Apresentação
de Se Eu Quisesse, Enlouquecia,
de
João Pedro George
Muito boa tarde a todos,
Estou
certo de que os presentes nesta sala se interrogam o que estou eu aqui a fazer,
a apresentar esta biografia de Herberto Helder, uma vez que não tenho
credenciais nenhumas, absolutamente nenhumas, para o efeito: não sou
especialista em história literária nem crítica literária, não leio literatura
com a assiduidade que desejava, poesia menos ainda, e, por tudo isso, confesso,
eu próprio tenho exactamente a mesma dúvida que agora vos percorre o
espírito.
Para tentar vencer esta “síndrome do
impostor” (o João Pedro George explicou-me há dias o que era a “síndrome do
impostor”) e para ultrapassar esta sensação de ser um óbvio “erro de casting”,
encontrei duas explicações para a minha presença neste evento, que coloco à
vossa consideração:
- a primeira e mais óbvia é, digamos,
uma explicação egoísta: o autor deste livro deve-me 27 euros que lhe emprestei há
mais de três semanas e, por isso, venho aqui na vã tentativa de, no final da
sessão, reaver o meu dinheiro;
- a segunda razão é altruísta,
solidária para com o autor, e tem que ver com o facto de os dois convidados premium,
digamos assim, terem simpática e sensatamente declinado o convite para aqui
estarem presentes.
Sem
os identificar, o que seria deselegante, direi apenas que um se chamava Araújo
e o outro António, pelo que, tendo falhado o Araújo I e o António II, teve de
sair do banco este António Araújo, Nem sequer o António Araújo candidato à
câmara municipal do Porto, mas um António Araújo de segunda escolha, que sou eu.
Permitam-me, já agora, que vos
descreva como surgiu o convite para estar aqui presente.
Estávamos
os dois na Feira da Ladra, perto de um local chamado «Ladeira dos Estudantes»,
e o autor desta obra, de rajada:
- disse-me, muito simpaticamente, e
com a diplomacia que o caracteriza, que os dois primeiros convidados não tinham
aceitado, pelo que teria de avançar eu, pois não havia mais ninguém para
apresentar o livro;
- no segundo seguinte, pediu-me que
lhe cedesse a minha casa por umas horas, pois a casa tem um jardim e ele
precisava de um espaço para dar uma entrevista sobre este livro;
- e, logo a seguir, pediu-me
emprestados 30 euros, dos quais, como eu já disse, pagou até agora a quantia de
3 euros.
Isto dito, porque isto tem de ser
dito, falemos então sobre este livro.
Esta é, desde logo, uma obra muito singular
e muito curiosa, que tem 895 páginas, em letra miúda e compacta, e que termina
com as seguintes e solenes palavras: “detesto abusar do tempo e da paciência
dos leitores”
Para os que julguem que o autor se
excedeu no número de caracteres, devo lembrar, ou antes informar, que a versão
original do livro tinha praticamente o dobro, umas 1.700 páginas ou 2.000
páginas, e que eu e o Zé Lima tivemos de a ler não uma, mas duas vezes, após o
que foi devidamente aparada e reduzida pelo Rui Couceiro, que fez aqui um
trabalho extraordinário como editor.
Não é difícil perceber que estamos
perante o trabalho de um obsessivo ou, o que é curioso, o trabalho de um
obsessivo sobre outro obsessivo, já que Herberto Helder também o era, como
também era hipocondríaco, à semelhança deste seu biógrafo.
Há,
aliás, muitas outras afinidades electivas entre o biógrafo e o biografado, que
me vou abster de explorar.
Mas
há também óbvias e gritantes diferenças: o livro mostra que Herberto Helder era
uma pessoa que cuidava muito da aparência, que tinha um grande cuidado em estar
sempre impecável, bem vestido, limpo e bem apresentado (aliás, nas raras vezes
que o vi, no Largo Trindade Coelho, ou perto das Escadinhas do Duque, essa é a
grande recordação que retenho dele). Essa é uma diferença com o seu biógrafo,
mas adiante…
Este é, como disse, o trabalho de um
obsessivo, sendo essa, se quisermos, a principal característica deste livro e,
aliás, de todas as boas biografias. Não vou maçar-vos com o que diz Ruy Castro
em A Vida por Escrito ou com o que diz Lira Neto em A Arte da
Biografia sobre as regras de uma boa biografia, mas a primeira e mais óbvia
de todas, é saber tudo, absolutamente tudo, sobre a personalidade
biografada.
E,
nesse aspecto, João Pedro George é um caso único, totalmente imbatível,
justamente porque é um obsessivo, alguém que dedicou oito anos da sua vida a
levantar todas as informações possíveis sobre o cidadão Herberto Helder de
Oliveira.
