quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Emocionante o talento deste contador de histórias da Alemanha em escombros, a reerguer-se.


 


 

O livro intitula-se A Hora dos Lobos, A Vida dos Alemães no Rescaldo do III Reich, Publicações Dom Quixote, 2023, o seu autor, Harald Jähner, é um consumado desenhador de águas-fortes, acaba de cair Berlim, chegou a hora dos alemães conhecerem as maiores privações e situações traumáticas, violações, assassinatos, roubos, fome; impõem-se estratégias de limpeza dos escombros, e no meio daquele cataclismo aparece um turismo, há quem ande por ali a fotografar, abrem-se caminhos, no meio de tanto desaire os vencidos procuram novas formas de mobilidade; dá-se uma migração avassaladora, há prisioneiros errantes, despatriados, libertam-se trabalhadores forçados, os alemães veem-se confrontados dentro de um mosaico de povos em que a raça ariana passou a ser um mito; e naquele descalabro, sobretudo os mais novos procuram divertir-se, ter lazeres, no meio de uma vida tão áspera, onde praticamente tudo falta; regressaram os militares vencidos, descobrem que as suas mulheres tiveram uma vida duríssima, descobriram uma outra dimensão da sua emancipação, haverá um caudal de divórcios, muita prostituição com os vencedores; o mercado negro irá prosperar, uma lógica das senhas de racionamento que põe gente rica, gente remediada e gente pobre no mesmo plano de igualdade, e vai acontecer algo de inédito, aquele mercado negro funcionará como uma escola de cidadania; aos poucos, os alemães não ser postos perante o grande desafio da recuperação, a reforma monetária em muito contribuiu; ainda não chegámos à guerra fria, os aliados ocidentais põem uma reeducação que apague o nazismo e molde a mente alemã para os valores democráticos; quem veio de Moscovo traz outros planos, vai germinar a formação de duas Alemanhas; esta é a saga da geração Carocha (Carocha era o termo usado para falar do modelo popular do Volkswagen). É esta a sumula da narrativa espantosa, escrita com imensa sensibilidade, uma lição para qualquer europeu sobre quanto custam estes horrores da guerra, agora que vivemos uma nas fronteiras da Europa, e profundamente destruidora.

A saga desta geração Carocha e dos dois estados alemães, como observa Harald Jänher no posfácio tem aspetos muito relevantes. “O facto de, apesar da recusa generalizada em lidar com o passado e apesar do regresso em massa das elites nacionais-socialistas aos seus altos cargos, ambos os estados alemães se terem conseguido purificar do nacional-socialismo é um milagre muito maior que o dito milagre económico.” E, mais adiante: “Um fator que contribuiu de forma crucial para o desfecho feliz da história do pós-guerra foi a força da retoma económica. Permitiu acomodar 12 milhões de expatriados, 10 milhões de soldados desmobilizados e, pelo menos, o mesmo número de desalojados em virtude dos bombardeamos em instalações provisórias algures, às quais seria prematura chamar pátria.” Os alemães, durante gerações, também tiveram que enfrentar a acusação de culpa coletiva. Durante décadas, o país evitou de forma sustentada ter de lidar com os milhões de assassinatos – até aos processos de Auschwitz, que duraram entre 1963 e 1968.  Ter de ver os filhos transformados em acusadores arrogantes, embora muitas vezes desesperados, foi uma das consequências tardias da repressão que os alemães exerceram sobre si mesmo, após 1945.

Este livro é comovente e emocionante, permitam-me que registe alguns parágrafos que considero esplendentes, elucidativos:

“As pessoas estavam constantemente de pé, na rua, à espera de saber notícias. Os correios não funcionavam, o telefone também não, por isso a comunicação tinha de ser feita de pé. No caos carregado de medo dos meses que se sucederam à guerra, as notícias eram um bem essencial à vida- Informações sobre vivos e desaparecidos, sobre onde arranjar o quê ou qualquer coisa que se quisesse saber estavam reservadas a quem se fizesse à estrada. A situação era incerta, as rotas de fornecimento haviam sido cortadas. Deixar mensagens sobre o paradeiro de alguém e dar um sinal de vida era, por isso, de importância elementar. As pessoas estavam famintas de pistas, de novidades, deambulavam de visita em visita para contar e para escutar. Até mesmo para arranjar artigos de primeira necessidade no mercado negro era necessário percorrer caminhos inconcebivelmente longos por várias partes da cidade.”

