessa sobrevivência – ou, como agora se diz, dessa resiliência – que se adivinha e pressente em cada página deste livro, uma das obras mais importantes e desafiantes que nos últimos anos se têm publicado sobre o Estado Novo do dr. Salazar.

 

          Muito obrigado. 



António Araújo

 








quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Entre Oriente e Ocidente (19).

 


 

A 70 quilómetros a Sul de Durrës situa-se o Mosteiro de Ardenica.

Dedicado à Natividade da Mãe de Deus, cuja festa se celebra a 8 de Setembro, foi construído no Século XII.

Foi um importante centro espiritual dos ortodoxos dos Balcãs graças à sua localização privilegiada junto à já mencionada Via Ignatia que terminava em Constantinopla e ligava a Europa Ocidental ao Leste. Embutidos nas paredes do edifício encontram-se ainda marcos da estrada!

Dispunha de uma biblioteca preciosa que ardeu por completo em 1932.

Escapou parcialmente à fúria ateia do Regime comunista porque terá sido aqui que se casou o herói nacional albanês Skanderbeg. Mesmo assim, foi instalada uma guarnição militar que não deixou de fazer os seus estragos.

  




As ruínas da cidade antiga de Apollonia situam-se 30 quilómetros ao Norte de Vlorë.

A cidade é de uma importância histórica superlativa. Dela falaram Titi Lívio e Cícero. Aqui esteve o Rei Pirro que a ocupou. Constituiu uma das bases de Júlio César nas suas campanhas contra Marco António. Conhecendo a cidade, Júlio César determinou que o seu sobrinho Octávio estudaria nas suas escolas.

Quando Júlio César foi assassinado, Octávio ainda estudava em Apollonia. Decide regressar a Roma e torna-se imperador. Em homenagem à cidade onde estudou e passou anos muito felizes da sua vida, declara-a libera et imunis Civitas, o que garantiu aos seus cidadãos privilégios fiscais e de liberdade de circulação.

No período bizantino e até ao Século XI foi sede de episcopado, caindo em seguida num relativo esquecimento.

O museu de Apollonia expõe peças de grande beleza:

 








 

 

Finalmente, parte do que resta da cidade outrora tão famosa:

  




Fotografias de 18 de Agosto de 2022

 

José Liberato