Ou seja, podemos questionar se devemos
considerar ou não esta biografia como «definitiva», mas, a menos que surjam
informações em baús vindos de Sirius ou Marte, esta biografia é inultrapassável
quanto à profundidade e à amplitude da investigação.
Podemos
gostar, não gostar deste livro – lembrei-me, aliás, de que na União Soviética
dos anos 30 foi aprovada uma lei que incriminava deitar livros e papéis fora
pela retrete abaixo, tantos eram os intelectuais que, nos tempos do
estalinismo, procuravam desfazer-se de leituras comprometedoras.
Ora,
nós vivemos num país livre, poderemos não gostar deste livro, poderemos
deitá-lo pela retrete abaixo, mas nunca poderemos negar, por um lado, o
trabalho, o imenso e sério trabalho que este livro implicou; e, por outro lado,
o facto de o seu autor ter procurado revolver tudo sobre o seu biografado, só
deixando de fora aquilo que ou não pôde encontrar ou que não lhe quiseram
contar, o que foi deveras pena, pois esta foi uma oportunidade irrepetível para
prestar testemunho sobre a memória de um dos maiores poetas que a língua
portuguesa produziu.
Para os que queiram ser críticos – e
num país de invejas haverá sempre os que querem ser críticos –, pode dizer-se
muita coisa, mas o que nunca se poderá dizer é que esta biografia tem lacunas
ou omissões, espaços vazios ou em branco. Poderá, sim, e pelo contrário, afirmar-se
que peca por excesso, que nos traz dados e factos sobre Herberto Helder que não
precisávamos de saber…
Simplesmente,
dizer que há uma superabundância de informação é o maior elogio que se pode
fazer a uma biografia.
Como disse, não sou especialista nestas matérias, mas nos muitos anos que já levo como leitor nunca vi alguém dizer que o James Boswell escreveu páginas a mais sobre Samuel Johnson, que Johan Peter Ekermann se excedeu ao anotar tudo o que Goethe lhe dizia ou que Robert P. Caro não deveria ter escrito uma biografia de 1.300 páginas sobre Robert Moses ou, até hoje, quatro esmagadores volumes sobre a presidência de Lyndon Johnson, que ao todo somam muitos milhares de páginas, aguardando-se um quinto volume.
(já
agora, a talhe de foice, e para percebermos quão obsessivos são os grandes
biógrafos, lembre-se que Robert P. Caro tem e só usa 14 máquinas de escrever
Smith Corona antigas, que já não se fabricam; que só usa fitas de máquina de
algodão, não de nylon, e que aquelas estão descontinuadas, pelo que teve de
encomendar 1.700 fitas, especialmente feitas para ele; que só escreve com lápis
vermelhos Berol 314; que tem um livro-razão onde anota quantas palavras
escreveu por dia, tentando uma média de 1000 palavras e que, uma vez, se isolou
para escrever, refugiado numa floresta, num barracão de cimento de 12 metros
quadrados…)
É este o perfil dos
biógrafos-obsessivos. Um obsessivo como o João Pedro George faz sempre vítimas
entre os mais próximos. A Marta e a Ema, que ali estão, são as vítimas
imediatas, mas também os amigos, como o Diogo Ramada Curto, o Pedro Goulão, o
Zé Lima, o Alexandre Rechestre ou eu, têm sido sujeitos às taras e manias do
autor: já passámos o ciclo Mota Pinto,
em que todas as conversas de café iam ter ao antigo vice-primeiro-ministro do
PSD, tivemos o ciclo Pessoa, tivemos o ciclo sobre expressões em calão, depois
um miniciclo sobre os restos mortais de Eça e o Panteão Nacional e depois,
finalmente, um longo ciclo Herberto Helder, que nos torna todos habilitados a
dar cursos de mestrado ou doutoramento sobre o autor de Vocação Animal,
um título que, como vêem, se aplica na perfeição ao seu biógrafo.
Às
tantas, e estão aqui testemunhas, os mais próximos quase poderiam dizer, ou
sentir, que, como se diz no título, se o João Pedro George quisesse nós
enlouquecíamos.
