Todos diferentes, todos iguais
Será
uma pena, deveras pena, que as pessoas não comprem e não leiam este livro
julgando que se trata de uma biografia de Julio Iglesias. Porque o não é,
sendo-o. Mas já lá vamos.
Como
será uma pena que as pessoas não comprem e não leiam este livro por não
gostarem de Julio Iglesias, por o acharem ou “foleiro” ou machista ou narcisista
ou, pior ainda, vazio e desinteressante.
Esta
não é uma biografia para os amantes de Julio Iglesias, ainda que também o seja ou possa
ser. Para isso, no entanto, existem obras mais volumosas e informadas. Nenhuma
delas, porém, com a qualidade literária excepcional, absolutamente excepcional,
deste livro.
A
ironia é um caminho à beira do precipício e quem a pratica está sempre em risco
de cair no ofensivo escusado ou no engraçadismo balofo. É por isso que este
livro é uma obra literária notável, a vários e muitos títulos. Por ter um
estilo original e fazer uma abordagem originalíssima a uma vida alheia, uma aproximação que não encontramos em
lugar algum, nem nas melhores biografias brasileiras ou anglo-saxónicas. Acima
de tudo, por saber conter-se nos limites da graça suave, mordaz q.b., do humor inteligente,
talentosíssimo. Nada há, porém, de ficção ou inventanço ou, praga dos nossos
dias, da autoficção enganosa, desonesta nos propósitos e nas intenções. Tudo
aqui é factual e verificado, não vá o diabo (ou o Julio) tecê-las. Em simultâneo,
este não é um ensaio académico maçudo e chato, à la française, sobre Julio
Iglesias e o seu mito.
O
que é este livro, então? Um ovni delicioso. Não é biografia exaustiva, daquelas
que contam tudo e a par e passo. Não é essai intelectual. Não é um exercício
de ficção ou pseudoficção. É, talvez, chamemos-lhe assim, uma «narrativa
biográfica», de uma subtileza tremenda, que nos leva até Julio e às suas muitas
e desbragadas intimidades, e que nos descreve, como poucos, a Espanha do
tardofranquismo e os desmandos da corrupção em democracia. Percebemos como ali tudo é em grande e à
grande, como somos uma versão em miniatura do país vizinho, na violência e no
fervor das paixões, na dimensão planetária das suas estrelas da pop, na
escala dos muitos escândalos, na ligação às Américas do Sul e do Norte, esta
conquistada por Julio com muito engenho e arte.
Leiam
este livro para além ou apesar de Julio (mas também, se quiserem, por causa de
Julio e das nostalgias). Leiam-no como um exercício e uma lição de escrita. Leiam-no pelo prazer de ler, aqui plasmado em cada linha, em cada metáfora inesperada, em cada imagem desconcertante ( o Dr. Iglesias, pai, maravilhoso, espanholíssimo!).
Magnífico,
imperdível, e o mais que se diga.
António
Araújo
Já
aqui falei das Memórias de João Eloy, primorosamente preparadas pelos
seus descendentes, Maria Madalena Eloy e Pedro Eloy.
Este livro é, por assim dizer, a
continuação do anterior, mantendo-se o seu óbvio e manifesto interesse
histórico.
Diante
de nós desfila a criminalidade lisboeta dos tempos da República, histórias de homicidas
e curandeiros, de pornografia, de prostituição infantil, da perseguição aos
homossexuais, então chamados «invertidos». E um capítulo fabuloso sobre a prática
da «empenhoca», ou seja, da cunha, matéria também versada, por exemplo, em Memórias
de um Chefe de Gabinete, de Tomás da Fonseca.
É tempo, é mais do que tempo, de diversos
investigadores se juntarem para fazer uma história do crime na Belle Époque
portuguesa, prosseguindo depois pelos anos 1920 e pelo Estado Novo adentro. Há
muita gente com trabalho feito, Maria João Vaz, Diego Palacios Cerezales,
Gonçalo Rocha Gonçalves, Luís Bigotte Chorão, Tiago Pires Marques, Leonor Sá, Paulo
Guinote, just to name a few. Só falta uma instituição universitária ou
um editor esclarecido para concretizar este projecto, que sem dúvida teria
enorme êxito junto do grande público.
Até lá, fiquemos com estes Ensaios
de João Eloy, imprescindíveis para reconstruir as luzes e as sombras das nossas
polícias, dos nossos ladrões e, no fundo, do que fomos e, em parte, em boa
parte, ainda somos.
