quinta-feira, 27 de abril de 2023

Não há, na literatura portuguesa e lusófona, uma joia literária como esta.

 

 



 

“Aqui estamos em frente da Torre, meus senhores, peço que se descubram e ao mesmo tempo um minuto de silêncio pela alminha dos Senhores que lá estão.

Esta Torre já não se sabe de quantos séculos podemos datá-la, mas é certo é que Dom Raymundo Barbela – crê-se que tenha sido o primeiro da família da Torre – saiu destas bandas para ajudar com os seus homens as cargas de Dom Afonso Henriques, seu primeiro do coleteral. As pedras são todas da prumitiba, mesmo lá perto da torreta podemos ainda ler as inscrições latinas que rezam a sepultura de Dom Martim, morto de adigestão quando de uma lampreiada para festejas as vitórias do primo. Tem a Torre trinta e dois metros de altura, é a máor da península e os degraus contam-se em oitenta e nove, com patamares de descanso. A vista lá de cima é grandiosa”.

Sim, nem antes nem depois desta aventura literária de Rúben A. se foi tão longe a falar de um Portugal feérico, mitológico, façanhudo. Há um guia que apresenta os visitantes as memórias de um Portugal inventado, e momentos há em que se pode supor que estamos perante romance do fantástico, com incursões pelo sobrenatural, mas recomenda-se leitura cuidada, porque este romance escrito em plena década de 1960 é uma xácara habilidosa para caricaturar o nacionalismo bacoco, Rúben A. tratou com pinças esta visita ao alto daquela Torre, “outrora de menagem, estendia-se um país inteiro, ceiva virgem de uma nação. Toda a História se abria com a paisagem.” Em plena pandemia, a Coleção Miniatura de Livros do Brasil fez reaparecer uma das obras-primas da literatura portuguesa e lusófona, A Torre de Barbela, em boa hora o fez, tem preço acessível, é obra para ficar nas nossas estantes, leitura a retomar quando se impõe repensar o Portugal do Quinto Império, das bravuras mil, das extraordinárias peregrinações, nação mirífica e imortal. Porque os que vivem na Torre levam às centenas de anos uma boa convivência, tudo na margem esquerda do rio Lima, a Ribeira Lima, após o horário da visita com aquele guia estrondoso, os antigos Barbelas, vindo de oito séculos diferentes, ressuscitam e habitam os seus arredores, é uma azáfama de amores e ardores, coscuvilhices e êxtases, naquele espaço minhoto, onde se vai falar da Moutosa, a Vila de Serzedelo, Viana do Castelo, a Serra de Arga, o Jardim dos Buxos, e do que pelo adiante se dirá, esses Barbelas, têm muito para contar:

“Quando a linha do horizonte baixava em intensidade e os fumos azulados batiam a favor do vento e do andar das coisas, naquela dimensão abrupta que testemunhava o acender das constelações, os Barbelas realizavam-se vindos do sonho e da fantasia para os reais domínios da Torre. De noite, ressuscitavam e, de companhia, traziam os amores e os ódios de outras eras e de outras sensibilidades, os dramas pessoais e a contagem de fábulas capazes de entrarem pelas ruelas aveludadas dos vizinhos de Serzedelo e de Vitorino das Donas. Aquele ressuscitar transfigurava a Torre. A procissão saía a pé ante pé dos túmulos de pedra, dos sarcófagos egípcios – trazidos por Dom Payo da Barbela quando das suas incursões por terras do Prestes João – e também da vala comum surgiam ainda os apátridas, filhos ilegítimos, frades, freiras, e os que remotamente pertenciam à venerável espérmia da Torre.” Entraram em cena o Menino Sancho, Dona Urraca, o Cavaleiro e o seu garrano Vilancete, Dona Mafalda Madeleine de Barbelat (esta terá papel crucial num desfecho trágico que nem vos conto), percorre-se toda a História de Portugal e a sua épica, e chega o momento de apresentar a grandeza do lugar:

“O Solar da Barbela data precisamente do século XVI, quando os Barbelas em protesto contra os anos de cativeiro espanhol resolveram abandonar a capital do Reino e regressar às terras. Nessa época, os Barbelas voltaram à vida rural e nada mais encontraram da propriedade do que a Torre e o terreiro ao lado, com algumas habitações toscas. O oiro das especiarias e o comando das esquadras da Índia tinham levado os braços disponíveis nas redondezas. Quando Dom Sebastião desapareceu na sua fatal correria de Alcácer, além de arrastar muitos Barbelas consigo, deu também um ar desolador à pátria. Os fumos da Índia e as espumas de África trouxeram consigo a desolação, sem que para isso fossem bastantes as façanhas dos fidalgos de Entre Douro e Minho.” Os Barbelas até tiveram santos, como São Cyro, é o comandante espiritual da Torre. Há paixões escondidas, dignas de Tristão e Isolda, como o Cavaleiro e Madeleine, há visitas dos Barbelas à Beringela, que têm um fumeiro muito especial, logo as enguias. E ao longo destas centenas de páginas vamos convivendo com os Barbelas, há gente que até lembra o Eça de Queiroz, como o Dr. Mirinho, que ninguém se iluda, a Torre de Rúben A. é o miraculoso país do passado, onde se celebram centenários, onde há bruxas apaixonadas, como aquela que vive em São Semedo, Madeleine é ligação à França, convém não esquecer os caixotes de Paris e a literatura que nos afogueou, antes e depois com a monarquia constitucional. Espantosa arquitetura da escrita, onde não falta o bobo italiano, passeios de burro, igrejas como não há no outro Portugal. Veja-se só: “A única igreja no Norte de Portugal que se pode comparar vagamente com a da Moutosa é a da Montaria, no caminho de Orbacém para São João de Arga. Mas é melhor não comparar. O curioso distinguirá imediatamente uma qualidade única em São Lourenço. Possui, como só a Torre de Belém, uma proporção de medidas que equilibra o pensamento ao primeiro relance. Olhando-se em frente fica-se à procura do desnível e do imperfeito. O talho de pedra granítica, com os santos padroeiros das principais freguesias da Ribeira Lima empunhando uma escada para subirem mais facilmente ao Céu, transmite uma doçura de penetração que envolve até o menos crente.”

Não esqueça o leitor de acompanhar a trama amorosa do Cavaleiro por Madeleine, tudo isto num lugar soberbo, de nome a Fontinha, que “fora desde tempos idos o ponto de partida dos Barbelas para as viagens de aquém e além-mar. Daquele estreito molho de granito e terra batida, sombreado pelas ramagens quentes de salgueiros e choupos, as bateiras saíam em direção a Viana, donde os barcos de maior calado levavam a família aos mais diversos destinos do mundo.”

Não se fala aqui só do Portugal maravilhoso, há histórias de assombrar, é o caso do Grande Nevoeiro, uma das diabruras mais imprevistas do destino. “De Barcelos ao Lindoso, dos contrafortes do Gerês até às terras raianas do rio Minho, e descendo pela linha das costa, montes e vales ficaram cobertos de um misto de nevoeiro e neve que transformou o sentido do voo das aves e deu aos homens uma atitude meio religiosa meio borguista que perdurou pelos tempos.”

Porventura por sermos descentes dos Barbelas, é imperativo dever nosso conhecer de fio a pavio toda esta saga genialmente redigida por Rúben A. Está aqui o nosso retrato, caso não esteja muito iludido: “Falavam, falavam, conversando fiado por tempos sem conta, discutiam, assentavam decisões e conversas, e ao fim encaminhavam-se ao natural de nada se ter passado. Enfim, o que havia era, bem ou mal, a prata da casa. Aquela prata que se apresentava nas grandes ocasiões de cerimónia e onde se comia a malga do caldo-verde e o naco de broa acompanhado de uma lasca de bacalhau cru ou de uma rodela de enchido de porco. Um destino embebido de fatalismo, uma espécie de não-te rales. O resto não os preocupava em profundidade.”