Pela parte que me toca, tive de
acompanhar de perto, e só vou dar alguns exemplos:
- as origens familiares na Madeira –
uma vez, quando fomos ao Funchal falar num colóquio, tivemos de visitar a casa
de infância de Herberto, as ruas, uma a uma, fomos ver a Lapinha do Caseiro,
etc., etc.;
- a genealogia – que teve de contar
com a ajuda de uma pessoa minha amiga, José Nunes Liberato, a quem o João Pedro
incomodou de morte com mil e um pormenores e questões familiares;
- a passagem pela rádio – e o que o
João Pedro me atormentou o juízo para convencer o dr. Jaime Gama a falar com
ele;
- a RTP – onde as vítimas foram os
nossos amigos Ângela Camila e António
Faria;
- o Instituto Português do Mar e da Atmsofera,
pois Herberto trabalhara como meteorologista: os meses que andámos, sem muito
sucesso, atrás dos arquivos do IPMA
- a Fundação Gulbenkian, por causa das
bibliotecas itinerantes, e as cartas para lá e para cá que tiveram de ser
enviadas. Com resultados decepcionantes: na Gulbenkian só havia um papelito burocrático
sobre a passagem de Herberto Helder pelas bibliotecas itinerantes;
- por fim, ainda que eu não tenha tido
intervenção directa, o Arquivo Histórico-Militar. Falo disso, até porque o
autor me pediu para falar, para contar que João Pedro George só pôde consultar
e tirar os elementos que queria da ficha militar de Herberto Helder porque o
militar de serviço, que pediu anonimato e não está aqui identificado, virou convenientemente
as costas para ele fotografar a inócua ficha militar de Herberto Helder.
Falo disto por causa de um problema
grave, muito grave, que se arrisca a pôr em causa, muito seriamente, o trabalho
de biógrafos e historiadores: a forma cega, estúpida e maximalista como o Regulamento
Geral sobre Protecção de Dados (RGPD) tem vindo a ser aplicado, muitas vezes
por burocratas que só pretendem demonstrar o seu pequeno poder.
Para vos dar uma ideia, se eu
pretender saber quando é que uma figura pública como Álvaro Cunhal se licenciou
ou que notas teve, a Reitoria da Universidade de Lisboa não deixa.
Se
eu quiser saber, até no âmbito de uma investigação jornalística, se um político
está a mentir sobre as suas habilitações literárias (e, como sabem, já tivemos
um caso desses…), os serviços académicos não permitem, pois consideram que isso
são dados pessoais, inacessíveis aos comuns mortais.
Muito antes do RGPD – ou da forma como
está a ser aplicado – Silvestre Lacerda, então director da Torre do Tombo,
pediu-me ajuda para criar umas guidelines sobre o expurgo do arquivo da
PIDE, aquilo que poderia ir ou não à sala de leitura. Há coisas óbvias: vícios,
alcoolismo, hábitos ou orientações sexuais, questões que uma polícia política
usava para chantagear os oposicionistas. Mas, tirando esse núcleo mais
restrito, tudo o mais podia – e, felizmente, continua a poder ser consultado na
Torre do Tombo. Caso contrário, seria impossível fazer uma história da PIDE ou
da resistência ao salazarismo.
Pois bem – e era bom que os
governantes e os decisores políticos estivessem atentos a isto – se adoptarmos
um critério totalmente maximalista, à luz do qual nada pode ser consultado, é
melhor a Contraponto desistir desta sua excelente colecção de biografias. Uma
colecção que surgiu, lembro-me bem, porque se dizia que em Portugal não se
cultivava o género biográfico e, quando se começou a cultivar, temos este
entrave burocrático e acéfalo, que muito prejudica a cultura portuguesa.
Como notam, estou a falar mais da
fabricação da obra do que da obra propriamente dita, até porque seria
impossível resumi-la ou apontar os seus pontos fortes ou fracos, tarefa que
deixo aos críticos. Espero é que os críticos sejam honestos e não descubram os
lapsos que este livro tem – já foram detectados dois, haverá certamente mais,
não muitos mais – para porem em causa uma investigação de vários anos – e um
trabalho de escrita que, a certa altura, posso testemunhá-lo, era de 10 a 12
horas diárias, sábados, domingos, feriados, até na passagem do Ano Novo.
É aqui que bate o ponto. Não haverá
muita gente disposta a percorrer o calvário que é redigir uma obra com esta
dimensão e profundidade. Até porque, e é importante dizê-lo, isso implica um
sacrifício material muito grande, enorme. Na badana do livro, João Pedro George
diz que vive exclusivamente da escrita. Ao que me apetecia lembrar uma frase do
Júlio César Machado, no século XIX: em Portugal a escrita pode ser um modo de
vida desde que se tenha outro…
Espero que não achem que estou a fazer
o elogio do coitadinho meu amigo, um número que, de vez em quando, o João Pedro
gosta de fazer, sobretudo quando pede dinheiro emprestado aos amigos para
comprar livros que entram em casa sem a Marta saber…
O que pretendo dizer é, tão-só, que
não há muita gente com esta capacidade de trabalho e, sobretudo, com esta
capacidade de sacrifício, de sacrifício material, financeiro, e também de
sacrifício pessoal, levado por vezes às raias da loucura, com o medo e a
angústia de enfrentar um gigante como Herberto – e, para mais, um gigante
escondido numa caverna – e não ser capaz de chegar até ao fim, de ter de
desistir em nome de projectos mais imediatos, mas mais remuneradores. Ao longo
destes anos, foram muitas as solicitações que João Pedro George teve de
declinar, algumas delas bem remuneradas, para conseguir escrever esta obra. Até
por isso, arrisco-me a dizer que, se ela não é «definitiva», será certamente
inultrapassável: por um lado, porque não haverá muito mais informações
relevantes do que as que João Pedro George descobriu; por outro, porque não
haverá muita gente capaz de dar oito anos de vida e de sacrifício – de
sacrifício pessoal e material –a um projecto como este.