António Araújo
O
que empolga na cadência deste romance é a estuante singeleza pontuada pela
multiplicidade de ritmos literários, engrena-se numa prosódia que nos faz
lembrar o que de melhor se escreveu no neorrealismo e na espiral da escrita
dominam marcações expressionistas e até uma poderosa metáfora em desacerto com
a cronologia da narrativa, pois aparece inaugurada a maior ponte suspensa da
Europa, ali no vale de Alcântara e a sair em Almada, e segue-se uma convulsão
que, bem vistas as coisas, é o anúncio de uma revolução com algumas analogias
com a que tivemos em abril de 1974. Este primeiro livro de Nuno Duarte, coroado
pelo Prémio Leya 2024, mais do que o despertar de um escritor é uma apoteose ao
fervor da leitura.
Tudo
se vai passar na década de 1960, os protagonistas nem chegam à categoria de
gente remediada. Victor Tirapicos teve dois anos na prisão porque roubou
havendo fome, saiu de um lugar de Sintra e veio para a Alcântara, para o Pátio
do Cabrinha, é acolhido por um tio sapateiro, alguém que faz as chuteiras do
Atlético Clube de Portugal, o Victor dar-se-á bem com o tio Artur e a tia Ema.
Ali no Pátio vive gente que tem nome, tal como a Cesaltina e a Cordália, o
Manuel Cheirinho, o Ângelo Barraquinho, o Rui Folha e dentre em breve uma
rapariga muda que trabalha na fábrica do chocolate Regina. Victor vem à procura
de trabalho, vai ser construída a ponte sobre o Tejo, os norte-americanos
estarão profundamente envolvidos, trarão 70 mil toneladas de aço e tecnologia
de ponta. Já estamos com a guerra colonial em Angola, far-se-á a ponte e nessa
altura haverá três frentes da guerra. Victor tem muito enlevo no seu irmão
Quim, tudo fará para que o mano chegue à universidade. As relações com o pai
ficaram estragadas, não perdoou ao filho aquele roubo de batatas.
Entra
em cena a menina dos chocolates Regina, chama-se Dália, é muda, comunica com o
que escreve numa pequena sebenta. O Victor trouxe a experiência de anos numa
serralharia da Abrunheira, será admitido nos trabalhos da ponte. A atração
Dália-Victor é rápida e pujante, circulamos por tudo quanto é Pátio do
Cabrinha, vai crescendo o clímax para os trabalhos da construção, e haverá
momentos em que Nuno Duarte nos consegue assombrar com a saga de tal
empreendimento, escrevendo coisas como esta:
“A
grandiosa obra entrou numa fase decisiva, todos os dias os cabos principais
eram esticados de margem a margem, desenrolados em bobinas com sem quilómetros
de fio de uma ancoragem à outra, aos quatro fios de cada vez, a roda a levá-los
para um lado e depois a voltar, a trazer outros quatro, como se fosse uma roca
de fiar gigante, e a deixá-los no local certo onde eram postos junto dos
restantes por operários como o Victor e como o Vicente e como o Ivo e como o
Tito, lá em cima no passadiço onde o João quase ficara sem mãos. Mais de
duzentos operários por turno, espalhados ao longo do cabo, ao longo da ponte
sem nome que se construía sobre o rio Tejo. Dois turnos por dia, dezasseis
horas a levar e a trazer fios que, todos juntos, formavam os cabos da ponte, em
pouco mais de três meses estavam os milhões de fios unidos, a máquina humana
que construía a ponte estava afinada como um instrumento de precisão, os muitos
homens que eram os seus componentes, operários, técnicos e engenheiros
funcionavam com a cadência de um metrónomo. E, lá em cima, o Victor mirava o
mundo.”
Há
taberna e há bêbedos, a PIDE anda atenta, irá buscar o Rui Folha. As obras da
ponte atraem meio mundo, os norte-americanos pagavam bem, naquele final de 1962
já ali trabalhavam 1500 homens, ficaremos embrenhados por este cenário em que o
estaleiro era um imenso labirinto de barracões e material, há cada vez mais
gente, há mesmo um Lenine e um João Pança, este é eletricista e veio de Niza,
viverá uma experiência que podia ter dado um acidente mortal, Victor é
analfabeto, mas vai encontrar quem lhe ensine as primeiras letras, o Ângelo
Barraquinho.