Nem vale a pena insistir que estamos perante um livro de leitura obrigatória.


                                                                                            Mário Beja Santos




quarta-feira, 26 de abril de 2023

São Cristóvão pela Europa (211).

 


 

Não tinha ainda tido ocasião de pesquisar imagens do nosso Santo na cidade de Évora.

Foi o que fiz há poucos dias com bons resultados.

No Museu de Évora existe um quadro, representando São Cristóvão, do pintor conhecido como Frei Carlos. Falecido cerca de 1540, Frei Carlos era natural de Lisboa mas tinha ascendência flamenga. Professou como frade jerónimo no Convento do Espinheiro em Évora onde organizou uma escola de pintura.  O quadro é um óleo pintado sobre madeira de carvalho e deve ter sido realizado por volta de 1530.

 


Na Igreja de São Tiago, construída no Século XIV mas objecto de profunda reformulação nos Séculos XVI e XVII quando foi profusamente revestida por frescos que misturam de forma curiosa motivos sagrados e profanos. Um dos frescos representa São Cristóvão:

  




Finalmente as Casas Pintadas, anexas ao actual Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, antigo Palácio da Inquisição, devem o seu nome a um notável conjunto de frescos que decoram uma galeria e um oratório, nos jardins do Centro de Arte.

Estas casas pertenciam a D. Francisco da Silveira, Coudel-Mor dos reis D. Manuel I e D. João III e foram anexadas ao Palácio da Inquisição no final do Século XVI.

Nos frescos, a imagem de São Cristóvão:





                                                    Fotografias de 18 de Abril de 2023.

 

                                                                                       José Liberato


domingo, 23 de abril de 2023

Desnudar a perversidade da invasão do Iraque? Foi o que fez John le Carré numa das suas obras-primas.

 




Em 2002, John le Carré manifestou-se publicamente contra a invasão do Iraque perpetrada pela Administração Bush e aliados, escreveu, andou em manifestações, deu entrevistas. E em 2003 publicou (título em português) Amigos até ao Fim, que Publicações D. Quixote acaba de reeditar, esta obra-prima literária é de leitura oportuna neste mundo de mentiras, em que estamos vergados a vendilhões do jornalismo. A arquitetura do romance é extraordinária, anda à volta da história de dois amigos, Ted Mundy, filho expatriado de um oficial do Exército britânico, mobilizado para o Paquistão, e Sacha, um radical alemão, pequenote, claudicante, mas com uma mente brilhante e um entusiasmo inquebrantável. O destino pô-los juntos em Berlim nos anos 1960, ambos anarquistas e com vivência comunitária. A narrativa mistura tempos e lugares, iremos percorrer a carreira de Ted, desde espião camuflado ao serviço ao British Council até guia turístico num castelo de Luís da Baviera, Linderhof; depois de Berlim, Sacha desapareceu da cena e reencontram-se agora, dez anos depois, numa receção num país da Europa de Leste; Sacha, para estupefação de Ted, é agora funcionário da RDA e propõe a Ted uma operação de espionagem: passar segredos de Estado para o Ocidente, apoiando-se nas tarefas que ele exerce no Birtish Council. Andamos numa corrediça entre o passado e o presente, Ted, depois de tanta vicissitude, parece ter encontrado o seu ninho de amor com uma turca, fartou-se de aventuras, a Guerra Fria acabou como o seu casamento com Kate culminou num desastre.

E John le Carré, dentro deste bordado que se irá transformar numa teia de aranha, afasta-os, estamos agora centrados em Ted Mundy, dentro da tal narrativa de feedback, faz jornalismo e biscata, e depois encontra trabalho no British, vem casamento e filho. Quando tudo parece sedimentar-se e o fogo da juventude ficar para trás, dá-se o assombroso reencontro com Sasha, passara de anarquista a marxista-leninista, mas estava agora dececionado, interessa-se em trair, é preciso que a mentira comunista se desmorone. John le Carré faz sair da cartola um autocarro psicadélico com um grupo de teatro que serve às mil maravilhas para que, a pretexto do teatro de Shakespeare, Sasha lhe entregue os tais segredos de Estado, tão importantes que os Serviços Secretos Britânicos os repartirem com os Primos, ou seja, a CIA. Esta irá entrar em campo, a seu tempo, e com uma perversidade devastadora.

Dentro desta arquitetura da escrita de altos e baixos, vemos o desmoronamento do Muro de Berlim, o impensável acontece, vem aí a reunificação. A vida familiar de Ted estiolou após o divórcio, a Guerra Fria já não precisa dele. E Sasha surge de novo. Ted tivera um instituto de línguas em Heidelberg, um sócio especializado em gestão danosa levou o negócio à ruína. Sasha irá surgir naquele universo ameaçador em que eramos regidos por uma superpotência unipolar, vem inflamado, é indispensável mudar tudo, encontrou patrono, o impalpável Dimitri, para financiar uma academia que será um altifalante de alternativa ao capitalismo. É nesse contexto, que será desencadeada a invasão do Iraque e montada uma operação que pretende mostrar ao mundo que o radicalismo satânico de Saddam Hussein tem antenas perigosíssimas no mundo ocidental.

As derradeiras páginas desta obra-prima oscilam entre solilóquios premonitórios, Ted apercebe-se que foi atraído para uma cilada, vagueia à volta da escola, anda confuso, os Serviços Secretos britânicos deram-lhe passaportes para ele e Sasha, urge que eles desapareçam, fora montada uma trama ignóbil. E rebentam explosões, os amigos reencontram-se, foram vítimas de uma operação da CIA, mas são demonstradamente amigos até ao fim.

O cinismo, o maquiavelismo de todo este ardil, fica para o fim, como o autor relata:

“O círculo de Heidelberg, como se tornou imediatamente conhecido nos media de todo o mundo, desencadeou ondas de choque através das cortes da Velha Europa e de Washington e foi um sinal claro para todos os críticos da política americana de imperialismo democrático-conservador.

Durante cinco dias inteiros a imprensa e a televisão foram obrigadas a respeitar qualquer coisa de parecido com um silêncio estupefacto. Havia manchetes sensacionais, mas não havia notícias substanciais, pela boa razão de que as forças de segurança tinham agido dentro de uma espécie de estúdio cinematográfico vedado a estranhos.

Um setor inteiro da cidade tinha sido isolado e os seus habitantes, perplexos, tinham sido evacuados para hotéis equipados com pessoal especializado e sem poderem comunicar com ninguém durante a operação.

Nenhum fotógrafo, nenhum repórter dos jornais ou das televisões tinha tido acesso à cena do assalto até que as autoridades tivessem a certeza de que os mínimos vestígios de potencial de espionagem tivessem sido todos retirados para análise”.

Amigos até ao Fim é a denúncia de um mundo onde se instalou a não-verdade, onde é possível estarmos permanentemente a ingurgitar falsidades, ou ficarmos em estado de dúvida, é a manipulação sórdida dos noticiários onde as centrais de intoxicação debitam, hora a hora, as “verdades” que interessam. Porque aquilo que foi a espionagem é hoje um expediente de envenenamento dos espíritos, tornando derrisório o primado da liberdade de pensamento, que aqueles dois amigos até ao fim teimavam em defender, a despeito de muita utopia nos amanhãs que cantam.

John le Carré já era universalmente conhecido desde que escrevera O Espião Que Veio do Frio e um conjunto de obras que passaram ao cinema e à televisão, valorizadas pela genialidade do ator Alec Guinness.