Para mais, Herberto Helder foi, como
todos sabem, uma personalidade elusiva, avessa à mundanidade, sobre a qual
pouco ou nada se sabia. Provavelmente, Herberto Helder é mais difícil de todos
os biografados.
Por
isso, mesmo para quem não se interesse por Herberto Helder ou pela sua poesia, este
livro pode ser lido como uma lição de escrita e de investigação, que me fez
lembrar um livro do historiador Alain Corbin, Le
monde retrouvé de Louis-François Pinagot.
Nesse
livro, Corbin dispõe-se a estudar a vida de um homem absolutamente anónimo,
sobre o qual só se sabe que nasceu em 1798 e morreu em 1876, e que era um
fabricante de tamancos na França profunda. O que esse livro de Corbin tem de
interessante não é a vida de Pinagot, mas irmos acompanhando como o autor
ultrapassa e muitas vezes dissimula a sua ignorância sobre ele, falando das
florestas da região, do ofício de tamanqueiro, etc. Aqui, neste livro de João
Pedro George, também se nota isso, de vez em quando, mas de uma forma menos
óbvia e mais espaçada, o modo como o autor tem de lidar com a falta de
informação.
Em face de tudo isto, creio que nem
será necessário perder tempo com uma questão caricata, que se colocou aliás há
alguns meses, com uma outra das polémicas escusadas em que João Pedro George se
envolveu, que é a de saber se, perante um escritor, o que importa é a obra, sendo
a vida ou a biografia secundárias ou irrelevantes.
É
uma questão tão risível que nem vale a pena perder tempo com ela, já que, no
limite, a biografia desapareceria como género literário, não haveria biografias
de escritores, de pintores, não haveria sociologia da cultura ou sociologia da
cultura, ficaríamos só com as «obras», como produtos de um espírito hegeliano,
a pairar no etéreo, universais e intemporais, sendo indiferente, para as percebermos,
sabermos se foram feitas na Idade Média ou no Renascimento, por um homem ou por
uma mulher, por alguém com esta ou aquelas características.
Bastará
perguntar: numa obra como a de Herberto, onde a sexualidade está tão presente,
é irrelevante conhecermos as pulsões eróticas do poeta e o seu carácter de
sedutor? Ouso lembrar, aliás, que uma biografia muito louvada de Fernando
Pessoa, e ainda mais volumosa do que esta, discutia o tamanho do seu pénis,
pelos vistos uma questão relevante para a compreensão da Mensagem.
Perante isto, que ninguém se atreva a dizer que João Pedro George se aventurou
por domínios íntimos, pois, posso garantir, aquela informação métrica não
consta da presente biografia.
A este propósito, lembrei-me de uma
afirmação feita, no início do século XX pela actriz Mercedes Blasco: «Quando
alguém se apresenta a nossos olhos como artista, é a sua arte apenas que deve
interessar-nos, e deixemos, por mesquinha, essa curiosidade doentia de querer
devassar o que está mais além do artista»
Ora, se tivéssemos seguido este
conselho, não teríamos livros interessantíssimo como O
Mundo Gay de António Boto, de Anna Klobucka.
Permito-me
aliás recordar que este ano, além do centenário do Great Gatsby, é também
o cententário de Ms Dalloway, de Virginia Woolf. Pois bem, ainda há um
par de semanas o Times
Literary Supplement tinha artigos sobre a provável
inspiradora da figura de Ms. Dalloway, Vita-Sackville-West, como há livros
sobre a rapariga que terá inspirado a Lolita de Nabokov ou a Alice do
País das Maravilhas.