Não
faltam cenas canalhas, Tito Brandão, esteve na prisão com o Victor, procura
atrair este para uma roubalheira, Victor recusa, haverá na ponte um roubo de
monta, terá um enorme peso no desfecho do romance. Iremos ao campo do Atlético
vê-lo jogar com o Belenenses, entra um biltre em cena, chama-se Josué, é
sucateiro, saberemos mais tarde que é um monstro, aparecerá também no desfecho
do romance. De vez em quando aparece ali o almirante Américo Thomaz, o tal
Presidente da República corta-fitas, a obra cresce, o pai do Victor cada vez
mais doente, não perdoou ao filho, mesmo nas vascas da agonia. Victor e Dália
casam-se na conservatória, e começa a latejar forte na narrativa aquela guerra
colonial, aqueles barcos pejados de militares que partem e chegam. Há tragédias
na ponte, gente que morre, ninguém pode sobreviver daquelas quedas. A atmosfera
do país é aqui retratada a corpo inteiro no olhar desta gente que se organizou
como proletariado urbano naquele vale de Alcântara que começa a ter sumiço, a
ficar deformado pelos imensuráveis arruamentos que conduzem à ponte, que põem
fim aos negócios do tio Artur que tem cada vez menos meias solas para tirar.
A
tragédia familiar vai focar-se no Quim, aquele mano tão amado por Victor, não
continuou os estudos, partirá para a guerra, isto enquanto a ponte cresce. A
guerra é um sorvedoiro de gente, Nuno Duarte entremeia com mestria a espiral da
guerra inútil com todos os preparativos daquela ponte ter o nome de Salazar, há
de premeio chuvas diluvianas e o Quim lá anda pelo norte de Moçambique, não com
uma Mauser, mas com uma G3, é atirador especial, os habitantes do vale de
Alcantâra foram escorraçados à força das barracas onde viviam, vão
desaparecendo o Casal Ventoso e outros lugares que eram verdadeiros esgotos.
E
temos um final apocalítico, haverá um cataclismo na inauguração da ponte, em 6
de agosto de 1966. Tudo irá mudar em Portugal, é a mensagem radiosa,
seguramente metafórica de um regime que se colapsa e de Forças Armadas
triunfantes. E é a hora de deixar uma derradeira mensagem: “Para ter justiça,
não basta a esperança nem um partido que se utilize dela no nome, é preciso
vontade, pois esperança sem vontade é coisa nenhuma. É a vontade que fará
deste, talvez, um país melhor, mais justo, mais livre, mais próspero. Talvez um
dia Portugal seja isso tudo, um país enfim moderno, com pontes, mas sem pés de
barro. Haja esperança.”
Um
belíssimo romance, é inevitável acreditar que temos um grande escritor na
calha.
Mário Beja Santos
Esta
minha viagem pela Alemanha terminou por duas cidades situadas mesmo no Norte da
Alemanha: Wallsbüll, a 8 quilómetros da fronteira com a Dinamarca, e Niebüll, a
18 quilómetros.
Na
toponímia alemã, o sufixo büll refere-se a uma colina.
Em
Wallsbüll existe uma igreja de São Cristóvão, hoje dedicada ao culto luterano.
A
igreja foi construída no estilo românico no Século XII.
No
interior uma imagem em madeira de carvalho assente numa pequena consola, do
início do Século XVIII e representando o nosso Santo.
Também
uma pintura da artista polaca Anna Sobol, nascida em 1946, apresenta São
Cristóvão de forma original.
Em
Deezbüll, a igreja dos Apóstolos foi construída em estilo gótico no Século XIII.
O
elemento mais notável do interior, é um altar de abas do Século XV. Tem 16
imagens apresentando ao centro Cristo coroando Maria como Rainha do Paraíso. As
restantes são as dos doze apóstolos, São Quirino de Sescia, um santo da Croácia
cujo atributo é uma mó e o nosso São Cristóvão.
Na
predela, uma Última Ceia pintada em 1916 pelo pintor local Carl Ludwig Jessen
(1833-1917).
E
assim terminei esta minha digressão pelo Norte da Alemanha.
José
Liberato
https://www.publico.pt/2025/05/04/mundo/noticia/leonila-vazquez-19362025-padroeira-migrantes-2131179