Quando a Guerra Fria acabou, le Carré fez mudança de agulha, observou à sua volta aquele mundo que se compunha e decompunha, com exércitos privados, uma indústria farmacêutica ignóbil, milionários inescrupulosos na venda de armas, o acirramento de conflitos regionais. E mostrou, se dúvidas subsistissem, que era um dos magníficos operadores da escrita à escala mundial. Não sei se Amigos até ao Fim, mas, não posso, a pensar nesta infeção das fake news convido o leitor a embrenhar-se nesta obra-prima, é mesmo de leitura obrigatória. 


                                                                        Mário Beja Santos 

 

 


sábado, 22 de abril de 2023

O politicamente correto nesta era de fanatismos e de sapiências de ocasião.

 




 

A obra intitula-se Manual do Bom Cidadão, Para Compreender e Resistir à Cultura do Cancelamento, o seu autor é Jorge Soley Climent, professor universitário e com ativismo em várias causas, Publicações D. Quixote, 2023. O título é chamativo, e o autor abre o seu ensaio dizendo que vivemos tempos em que o pasmo se torna rotina, e pronto exemplifica: “Professores com processos disciplinares por ensinar que o sexo é determinado por um par de cromossomas, contas do Twitter suspensas por referirem que a relva é verde, violadores condenados que dizem ser mulheres para os transferirem para uma prisão feminina onde violam umas quantas reclusas…” Será que enlouquecemos todos? O autor diz que não: “Estamos agora a assistir à deflagração de algo laboriosamente preparado, algo que vem de longe.” E dá-nos a sua interpretação de como se constituiu esta nossa era do politicamente correto, apresenta alguns autores que abordam as situações paradoxais de minorias ativas, refere clássicos que denunciaram o totalitarismo comunista, vem um pouco mais atrás aos pensadores da Escola de Frankfurt que geraram uma Teoria Crítica que apontava para a demolição da sociedade, cita-se o inevitável Marx, entra em cena Marcuse, que ganhou fama e algum proveito na crise de maio de 1968, não podia faltar Mao Tsé-Tung e a sua Revolução Cultural, tudo para derrubar e construir uma nova ordem e até o pensador italiano António Gramsci tem direito à palavra, com a sua previsão de que é preciso trabalhar para uma nova cultura que substitua a velha. Em nenhuma circunstância Jorge Soley explica os fundamentos deste ordenamento para se chegar a este tempo em que minorias ativas pugnam a favor da demolição do racionalismo, dos valores solidários, e procura dar-nos um quadro caleidoscópico destas movimentações onde estarão presentes a identidade de género, o racismo, a revolução trans, a perseguição àqueles que defendem o direito de pensar livremente e aceitar as regras do senso comum, tudo tem que ser inclusão, identidade de género, o politicamente correto.

Admito que Jorge Soley acredite piamente que a sua escolha de pensadores que levaram à criação da cultura do cancelamento possua evidência científica. Ora, pensar é divergir. E um filósofo francês, Gilles Lipovetsky, que publicou em 2004 O Crepúsculo do Dever – A Ética Indolor dos Novos Tempos Democráticos, Publicações D. Quixote, já levantara exatamente esta questão na sua análise: moral laica, acabou a época do dever, vivemos numa nova ética nesta sociedade do vazio, do narcisismo, da negação da existência de significados estáveis; as nossas sociedades contemporâneas movem-se numa perda de sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas. Lipovetsky escreve mesmo: “A era da felicidade das massas celebra a individualidade livre, privilegia a comunicação e multiplica as escolhas e as opções”; e, mais adiante: “A cultura da felicidade ‘leve’ induz uma ansiedade crónica de massa, mas faz desaparecer a culpabilidade moral.”

 O filósofo trabalha a sua análise de sociedade pós-industrial e de maneira alguma remete para o esquecimento o conceito de “pós-modernidade”. Todo este universo de transformações engendra novos estilos de vida e a restruturação das nossas escalas de valores. Lê-se Jorge Soley e fica-se com a ideia de cultura do cancelamento mistura alhos com bugalhos: técnicas de manipulação, a transformação da discordância em discurso de ódio, a multiplicação dos assassinatos de caráter nas redes sociais, tempos em que o poder político tem medo de se mostrar firme, em que o Twitter ou o Facebook rejeitaram dar a palavra a Trump, à mistura com a eutanásia e o aborto, temas que são muito caros a Jorge Soley, ele é patrono da Fundação Pró-Vida da Catalunha.

Aqui e acolá o autor encontra tremendas analogias entre estes próceres da cultura do cancelamento e as práticas comunistas. Haverá, segundo ele, uma conspiração em curso para gerar um terramoto da nossa cultura, há já colégios a queimar ou destruir exemplares de livros das suas bibliotecas escolares, a iconoclastia é mesmo isso, fazer tábua rasa do passado, destruir monumentos que possam sugerir racismo, colonialismo, religião. É bem verdade que o nosso tempo também se rege por hesitações, algumas delas permanentemente incendiadas, e ele fala nas pessoas de origem hispano-americana que vivem nos EUA, questionando se devem ser tratados por hispânicos ou latinos; há uma minoria de 5% de inquiridos que concordam em ser designados por Latinx, e uma conta satírica no Twitter aproveitou para dizer que os restantes 95% sofrem de racismo interiorizado e deveriam ser classificados como brancos. Alega o autor que o problema posto pela Teoria Crítica da Raça define implicitamente qualquer bom resultado social como uma coisa própria dos brancos. É evidente que um conjunto de instituições entra neste jogo do politicamente correto, será o caso da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood que tem novas normas desde 2020, traduzem-se em critérios que os filmes devem cumprir para serem considerados elegíveis na categoria de Melhor Filme, por exemplo: pelo menos um dos atores principais ou secundários significativos deve pertencer a um grupo social ou étnico infra representado; pelo menos 30% de todos os atores em papéis secundários devem pertencer a pelo menos dois dos seguintes grupos sub-representados: mulheres, grupo racial ou étnico, LGBTQ+, pessoas com incapacidades cognitivas ou físicas ou surdas. O mínimo que se pode dizer é que este conceito normativo é idiota e anda fora da história.

Jorge Soley detém-se na revolução trans, e questiona como é que é possível desligar género da biologia, e caricatura que na ideologia de género, uma pessoa pode levantar-se sendo um aborrecido cisgénero, passar a gender queer à hora do almoço, transsexual ao lanche, andrógino ao jantar e deitar-se como cisgénero. E dá exemplos de fanatismo, caso de uma inglesa que foi exonerada do seu trabalho por exprimir a sua convicção de que, falando em termos biológicos, por muita autoperceção que se tenha, uma mulher continua a ser uma mulher embora se declare homem. O que a levou a ser acusada de transfobia e despedida do seu emprego. A autora de Harry Potter, J. K. Rowling, também anda metida em apuros, acusada de ser transfóbica.

É evidente que o somatório destes casos nos impede dizer que se anda a fazer uma tempestade num copo de água: merece a maior as ponderações o pedido que a ideologia trans faz de abrir as prisões de mulheres a qualquer prisioneiro que se declare mulher. Como igualmente merece toda a prudência o que se está a passar no desporto feminino.

Gerou-se, pois, o imperativo de ver com novos olhos estas arremetidas do politicamente correto e o seu fervor sectário, estas manifestações de mentiras merecem objeção e discussão, nenhum de nós pode ficar à margem destes conflitos e controvérsias que podem, em última instância, minar a base da coesão.

Obra a ler com muitas reticências.


Mário Beja Santos 





sexta-feira, 21 de abril de 2023

A minha celebração do 25 de Abril.