Sobre
esta última, num livro que li há pouco, The
Story of Alice. Lewis Carroll and the Secret History of Wonderland,
de Robert Douglas-Fairhurst, fala-se de uma luva encontrada na década de 1950 debaixo
do soalho da casa onde Lewis Carroll passou a infância. Era um hábito da época,
deixar nas paredes das casas sapatinhos de crianças ou “cápsulas do tempo” e,
neste caso da luva, há uma ligação com a obra de Carroll, que gostava de
brincar com a palavra «glove», por ter dentro dela a palavra «love». Ou seja, enquanto
nos países que mais cultivam o género biográfico se discutem coisas como luvas
encontradas na casa de infância de escritores, por cá ainda estamos a debater
se o que interessa é a «obra», não a biografia…
Para
termos uma noção de grau de pormenor a que se chega, deste grau obsessivo de
pormenor, poderia lembrar também um livro extraordinário que se dedica apenas e
tão-só a estudar, com uma infinidade insana de detalhes, o episódio em que Van
Gogh cortou a orelha: Van
Gogh’s Ear. The True Story, de Bernardette Murphy.
Recomendo muito.
Aliás,
e se pensarmos bem, essa questão nem se coloca para quem, como é o caso de
Herberto Helder, teve uma vida tão interessante, ou seja, para quem a vida foi
também «obra», que fez da sua vida uma «obra», ou um prolongamento da obra
literária, podendo a vida ser estudada como tal, uma vez que as fronteiras
vida/obra são, naturalmente, imprecisas e muito ténues.
Permitam-me aliás que lembre que saiu
há dias nos Estados Unidos – em 6 de Maio, mais precisamente – um livro de um,
grande biógrafo, Zachary Leader, que já assinou biografias de Saul Bellow ou
Kingsley Amis, e que agora publicou um livro chamado Ellman’s
Joyce. The biography of a masterpiece and its maker,
que é a biografia de um biógrafo e a biografia de uma biografia.
O biógrafo é Richard Ellmann, a
biografia é a que ele dedicou a James Joyce: e o livro divide-se em duas
partes, uma sobre a vida de Ellmann, a biografia do biógrafo, e outra é uma
«biografia da biografia», sobre o trabalho que Elllman teve para escrever a sua
extraordinária biografia de James Joyce, publicada em 1959.
Possivelmente, daqui a uns anos
teremos uma biografia de João Pedro George e uma biografia desta biografia, mas
o que interessa notar é que quando alguns países já estão neste nível, fazerem
biografias de biógrafos, por cá ainda discutimos se se deve separar a vida e a
obra…
É curioso notar que, numa
recensão saída a semana passada no TLS sobre este livro de Zachary Leader,
se mostra que os problemas e as técnicas com que Ellman lidou são exactamente
os mesmos de João Pedro George:
- uma atenção à vida e aos outros –
Ellman era um académico muito social e sociável, tal como João Pedro George, o
que lhe facilitou e muito o trabalho de entrevistas e o contacto com os
entrevistados;
- o fetichismo dos pormenores – um bom
biógrafo tem de atender muito aos pormenores, pois são estes que dão colorido a
uma narrativa biográfico. Por exemplo, neste livro, o processo de Herberto
Helder contra um ar condicionado de um Minipreço, cujo barulho o atormentava;
- a questão dos «dead spots», dos
tempos mortos – um exemplo que se dá naquela recensão é, por mais que
levantemos a vida de Joyce, há espaços em branco, tempos mortos, as horas e os
dias que esteve á espera do canalizador. A biografia de Ellmann foi criticada
por preencher alguns buracos com devaneios ficcionais ou quase. Aqui, João
Pedro George corrigiu esse ponto, mesmo em relação à sua biografia de Fernando
Pessoa. Ali, havia um ou outro devaneio, na descrição de uma cena num
americano, por exemplo. Aqui não há nada disso, há muito pouco disso, talvez
uma ou outra frase de ligação para iniciar um parágrafo ou um capítulo, mas não
mais do que isso. Porquê? Porque o autor percebeu que aqui não podia
entregar-se a essas fantasias e porque beneficiou muito do contacto de anos com
a viúva de Herberto Helder, Olga Lima, cujas descrições – veja-se a da morte de
Herberto – têm uma vivacidade e um colorido, uma proximidade que dispensa
devaneios ficcionais.
Em
suma, e para concluir a questão da vida vs. a obra, é óbvio que há um interesse
cultural, histórico, sociológico, talvez também voyeurista, na biografia de um
escritor. Um interesse que vai para além da mera hermenêutica da obra
literária, mas que em muito auxilia essa hermenêutica. A questão da obra vs. o
homem não faz nenhum sentido, sobretudo quanto estamos a falar de uma biografia
– devo aliás informar que o livro era muito mais copioso a descrever e a analisar
as obras de HH, mas porque se trata de uma biografia tudo isso acabou por ser devidamente
reduzido e sanitarizado.