 




    Falar em pormenor da minha participação no processo revolucionário português desencadeado pelo golpe de estado de 25 de Abril de 1974 é difícil, em virtude da gravidade e melindrosa sensibilidade da matéria, em virtude da complexidade e da extensão dessa participação, e, sobretudo, em virtude da escassez de documentação pertinente (sim: tive comigo essa documentação, mas, por cautela e a conselho de coconspiradores, que  se diziam superiormente informados, fui praticamente impelido a destruí-la, o que hoje sinceramente lamento). Em vista disso, tocar-se-á apenas naqueles aspectos que, em meu modesto entender, parecem revestir maior relevância, para além de estarem mais profunda e indelevelmente gravados na memória.

          E, sem mais preâmbulos, vamos ao relato.

     Animal político, português da diáspora, sempre com a imagem da velha Pátria entranhada na mente e no coração, há muito que me acostumara a despertar ao som do noticiário transmitido pela rádio, especificamente pela emissora de Hartford da NPR (National Public Radio). E foi ao “som do noticiário transmitido pela rádio”, no meu “sempre velho e sempre novo” Grundig, o primeiro objecto de algum valor e muita estimação que comprei nos Estados Unidos, juntamente com a Enciclopédia Britânica, em Inglês, que, na manhã de 25 de Abril de 1974, despertei, no meu apartamento de Storrs, no Estado de Connecticut. E o que ouvi pôs-me em delírio. Um grupo de jovens capitães, dizia o locutor, sem derramar uma gota de sangue, derrubara o governo ditatorial de Marcello Caetano (e de Salazar, naturalmente), com quarenta e oito vagarosos, penosos e pesados anos de duração, e prometera solenemente implantar um regime democrático em Portugal.

          Ouvida a auspiciosa notícia, sentei-me ao piano e toquei A Portuguesa, com a maior emoção. Em seguida, peguei do telefone e chamei o Dr. Adriano Seabra Veiga, meu amigo, meu médico e Cônsul Honorário de Portugal, em Waterbury, estado de Connecticut, e, ébrios de orgulho, celebrámos com lágrimas de alegria a libertação de Portugal. Nas aulas desse dia, a primeira coisa que eu dizia aos meus alunos é que Portugal, o país que me dera o berço, era finalmente uma nação livre. E nos corredores e nos escritórios dizia a mesma coisa aos meus colegas.

          No dia seguinte, sabendo da atenção e da assiduidade com que eu sempre tinha acompanhado a política portuguesa, desde que fora contratado para professor de Espanhol e de Português, na Universidade de Connecticut, em Setembro de 1969, fui convidado pelos dois principais jornais da capital do Estado de Connecticut - The Hartford Times e The Hartford Courant - para lhes dar entrevistas sobre a chamada "Revolução dos Cravos", em Portugal, entrevistas em que manifestei o meu júbilo inenarrável por um acontecimento que eu tão ardentemente desejara e por que tanto tempo ansiosamente esperara e suspirara.

          Dizer que foi com o maior entusiasmo e intensidade que passei a viver a revolução portuguesa é desnecessário. Todos os dias assistia aos noticiários internacionais da televisão e todos os dias lia The New York Times e comprava com a maior regularidade os jornais portugueses que chegavam pela TAP aos Estados Unidos no próprio dia em que eram publicados, dada a diferença de cinco horas entre Portugal e a costa leste dos Estados Unidos, onde eu vivia e continuo a viver. E, embora não tivesse planos para me deslocar nesse Verão a Portugal, a primeira coisa que fiz foi telefonar a uma agência de viagens e marcar passagem de avião para o dia a seguir à conclusão dos exames finais do segundo semestre na minha universidade.

          Os exames acabaram, as provas foram corrigidas, as notas foram dadas e eu tomei o primeiro avião da TAP a caminho de Lisboa, onde aterrei no dia 22 de Maio de 1974 e donde regressei aos Estados Unidos no dia 5 de Julho.

          Chegado ao aeroporto da Portela, a primeira coisa que fiz foi procurar um cravo vermelho. E como, para surpresa e desilusão minha, não havia cravos à venda no aeroporto, ao contrário do que as notícias que me chegavam diariamente pela imprensa, pela rádio e pela televisão, me tinham induzido a crer, dirigi-me a um soldado fardado e pedi-lhe que fizesse o favor de me presentear com o cravo que ele tinha espetado na ponta da baioneta. E o soldado deu-me o cravo, com um sorriso nos lábios, gesto que eu agradeci e retribuí com idêntico sorriso.

          De cravo vermelho na lapela do casaco, saí do aeroporto e tomei um táxi. Quando o motorista me perguntou pelo destino, eu disse-lhe que se dirigisse ao Marquês de Pombal e que daí me levasse até ao fim da Avenida da Liberdade. Uma vez lá chegados, o motorista perguntou-me onde queria que me deixasse, ao que eu respondi que subisse a Avenida da Liberdade e que depois me levasse ao Campo Grande.

          Ao acabar de proferir estas palavras, o motorista de táxi, meio perplexo, olhou para mim de uma forma estranha e perguntou-me se eu tinha muito dinheiro para desperdiçar. Respondi-lhe que não e expliquei-lhe a razão por que tinha descido e subido a Avenida da Liberdade. Tinha esperado durante tantos anos pela libertação de Portugal, que queria celebrá-la simbolicamente, apenas chegado ao meu país de origem, país que trazia sempre gravado na mente e no coração, mesmo que tivesse optado pela aquisição da nacionalidade americana, acontecida no primeiro de Maio de 1967, por conveniências cívicas e profissionais.

          Após haver passado uns momentos com minha irmã, filha da caridade, no seu convento, Casa Central de São Vicente de Paula, na Avenida Craveiro Lopes, tomei um táxi para o Sabugo, uma pequena aldeia entre Belas e Pero Pinheiro, do concelho de Sintra, onde vivia um irmão meu, com a esposa, os três filhos e a minha mãe. A todos encontrei em casa, com excepção de meu irmão, que se encontrava preso no Forte-Prisão de Caxias, desde o dia 26 de Abril.

          Não constituiu para mim grande surpresa o ver que a apreensão de minha mãe e de minha cunhada pela sorte de meu irmão não era tão grande como seria de esperar, noutras circunstâncias. É que elas, da mesma maneira que eu e o povo português, em geral, tinham sido levadas a crer, a julgar pela habilidosa e manhosa propaganda de que diariamente se faziam eco os meios de comunicação social, ferreamente manipulados pelos mandarins do novo regime, que se tratava de uma espécie de estado de asilo político para altos funcionários públicos, legionários, ministros, secretários e subsecretários de estado, altas patentes militares e grandes empresários, até ao momento, que surgiria num futuro muito próximo, dizia-se falsa e falaciosamente à boca cheia, através de uma comunicação social controlada e censurada, em que se evaporasse definitivamente uma certa fúria popular contra esses e outros servidores do velho regime político.

          Tratava-se no fundo, como me tinha sido dito pelos novos donos do poder, e como voltaria a ser-me frequentemente repetido, no futuro, de proteger esses cidadãos contra possíveis represálias por parte de meia dúzia de fanáticos e de energúmenos, maldosamente atiçados em surdina por elementos do PCP (Partido Comunista Português) e de outros partidos políticos radicais de esquerda e por muitos representantes marxistas do MFA (Movimento das Forças Armadas).

          Após o almoço, minha mãe, minha cunhada, meus sobrinhos e eu dirigimo-nos ao Forte-Prisão de Caxias, para ver se conseguíamos visitar o meu irmão. Que não era possível: que nesse dia não havia visitas; que os prisioneiros estavam de quarentena - foi-nos dito por um militar fardado, barbudo, guedelhudo e de metralhadora em punho, postado desleixada e preguiçosamente ao lado de um tanque carrancudo e ameaçador, a uns bons metros do portão do Forte-Prisão.

          Mediante tal resposta, comecei por dizer que tinha chegado dos Estados Unidos, na manhã desse mesmo dia, com uma única finalidade: a de visitar meu irmão na prisão. E como o militar ainda continuasse a dizer-me que não era possível efectuar visitas nesse dia, tirei do bolso dois recortes de jornal, publicados na cidade de Hartford, capital do Estado de Connecticut, nos Estados Unidos, com entrevistas minhas, dadas no segundo dia a seguir à revolução, no dia 26 de Abril, portanto, como foi referido anteriormente.

          Quando verificaram que nessas entrevistas eu celebrava em termos superlativamente encomiásticos a "Revolução dos Cravos" (o título de uma das entrevistas era assim: "The most beautiful coup d'état of the century"), os zelosos e fanáticos guardiães dos carcereiros e dos encarcerados do Forte-Prisão de Caxias, apearam-se momentaneamente do pedestal em que se tinham alcandorado, retiraram todas as objecções e, a título de excepção, permitiram-me, assim como a toda a minha família, uma rápida visita a meu irmão.

          Depois de termos passado por entre grades e soldados barbudos e guedelhudos, armados de iradas metralhadoras, chegámos a uma sala onde nos mandaram esperar. Passados momentos, acompanhado de dois soldados, também fortemente armados, chegou meu irmão. Separavam-nos espessas e ameaçadoras grades de ferro e grossos vidros, à prova de bala, e tornava-se impossível abraçarmo-nos. Mutuamente fizemos o gesto do abraço fraterno. E eu, ingenuamente, e na melhor boa fé, dei-lhe a entender, por gestos, que lhe queria oferecer o cravo que levara comigo, mas que não sabia como poderia dar-lho. Lembrei-me então que poderia pedir a um soldado que tivesse a bondade de lho entregar por mim. Fiz esse pedido e o soldado entrou no recinto em que se encontrava meu irmão e entregou-lhe o cravo. E a visita terminou, decorridos escassos e fugitivos minutos.

          Essa visita foi o doloroso prelúdio de outras visitas, durante o resto dessa minha estadia em Portugal e durante outras futuras estadias, por ocasião das férias de Natal e de verão, visitas que viriam a mudar de destino, que não de finalidade, à medida que meu irmão andou, como outros prisioneiros políticos portugueses, de Pilatos para Caifás, quer dizer, de prisão para prisão, passando do Forte-Prisão de Caxias para a Penitenciária de Lisboa, da Penitenciária de Lisboa para o Forte-Prisão de Peniche, do Forte-Prisão de Peniche para o Estabelecimento Prisional de Monsanto, e do Estabelecimento Prisional de Monsanto finalmente para a liberdade, depois de um julgamento perfuntório, com louvores do juiz, uns vinte e oito meses mais tarde, após o encarceramento. Encarceramento puramente discricionário, facto de que eu - e todos os que tivessem olhos para ver - viria a ter provas irrefutáveis, à medida que o tempo passava.

          Foi por ser testemunha ocular desse procedimento, por parte dos vários governos que se foram formando e caindo, que eu comecei a repensar a Revolução de Abril e que fui concluindo, pouco a pouco, com demasiada lentidão, infelizmente, devido à minha proverbial ingenuidade, que não era essa a revolução com que eu poderia continuar a identificar-me, com o entusiasmo e o fervor com que me identificara com ela nos primeiros tempos. Si parva licet componere magnis (Se é lícito comparar as coisas pequenas com as coisas grandes), também eu diria, amargurado e triste, com Ortega y Gasset, perante o malogro que foi a Segunda República Espanhola (1931-1939), por cujo advento ele valente e denodadamente pugnara: “no es esto, no es esto.”

          Tinha eu regressado aos Estados Unidos e meu irmão continuava na prisão, à espera de uma acusação formal que nunca chegava, porque afinal não existia causa-crime para se poder fazer essa acusação.

           Um belo dia, por fins de Novembro de 1974, resolvi escrever uma carta ao Presidente da República Portuguesa, já então o General Costa Gomes, pedindo-lhe que mandasse proceder ao julgamento de meu irmão, se achava que ele tinha cometido algum crime, ou então que o mandasse pôr em liberdade. Era assim que se agia nos países civilizados e genuinamente democráticos - dizia eu nessa carta. E era assim que estava exarado na Carta das Nações Unidas, de que Portugal galhardamente se orgulhava de ser um dos países signatários, a partir de 1955.

          O tempo passava e de Lisboa não chegava qualquer resposta à minha carta. E foi assim que, tendo sido convidado pelo Embaixador de Portugal às Nações Unidas, Professor Veiga Simão, e pelo Cônsul Honorário de Portugal, em Waterbury, a representar a comunidade luso-americana do meu Estado, Connecticut, por ocasião do discurso do Presidente de Portugal, General Costa Gomes, nas Nações Unidas e da recepção dada por ele à comunidade portuguesa nos Estados Unidos, no Hotel Astoria de Nova Iorque, levei comigo uma cópia dessa carta e, no momento em que o cumprimentei, fiz questão de lha mostrar, de lhe dizer por alto do que se tratava e depositá-la nas mãos de um dos seus assessores. Só passados uns três meses é que recebi uma resposta a essa carta, do punho de um tal Capitão Geada. Resposta muito vaga, pelo que se referia à sorte de meu irmão, prisioneiro político, mas muito concreta pelo que se referia ao meu empenho pelo triunfo da revolução portuguesa, como constava dos recortes de entrevistas dadas por mim a prestigiosos jornais dos Estados Unidos, recortes que eu tinha enviado, em anexo à cópia da carta que escrevera ao Presidente da República Portuguesa, General Costa Gomes.

 

                                                                                           António Cirurgião

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


terça-feira, 11 de abril de 2023

141 imagens de paisagem que revelam o assombroso uno e múltiplo Portugal.

 



 

 

Trata-se de um livro raro, singularíssimo, cabe-nos o dever de o guardar ciosamente nas nossas estantes, isto a despeito de outros navegantes do território talentosos homens da câmara fotográfica de há muito incensarem, desvelarem o que há de recôndito e simultaneamente paradoxal, caleidoscópico, nas paisagens que temos, continente e ilhas. O dueto de autores foi escolhido a preceito, Álvaro Domingues é geógrafo, tem forte atração pela Geografia Urbana e as políticas urbanas; o fotógrafo é Duarte Belo, já carimbou obras de referência como Portugal – o sabor da Terra (1998), e Portugal património (2007-2008). Paisagem portuguesa, por Duarte Belo e Álvaro Domingues, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022, é um assombro, agarra-nos pelo texto e sacode-nos pela imagem. O autor geógrafo, logo no proémio, intitulado “Afloramentos de uma identidade plural” dá conta ao que ambos vêm, desmontar uma ideia estruturada sobre a nossa identidade, revelar aquela que, intrinsecamente, é aquela que agora dispomos:

“Do século XIX herdámos convicções firmes acerca da necessidade de fazer coincidir uma Nação, um Estado, uma língua, uma cultura, um território, uma religião, um povo, uma ‘raça’… Com uma identidade própria a que a História e a Geografia também tratariam de dar corpo e legitimar. Realizada essa função por uma pequena elite enredada na malha do poder, não havia mais que fazer do que simplificar as narrativas e as imagens identitárias do nacionalismo e pô-las a circular até constituírem o adquirido. De crise em crise e, sobretudo, do longo tempo de duração da Ditadura de Salazar, ficou uma herança desmedida de excesso de identidade, mitos, lendas, narrativas, imagens do país à beira-mar plantado, pobre e feliz, descalço e trabalhador, habitando a terra abençoada dos egrégios avós.