Isto conduz-nos a outra questão
abstrusa, que é a de saber se HH apreciaria ser biografado ou se apreciaria
esta biografia. Desde logo, e é óbvio, uma biografia não é um in memoriam,
sendo também necessário dizer que esta não é uma biografia escandalosa, à
semelhança das que Donald Spoto faz para as estrelas de Hollywood. Este não é
um livro que ande à cata de pormenores sórdidos, até porque, se virmos bem, a
vida de Herberto Helder não os tem.
O
que haverá também a dizer sobre a relação entre Herberto e as biografias, e
basta percorrem as estantes do Palácio Galveias, é que Herberto Helder lia
biografias, inclusive a de Luiz Pacheco, escrita por João Pedro George, que
Aníbal Fernandes lhe emprestava biografias (ver pág. 836 do livro), que Herberto,
por exemplo, criticava os que analisavam a poesia de Rimbaud sem conhecerem
detalhes da sua vida.
Ou seja, é possível, até provável, que
Herberto não tivesse apreciado ser biografado, e sobretudo ser biografado
nestes termos, até porque, e se há coisa que esta biografia demonstra é essa, Herberto
Helder, mais do que um «recluso» ou «invisível», era alguém que se preocupava –
que se preocupava obsessivamente – em controlar a sua imagem e o modo de
difusão da sua obra.
No entanto, é impossível afirmar, pois
é falso, que Herberto recusasse o género biográfico, sendo, pelo contrário, um
leitor de biografias.
Não me apetece fazer grandes elogios a
este livro de JPG, um autor que tem um livro chamado Não
é Fácil Dizer Bem, mas acho que, com auxílio de pessoas próximas, como
Olga Lima, Aníbal Fernandes, a filha Gisela, este livro acaba por prestar uma
grande homenagem e um grande serviço à obra e à memória de Herberto Helder.
A
homenagem é óbvia: uma dedicação insana de anos a estudar a vida de um sedutor,
podendo dizer-se que João Pedro George, coitado, foi a última vítima das
enormes artes de sedução de Herberto Helder.
E
o serviço a Herberto também é ou deveria ser óbvio: Herberto Helder tinha e em
parte ainda tem, até porque a cultivou, uma aura de xamã em seu torno, uma
visão demiúrgica da sua poesia, algo que foi notado, entre outros, por António
Guerreiro ou Diogo Vaz Pinto.
Ora, essa aura, por estar muito ligada a factos históricos muito concretos (a psicanálise, o spiritual awakening dos anos 60, a atracção por mitos e sabedorias ancestrais, por orientes e tradições míticas), essa aura, dizia, corre o risco – já está aliás a correr o risco – da erosão do tempo. E, com a passagem do tempo, o que era sacral, o que pretendia a projectar-se como sacral, torna-se caricato, porque preso aos modismos de uma época e porque fruto de uma pretensão, de uma intenção de sacralidade, digamos.
Neste
sentido, ao dessacralizar a figura de Herberto Helder, ao torná-lo humano,
porventura demasiado humano, esta biografia tem o efeito paradoxal de devolver
a poesia de Herberto à sua integridade e à sua pureza. E aí, sim, poderemos
doravante separar a vida e a obra, ler esta na sua plenitude, desfeito que
estão o mistério em torno do seu autor.
Este
livro é um exercício de de-mitificação e, pergunta-se, não será melhor para a
poesia herbertiana deixar de estar sequestrada pelo magnetismo poderosíssimo da
sua personalidade? Não será melhor, inclusive, para o próprio Herberto Helder,
deixar de ser visto com a aura que em boa medida criou, mas que foi
maioritariamente gerada e encenada pelos outros, sedentos de terem o seu
quinhão nessa aura, de dizerem que tinham o privilégio de partilhar mesa com
Herberto?
Ou
seja, houve todo um trabalho de mitificação e de autoencenação de uma
personalidade e de grupo, ou de uma tribo, que está datado e do qual importa
libertar a poesia de Herberto, pois só assim se lhe garante perenidade.
Sempre haverá, é certo, quem entenda
que não precisávamos de saber tanto sobre Herberto Helder. E não me
refiro aos aspectos amorosos ou sexuais, falo de pormenores como os cereais do
pequeno-almoço ou afins. Simplesmente, tudo isso é próprio das grandes
biografias, podendo eu, se quisesse, dar dezenas de exemplos de dezenas de
biografias que utilizam esta mesma técnica para seduzir o leitor (sim, para
além de um encontro de obsessivos, este livro é também um encontro de
sedutores, de sedutores que usam ou usaram o verbo como a arma principal do seu
arsenal erótico).