Por mil razões e mais uma, estamos agora num tempo em que o Estado, a Nação, o Território, a Paisagem, a Identidade e outras designações respeitosamente postas em maiúsculas, não correspondem a nenhuma representação ou realidade estável e consensual. Vivemos tempos de identidades múltiplas, circulação rápida de referentes globais, pluralismo, metamorfoses tecnológicas e ruturas velozes e drásticas, dissipações e simultaneidades de contrários (…) Visto desta agitação, o passado foi ficando cada vez mais problemático no seu poder de resposta para aquilo que o impulso identitário demanda, o presente move-se demasiado rápido e só produz instantâneos e o futuro está quase opaco. Observemos então as paisagens de Duarte Belo. Para além da materialidade que o fotógrafo captou, a ambiência que se fixou nas cores e nas formas, logo veremos se o que se vai desprendendo é aquilo que é fotografado, o fotógrafo ou as emoções e os pensamentos de quem vê e interpela.” Longa e aliciante será a viagem entre a foz do rio Minho e a ilha do Corvo. Cada imagem, de per si, é um tanto conclusiva, o geógrafo não se furta à pedagogia e comenta a sinalização. Estou a olhar para Montesinho, uma serra deslumbrante, a vista espraia-se e o geógrafo dá o mote: “É o limite agreste da Terra Fria Transmontana. Não fossem os interesses militares e estratégicos da demarcação da fronteira e estas terras permaneceriam ainda mais vazias do que agora estão. Nos vales mais abrigados prosperaram algumas aldeias e várzeas cultivadas, tendo-se desenvolvido também sistemas comunitários de aproveitamento de recursos.” Fala-nos de Rio de Onor e não esquece de nos dar conta desse tempo de partilha das coisas e valores comuns: “Era a comunidade, palavra que anda tão gasta nos tempos que correm, provavelmente porque tal coisa não existe, porque a sociedade é um salve-se quem puder.” Estou agora a ver a Serra Amarela ali para Terras de Bouro e a lembrar-me do viajante José Saramago que calcorreou por terras de Portugal e deixou prosa luminescente. Começou a sua viagem em terras mirandesas, abriu a janela e tinha a Serra Amarela a cumprimentá-lo. Duarte Belo tem imagens estarrecedoras, mostra-nos Bragança enregelada e espraiada, dá-nos em plenitude a capacidade de comparar, temos de um lado o Monte de São Félix, Póvoa de Varzim, até parece que temos Los Angeles ao fundo, e o contraste é Citânia de Briteiros, um ponto alto da cultura castreja, nos arredores de Guimarães; vemos em toda a sua exuberância o Vale do Rio Douro, um detalhe em Carrazeda de Ansiães, de maravilha em maravilha vamos até Vila Nova de Foz Côa e Poiares.

 Isto de se fazer recensão a tão belos textos e 141 imagens modelares deixa o recensor contrafeito, felizmente que Duarte Belo mitiga a inquietação a quem faz de resumidor: “Não é fácil sintetizar num conjunto de 141 fotografias toda a diversidade e complexidade da paisagem portuguesa. Se considerássemos, neste pedaço de superfície terrestre, o tempo anterior ao povoamento do Homo Sapiens, encontraríamos espaços de grande diversidade geográfica, como sejam os cumes gelados da Serra da Estrela, as planícies a sul do rio Tejo, a orla marítima ao longo de centenas de quilómetros, ou os vales dos grandes rios. Com o povoamento humano, a paisagem passa a ser uma construção assente em princípios e ritmos diferentes do que o foram no passado. O presente retrato quer captar, ainda que sumariamente, esta relação entre os elementos geomorfológicos estruturais do território, como os rios e as montanhas, com as marcas de humanidade, dos construtores de paisagens que somos. As fotografias mostram-nos que esta tentativa de fixar os tempos dos lugares é vã.”

A imagem da capa não é menos deslumbrante, mostra-nos a Fuzeta, texto esplêndido para imagem tão deslumbrante:

“Na sua Poética do espaço, Gaston Bachelard afirma que os humanos sem casas seriam seres vagabundos, para sempre dispersos. Mais do que um refúgio, a casa é uma proteção, um mundo a partir do qual nos posicionamos face a outros mundos exteriores e menos conhecidos,

a casa é parte fundamental do nosso canto do mundo: através

das lembranças de todas as casas em que encontramos abrigo,

além de todas as casas em que já desejámos morar, podemos

isolar uma essência íntima e concreta que seja uma justificativa

para o valor singular que atribuímos a todas as nossas imagens

de intimidade protegida.

Na Fuzeta a uma casa de Socorros a Náufragos pairando sobre as águas na vastidão da ria. Pode parecer insólita, quase uma aparição, um salva-vidas inesperado. Todas as casas socorrem náufragos de alguma solidão ou da agitação do mundo, lançando uma rampa ou uma escada para que recuperemos a respiração da vida, o fogo, uma pequena chama que seja para refazer caminho.”

Que mais dizer deste magnífico dueto sobre a paisagem portuguesa?


Mário Beja Santos




terça-feira, 4 de abril de 2023

Mestre da Banda das Oficinas de São José de Lisboa.


 



 

          No ano lectivo de 1957-58, fui nomeado, mediante o voto de obediência, para o cargo de professor nas Oficinas de São José de Lisboa, colégio da Congregação Salesiana para alunos internos e externos, onde se ministrava o curso de admissão ao ensino secundário, o curso preparatório, o curso comercial e o curso industrial. No próprio dia da chegada, fui chamado ao gabinete do Padre Prefeito, a fim de me informar sobre os cursos que ia ensinar nesse ano lectivo. Quando pensava que me poriam a ensinar apenas Português, Francês e História Universal aos alunos do curso comercial e do curso industrial, matérias que eu já tinha ensinado noutros colégios salesianos, vejo-me também responsável pela Matemática do segundo ano do curso preparatório.

         Como faltavam ainda umas quatro semanas para o início do ano lectivo, lancei-me imediatamente a preparar, com a maior diligência todas essas matérias, mormente a Matemática, dado que nunca tinha ensinado essa disciplina nem gostava dela.

         Passada uma semana, vejo-me intimado a comparecer no escritório do Padre Director, para ouvir dos lábios dele que, em virtude de, inesperadamente, e com grande pena dele, Director, o padre encarregado do orfeão e da banda, ter sido destacado para missionário em Macau, eu tinha de desempenhar essas funções. Perante tais circunstâncias, não tive outro remédio senão aceitar essa penosa incumbência, embora fizesse saber, com o maior respeito, ao Padre Director que, quanto ao orfeão, não via qualquer problema, mas que, quanto ao desempenho das funções de mestre da banda, eu não tinha a mínima competência. À minha objecção retorquiu o Padre Director, com grande amabilidade, que, dado o meu conhecimento do solfejo, do piano e do órgão (instrumentos em que eu não passava de um mísero amador), e, continuou ele, dada também a minha experiência de tocador de tuba na banda de outro colégio salesiano, não me seria difícil vir a ser mestre competente de uma banda constituída por cerca de quarenta elementos.

         Num gesto impregnado de simbolismo pedagógico e como que para tornar mais leve o pesado fardo que me punha sobre os ombros e tornar mais palatável o trago amargo que me punha nos lábios, o Padre Director colocou-me nas mãos trementes a partitura, novinha em folha, de uma marcha intitulada Querer é Poder, e rematou assim a conversa:

         - Para que vejas que eu tenho toda a razão para confiar em ti, no teu brio e na tua força de vontade, recomendo-te que esta seja a marcha com que virás a abrir todas as actuações da banda nas festas do colégio e em todos os desfiles cívicos. Toquei-a ao piano e pude verificar que é uma marcha simples, fácil e bonita, de efeito garantido – concluiu o Reverendo Padre Director. 