Permitam-me recordar, aliás, um outro
livro extraordinário, The
Sinner and the Saint: Dostoevsky, a Crime and Its Punishment,
de Kevin Birmin, que é, além, de uma biografia de Dostoievsky, uma biografia de
Crime e Castigo. Conta-se aí, a dado passo, que Dostoievsky tomava óleo
de castor para as hemorroidas… É um pormenor caricato e risível, concordo; mas será
que isso diminui Dostoivesky aos nossos olhos, retira grandeza à sua obra? Ou,
ao conhecermos o sofrimento que teve – e refiro-me às prisões e deportações –
não poderemos compreendê-lo melhor?
Esta é uma obra de maturidade de João
Pedro George, ainda que a maturidade talvez não seja das qualidades que mais
lhe reconhecemos, mas que aqui fica exemplarmente mostrada no domínio perfeito
da técnica da narrativa biográfica. É preciso lembrar que, além de Luiz
Pacheco, marquesa de Paiva, Mota Pinto, Fernando Pessoa e Herberto Helder, João
Pedro George foi autor-fantasma de muitas outras biografias, e de algumas
traduções inconfessáveis, como as dos livros de Alicia Galeotti. Permita-me
aliás que revele que João Pedro George foi autor de um livro biográfico de um
médico da moda que foi para a televisão, para um programa da manhã, afirmar
sorridente que, de todos os livros que tinha escrito, aquele fora o que lhe
dera mais gozo escrever…
O domínio da técnica biográfica de
João Pedro George evidencia-se em vários momentos: antes da entrada na
narrativa, por ordem cronológica, a escolha de um momento-choque para agarrar o
leitor, numa linha cultivada, por ex., por Fernando Morais em Chatô,
o Rei do Brasil.
Depois, e na linha do que atrás falei
sobre Alain Corbin, a falta de informações sobre a infância é iludida e
escamoteada através da descrição do ambiente do nascimento: no caso de Mota
Pinto, tínhamos páginas sobre Pombal, aqui – e são importantes – sobre o
Funchal (recorde-se que José Pacheco Pereira usou uma técnica diferente, e
legítima, para descrever a infância de Cunhal, não tendo dados sobre ela: disse
que os livros de Cunhal eram autobiográficos e, por isso, usou-os para retratar
a sua meninice). A seguir, e é muito comum, o biógrafo prende-se ao primeiro
dado real que consegue encontrar: as certidões de nascimento e os boletins com
as classificações escolares.
Mais adiante, João Pedro George já
pode contar com alguns testemunhos orais, um domínio em que é mestre, pois
consegue retirar sempre muito dos seus entrevistados. Percebe-se que, sobretudo
em questões sensíveis, João Pedro George tenha recorrido muito ao discurso
directo e às transcrições de conversas gravadas, como elementar técnica de
autodefesa. Mesmo que por vezes isso possa custar ao leitor, fica este com a
garantia que tudo quanto é dito foi mesmo dito pelos entrevistados e, por
vezes, esta biografia consegue mesmo que, sobre uma mesma questão, haja
depoimentos cruzados, que ora se complementam, ora se contradizem entre si.
Há também um domínio em que João Pedro
George se tem aprimorado, à custa de ler dezenas e dezenas de biografias
estrangeiras, que é o da recriação de ambientes, por vezes apenas com uma frase
ou um parágrafo. Tenho muita pena que algumas dessas partes, como as que se
referiam às tertúlias de Lisboa, tenham sido cortadas nesta versão – e até
exorto a Contraponto, à semelhança do que fez com os diários de Salazar, que
tive o gosto de apresentar na Torre do Tombo, faça uma edição integral, online.
Um mito que aqui fica desfeito, como
se necessário fosse, é o de Herberto Helder
recluso ou eremita. Herberto Helder era um ser muito social e sociável,
tal qual o seu biógrafo, que passava as tardes na sua editora, depois no Solar
dos Galegos, etc., e, já antes, em cafés como o Monte Carlo ou o Toni dos
Bifes, e que conhecia todos os seus colegas de ofício.
Sei
que é um lugar-comum, mas neste caso tem plena aplicação: este livro é também a
biografia de uma geração de intelectuais e um retrato extraordinário do meio
cultural, ou de alguns meios culturais, de Lisboa dos anos 50, mas sobretudo
60, 70 e, em parte, 80. Se haverá quem pense que Herberto Helder sai maltratado
deste livro, direi que esse meio cultural e sobretudo algumas das suas figuras
saem muito mais mal tratados do que Herberto Helder.
Aliás, e se me permitem, e desculpem o
tempo que vos estou a tomar, acho que devemos todos suplicar, implorar, para
que esta biografia não seja apreciada à luz de uma lógica binária, selvagem e
maniqueísta, do género: o livro diz bem ou diz mal de Herberto Helder?