         Proferidas estas palavras, esboçou um breve sorriso, aconselhou-me a implorar a protecção de Santa Cecília, padroeira da música, desejou-me boa sorte, deu-me a bênção e entregou-me as chaves da sala de banda.

Triste, apreensivo, como se pode imaginar, dirigi-me à sala de banda e abri a porta, trepidante. Depois de passar perfuntoriamente os olhos por todos os instrumentos e por algumas partituras, subi ao pódio e imaginei a localização dos diferentes naipes da banda, dispostos em semicírculo e em plano inclinado: na primeira e segunda filas estavam as  duas flautas, a requinta, os primeiros e segundos clarinetes; na terceira fila, o saxofone soprano e o saxofone alto e os trompetes; na quarta fila, as três trompas, os três trombones e os dois bombardinos, um em cada extremidade; e na última fila, a caixa, os ferrinhos, a  pandeireta, os pratos, o bombo e os dois baixos ou tubas, um em cada extremidade.

Seguidamente, abri uma partitura, peguei na batuta, dei uma resoluta pancadinha na extremidade do pódio para impor silêncio, ergui os ombros, assumi um ar austero, franzi o sobrolho, olhei pausadamente, com semblante autoritário, para os cerca de quarenta músicos imaginários, levantei os dois braços, quase em arco, com as duas mãos à altura dos olhos; depois, fazendo de conta que íamos tocar a marcha mais conhecida de John Philip Sousa, Stars and Stripes Forever, executei com a mão direita, a da batuta, dois compassos em branco e dei sinal de entrada.

Tudo parecia estar a correr a preceito, quando, de repente, me dei conta de que, mesmo tratando-se de uma marcha que eu sabia de cor e salteado, estava totalmente perdido, sem saber se íamos repetir um andamento, se era o momento de dar a melodia aos instrumentos de metal e o acompanhamento aos instrumentos de sopro ou vice-versa. No meio dessa diabólica confusão, quase tive um ataque de pânico. Sem saber como nem por quê, estava eu a arrojar tresloucado a assustada batuta contra a parede, a descer apavorado do pódio e a correr para a porta da sala de banda, a abri-la com fúria, a fechá-la à chave e a dirigir-me como um relâmpago ao escritório do Padre Director e a pousar desvairadamente as chaves da sala de banda sobre a secretária dele.

Ao ver-me nesse deplorável estado, o Padre Director ofereceu-me um copo de água, pediu-me que respirasse fundo, que acalmasse e que lhe contasse o que me tinha acontecido. Contei-lhe tudo e, no fim, roguei-lhe que, por amor de Deus, não me obrigasse a ser responsável pela banda. Ele, havendo passado rapidamente pela mente e pelos lábios os nomes de todos os padres, clérigos e coadjutores que nesse ano tinha ao seu serviço nas Oficinas de São José, disse-me que eu era o único com habilitações musicais suficientes para desempenhar devidamente esse cargo. Que, com o conhecimento que eu tinha de música, e com as três semanas que ainda faltavam para o início do ano lectivo, havia de ver que eu viria a superar essa dificuldade mais aparente que real. E como eu continuasse a insistir na minha incompetência para o desempenho desse cargo, ele, numa atitude a traduzir um misto de autoridade e compreensão humana, limitou-se a colocar-me nas mãos as chaves da sala de banda e a dizer, entre sério e sorridente, que não o obrigasse a mandar-me em nome do santo voto de obediência.

Triste como um suspiro, quase a chorar, com enorme pena do pobre de mim, por me ver obrigado a ter de desempenhar uma função para que não me sentia minimamente habilitado, fui carpir as minhas mágoas para o meu escritório.

Ora aconteceu que nesse mesmo dia, por auspiciosa obra do azar, depois do jantar, deparei inopinadamente com um padre velhinho, chamado Pedro Vicente Morais, conhecido simplesmente como Padre Morais, que tinha vindo do Oratório de São José de Évora passar umas semanas nas Oficinas de São José de Lisboa. Dado que de há muito tempo eu tinha uma grande confiança nele, como se fosse uma espécie de avô muito querido, modelo de sabedoria e de bondade, roguei-lhe que me emprestasse um ombro para nele desafogar as minhas amarguras. 

Depois de me ter ouvido, cheio de empatia e simpatia, limitou-se a dizer, essencialmente, que não me preocupasse: que durante as três semanas de férias ele me havia de ensinar o suficiente para eu vir a ser um bom mestre de banda. É que ele não só era um dos maiores peritos em Portugal na ciência da Radiestesia, quer dizer, especialista em desencantar águas subterrâneas e vários tipos de minérios, por meio de uma varinha de madeira, em forma de forquilha, e de um pêndulo metálico, em forma de peão, preso de um fio, mas possuía também uma considerável formação musical, tendo sido o fundador e um competentíssimo mestre da banda colegial, no Oratório de São José, de Évora, durante muitos anos, sabia construir órgãos e era também um dos raríssimos padres salesianos que dominava bastante bem a composição, a ponto de fazer arranjos musicais muito meritórios.  

A partir do dia seguinte, até ao início do ano lectivo, com uma paciência de Job, o bom do Padre Morais passou horas e horas comigo na sala de banda a ensinar-me quase tudo quanto eu necessitava saber para me desempenhar satisfatoriamente do cargo de director e de maestro da banda colegial. Tanto assim foi que, por mais de uma vez, quando éramos convidados a tocar em paradas ou nas procissões da Quaresma, em várias das paróquias de Lisboa, tais como a de Santo Condestável, a de São Roque e a da Ajuda, cheguei a ouvir comentários como este, vindos do meio dos milhares de pessoas que acompanhavam a procissão ou paravam nos passeios das ruas para ver passar a procissão do Senhor dos Passos:

- Quem me dera saber música como aquele gajo.  

Mal imaginavam esses precipitados e francos louvadores que “aquele gajo”, além das lições providenciais recebidas do bom do Padre Morais, roubava incontáveis horas ao sono para passá-las na sala de banda, sentado ao piano, a estudar meticulosamente as partes dos diferentes instrumentos, para depois, durante os curtos ensaios que o Director Escolar relutantemente nos concedia, as ensinar de ouvido a vários dos membros da banda, por eles não saberem solfejo suficiente.

Outro recurso de que me vali para me sair o mais decentemente possível da minha aventura de mestre de banda à força foi recorrer aos bons ofícios dos poucos alunos, normalmente os finalistas, que dominavam relativamente bem os respectivos instrumentos. Como aprendiam com facilidade as suas partes, por termos um reportório limitadíssimo, ajudavam-me a ensinar, não só os aprendizes, mas também os alunos que, sendo já músicos efectivos, nunca chegavam a atingir o nível que lhes permitisse ler devidamente as partes por si mesmos.

Por falar nos aprendizes, vou referir um episódio que tenho contado diversas vezes através dos anos, por me parecer que tem uma certa graça, modéstia à parte.

          Além dos elementos efectivos, a banda tinha, como é natural, um número razoável de aprendizes, destinados a preencher as vagas criadas pelos músicos que, no final do ano lectivo, concluído o curso, deixavam o colégio e iam para o mundo do trabalho. Como é natural também, a maior ambição de um aprendiz é atingir o estatuto de membro efectivo. E como outrossim é natural, na música instrumental, como em tudo, entram o talento e a arte, tomada aqui arte em sentido lato, no de prática ou aprendizagem. Ora aconteceu que nesse ano tive um aprendiz de clarinete, a bondade e a diligência em pessoa, que, apaixonado por esse instrumento, fazia um esforço inaudito para suprir a falta de talento. Passava o tempo e, enquanto alguns dos seus colegas chegavam ao ponto de poderem ser integrados na banda, por ocasião das frequentes actuações, já durante as festas do colégio, já durante as paradas ou as procissões, ele, mesmo com toda a boa vontade deste mundo e do outro, não conseguia atingir essa meta. Com o ar mais humilde que se pode imaginar, de longe em longe, pedia-me que o deixasse participar numa procissão como clarinetista. Perante esses pedidos e o seu empenho exemplar na aprendizagem, e, ao mesmo tempo, com receio de que, tal como às vezes sucedia com outros, ele viesse a desanimar e a desistir da banda, lembrei-me de recorrer a um estratagema especial para lhe satisfazer esse compreensível e ardente desejo.

        Íamos tocar numa procissão da Quaresma. Como a banda era fraquinha, por razões óbvias, eu estabeleci uma série de preceitos, a cumprir rigorosamente, por ocasião das saídas, a fim de poder tirar o melhor partido possível da nossa penúria: primeiro, exigir que todos os membros da banda levassem a farda impecavelmente lavada e primorosamente passada a ferro e os sapatos pretos engraxados a rigor; segundo, pôr o metal dos instrumentos musicais a brilhar, mercê do trabalho feito na noite anterior ao dia da saída por alguns voluntários, sob a minha supervisão; terceiro, reiterar, vezes sem conta, que o melhor que podíamos fazer era pôr a imaginar todos os que nos acompanhavam nos desfiles e nas procissões que, perante eles, desfilava uma banda competente, ao reparar no brilho dos instrumentos, no vistoso das fardas, na elegância e no aprumo do marchar, ao toque rítmico e sonoro da caixa; quarto, proibir terminantemente que alguém se atrevesse a tocar sequer uma nota desde o momento em que fossem buscar os instrumentos à sala de banda até ao sinal de entrada para cada uma das marchas executadas        

Foi alicerçado no quarto e último preceito que me foi possível recorrer ao seguinte estratagema: colocar algodão em rama entre a palheta do clarinete e a madeira, para impedir que dele saísse qualquer som, por mais que o bom do aprendiz soprasse. Chega o momento de arrancar com a primeira marcha – uma marcha fúnebre e soturnamente funéria, neste caso – e o nosso aprendiz de clarinete, cheio de orgulho, de garbo e de alegria, por haver soado finalmente a hora da sua tão suspirada estreia, sopra como todos os clarinetistas têm de soprar e imagina – e com muito boa razão – que está a colaborar no sucesso da marcha (e das marchas posteriores), quando, na realidade, está a cimentar o seu lugar, como clarinetista real, na banda do ano seguinte.

Cronicar a vasta série de episódios relacionados com o meu estatuto de mestre de banda à força seria uma tarefa muito morosa. Porém, parece-me edificante e oportuno referir alguns, por neles se poderem compendiar as principais vicissitudes por que passei no decorrer desse estranho mandato.

De temperamento colérico, segundo o meu mestre de noviços, pio e fiel devoto de Hipócrates, pai da medicina, e de Galeno, pai dos quatro humores e dos quatro temperamentos humanos, malgrado os grandes esforços que fazia para não me irritar demasiado durante os ensaios, às vezes as fífias e os disparates cometidos por alguns elementos da banda, já por descuido, já por inépcia, eram de tal maneira enervantes e horripilantes, que eu me sentia inscientemente impelido a bater com tal força com a batuta no pódio, que ela me desaparecia das mãos, desfeita em pedaços, e passava, em voo rasante, por cima das cabeças inocentes dos músicos espantados. Valia-me nessas ocasiões um trompetista muito imaginoso. Aluno brilhante do curso industrial e aprendiz de marcenaria, estava sempre munido de uma batuta suplente, para amavelmente me colocar nas mãos, nessas lamentáveis e imperdoáveis ocasiões de frustração...e má-criação, da minha parte.

Entretanto, dada a indesejável repetição desse bizarro fenómeno, um belo dia, quando a batuta, desfeita em pedaços, voou mais uma vez pelos ares, levanta-se da cadeira um saxofonista, aprendiz de mecânica, aproxima-se do pódio e, entre as gargalhadas de todos os músicos, a que eu não pude deixar de associar-me, oferece-me sorridente uma batuta de ferro fundido, gesto que eu agradeci com uma profunda vénia, uma das poucas coisas que eu sabia fazer bem, quando estava no pódio, de batuta na mão, diga-se em abono da verdade. Essa preciosa e exótica dádiva achei-a de tal forma original e significativa, que, metida numa mala, ao lado de uma linda batuta, feita ao torno, cheia de floreados, com que o dito e engenhoso aprendiz de marcenaria um dia me presenteou, ainda hoje me acompanha.

Apesar da sua modéstia, comparada com a da Casa Pia, a outra única banda colegial de Lisboa, naquele tempo, apraz-me evocar, com agridoce nostalgia, e mantidas as devidas proporções, três pontos altos vividos pela banda das Oficinas de São José, sob a minha regência de paupérrimo e modestíssimo amador.

O primeiro foi o convite oficial feito pelas autoridades do Governo para a nossa banda contribuir para abrilhantar, em 1959, o espectáculo organizado no Estádio do Restelo, em homenagem à Princesa Margaret, da Inglaterra, por ocasião de uma visita oficial a Portugal, durante seis dias. Embora os grandes aplausos das multidões que encheram o estádio fossem justamente para o mítico tattoo militar realizado pelos esquadrões a cavalo e de motos da Guarda Nacional Republicana, a banda das Oficinas de São José deu um arzinho da sua graça com uma série de marchas ligeiras e foi respeitosamente aplaudida.   

O segundo ponto alto foi a banda ter sido convidada pela poetisa Fernanda de Castro, viúva de António Ferro, para dar dois concertos no Jardim da Estrela, de Lisboa, por ocasião da realização das Festas Nacionais do Mundo Português, por ela organizadas.

Transido de medo por não estarmos à altura das circunstâncias – tocar em público, num vistoso coreto, para milhares de pessoas -, a banda acabou por sair-se discretamente bem e ser generosamente aplaudida. É que, por um daqueles felizes acasos, com que às vezes a sorte bafeja os pobres mortais, à última hora, quando já estávamos a fazer as afinações, para dar início ao primeiro concerto, surge-me no coreto, como que por milagre, um jovem músico, trajando com orgulho a nossa farda e munido de um trompete dourado, a oferecer-me os seus préstamos.

           Antigo aluno das Oficinas de São José, a tocar na Banda da Marinha, esse músico profissional (e providencial) nada mais teve que fazer senão passar rapidamente os olhos pelas peças do nosso magro reportório para se habilitar a tocar devidamente as partes de primeiro trompete. Só me pediu uma coisa: que lhe deixasse tocar um solo numa das peças, o que implicou um pequeno sacrifício, por parte do brioso e competente músico da minha banda, indigitado para desempenhar essa função.

Chega o momento do solo do trompetista, engastado numa rapsódia de canções populares portuguesas. De pé, à boca do coreto, o solista apruma-se, respira fundo, enche-se de brio e delicia e arrebata a vastíssima assistência – e os membros da banda e o maestro também - com a sua deslumbrante actuação ad libitum.

          O terceiro ponto alto da banda foi o concerto dado no Pavilhão de Desportos de Lisboa, por ocasião de uma efeméride cujo nome não recordo. Sei, porém, que o anfiteatro estava superlotado e que o concerto foi gravado pela Televisão Portuguesa, no tempo em que havia apenas um canal, e que, passados uns dias, foi transmitido para o país inteiro, para júbilo e estímulo dos adolescentes e jovens músicos amadores da Banda das Oficinas de São José de Lisboa, “de boa memória”. 


                                                                             António Cirurgião