Façam
a justiça de não reduzir este livro a uma aproximação tão básica e tão
simplista, tão próxima do comentário futebolístico ou político, pois, de facto,
e creio que basta dizer isto, o livro é muito mais copioso nos elogios que faz
à obra ou à poesia de Herberto do que nos reparos que, aqui e ali, faz a alguns
traços da sua personalidade.
A esse propósito, e se quisermos, o
livro percorre se quisermos uma primeira etapa de Herberto Helder, aquela em
que procura afirmar-se, mas está ainda numa fase de incessante procura, num
arco temporal que começa na Madeira e passa por Coimbra ou pela Bélgica.
É a fase em que Herberto Helder se
aproxima dos caminhos da marginalidade e do abjeccionismo, o que me fez lembrar
obviamente o que Bordieu escreve nas Regras da Arte sobre a condição do artista,
em que a boémia lhe confere um estatuto de excepção, por um lado próximo das
classes populares mas por outro próximo das classes mais elevadas, mas fez-me
lembrar um livro que li há pouco, de Dominique Kalifa, sobre
os bas fonds, onde ele conta que já na Belle époque havia um turismo
dos bairros marginais e degradados, e até uma tournée des grands ducs em
que os grão-duques, guiados pela polícia, visitavam as piores zonas de Paris.
Herberto
Helder foi um pouco assim, conheceu também essa realidade sombria, dormiu em
casas de banho públicas na Bélgica, mas sempre foi relativamente exterior a
isso, teve a inteligência que tudo isso era, digamos, um pouco infantil e nunca
quis configurar-se como um maldito e percebeu que a aposta na sua obra
implicaria o que implicou, um percurso no sentido do emburguesamento, da
estabilidade existencial, muito dada por Olga Lima, das rotinas infalíveis,
mas, também por isso mesmo, Herberto intuiu que esse maior conformismo,
digamos, se era essencial para aplacar as suas angústias existenciais, era
fatal para a sua imagem como poeta.
Daí
que a sua atitude, sobretudo a partir de certa fase, tenha sido intransigente
na salvaguarda do que era, ou do que ele projectava ser, a integridade da sua
obra, sem cedências de qualquer espécie à vulgaridade, ao mediatismo, ao
comercialismo, à cultura de massas. A resposta que dá a Mega Ferreira, quando
este e o convida a ir a um evento no CCB, é exemplar dessa atitude.
E como essa atitude marcou uma
infinidade de criadores, ou de aspirantes a criadores, ainda que muito poucos a
tenham levado aos limites que Herberto levou, este livro é também muito
importante não apenas como retrato biográfico de um poeta, mas como, se
quisermos, o retrato de uma certa forma de estar na poesia, que não
começou com Herberto, é certo, mas que sobretudo não terminou com ele. Era o produto, se quisermos, daquilo a que
Roberto Calasso chamou «a vaga Baudelaire», que também não começou nem terminou
com ele.
Falando em terminar, é também tempo,
mais do que tempo, para terminar pedindo duplamente desculpas: aos presentes,
pelo tempo que vos tomei; ao autor por não ter estado à altura do livro que
escreveu.
Deixem-me só colocar uma última
questão, que é a da diferença entre currículo e biografia. Hoje os escritores,
quase todos, têm um grande CV, não têm biografia. Pensemos num Camões, num
Camilo, num Aquilino, mas também em Herberto Helder, e comparemo-los com os das
gerações mais novas. Não vou citar nomes, seria deselegante, mas, dos
escritores actuais, de quem gostaríamos de ler uma biografia daqui a uns 20 ou
30 anos? Quem tem uma vida interessante e digna de ser biografada?
Isto
sucede quando há festivais literários, bolsas de criação literária, residências
literárias, em suma, há muito literário, mas pouca literatura. Talvez por que
não haja vida para levar para dentro da literatura, sendo paradoxal que, com
tanta escassez de vida, de vida interessante, seja agora que se cultiva um
género a que chamam «autoficção».
Serão
muitas as razões para este desvanecimento da vida dos escritores: profissionalização
da escrita, maior formação académica, maior conforto existencial, quiçá algum comodismo
e conformismo, mil solicitações de autopromoção em colóquios, mesas-redondas, festas
literárias por todo o planeta, demoradas produções fotográficas para disseminar
nas redes sociais, «postas» diárias no Instragam, e até, importa dizê-lo, excesso
de eventos mundanos, como estes das apresentações de livros.
Herberto
pertenceu, muito provavelmente, à última geração de escritores que teve uma vida
para lá da escrita, que, no fundo, não teve currículo, teve uma biografia. É dela
que João Pedro George nos fala neste livro extraordinário, Se Eu Quisesse Enlouquecia.
Muito obrigado.
Lisboa, 3 de Junho de 2025
António Araújo