“O momento de regresso a casa era ansiado por muitos. Nas salas de estar, os homens que combatiam na frente foram substituídos por fotografias. As crianças eram instadas a olhar regularmente para as fotografias, para que mantivessem a ideia do pai, nem que fosse na imaginação. A fotografia do pai ocupava o seu lugar no aparador como se de um altar se tratasse. Ele estaria algures na Rússia ou no Egito; em casa, as mães procuravam a suposta localização no atlas e apontavam-na com um dedo para mostrar às crianças. Tão distante do dia a dia. tornou-se uma figura que prometia uma vida melhor, a qual chegaria com o fim da guerra. Com o regresso do marido, pressuponha-se o fim para a solidão, para a sobrecarga constante que era criar os filhos sempre sozinhas e em condições extremas.”

“A solidez estava fora de moda. Tudo tinha de ser fácil de arrumar e mudar de sítio. Até os candeeiros de pé com quebra-luzes cónicos obedeciam ao mandamento da flexibilidade; os quebra-luzes assentes em braços articulados de metal móveis permitiam adaptar constantemente a intensidade da iluminação. O ideal desta nova leveza devia-se em parta também à pura necessidade: nas exíguas condições provisórias, eram amiúde necessário mudar a disposição dos móveis e aconchegá-los. Já não havia espaço para o acarinhado estilo colossal, o que agora se vendia eram móveis que se pudessem dobrar e empilhar. Isto permitia acomodar quatro pessoas em três divisões e ainda transformar o quarto de dormir em escritório.

Este modo de viver descomplicado agradava a ricos e a pobres. As delicadas e dispendiosas estantes da Knoll International renunciaram totalmente aos apoios laterais, o que lhes conferia leveza. As escrivaninhas tinham pernas finas de aço, nas quais as gavetas pareciam flutuar. Um mundo de sumptuosidade e móveis pesados em carvalho como que se esfumara e as pessoas agora queriam respirar ar puro com uma estética despreocupada.”

“Qualquer região que fosse capturada pelos Aliados era subitamente dominada pela paz. Os soldados invasores mal poderiam crer no que viam: estes alemães, que pouco tempo antes haviam combatido com uma raiva cega, mesmo já tendo perdida toda e qualquer esperança de saírem vitoriosos, assim que capitulavam, revelavam ser os cordeirinhos mais mansos do rebanho. Parecia que o fanatismo se desprendia deles como uma pele.”

De leitura obrigatória, um sério aviso sobre o que é reconstruir uma sociedade a partir do caos. 


                                                                            Mário Beja Santos


quarta-feira, 30 de outubro de 2024

São Cristóvão pela Europa (281).

 

 

 

No Estado da Baixa Áustria, em Edlitz, a Igreja paroquial é dedicada a São Vito e é mais uma igreja fortificada da Região, tão assolada por invasões. Turcas e não só. Possui um mural representando São Cristóvão do início do Século XVI:

 



 

Iniciei o meu percurso no distrito de Baden por Oberwaltersdorf que tem um curioso monumento localizado perto da Igreja. Chama-se Europabrunnen, fonte da Europa, e foi inaugurado em 1997.

Reúne um bloco de pedra proveniente de cada um dos então membros da União Europeia. O português é originário de Viana do Alentejo.

 


A Igreja paroquial é dedicada a São Tiago Maior e possui um mural que se julga do Século XIV.




 Na capital do distrito, Baden, existe uma Igreja dedicada a São Cristóvão, consagrada em 1957.

No topo do portal de entrada um graffiti da autoria do pintor austríaco Sepp Zöchling (1914-1989) com o motivo de São Cristóvão.

No altar-mor, o nosso Santo assume uma posição central. Do Seu lado direito Santa Helena e Santo Urbano. Do Seu lado esquerdo, São Pio X e Santa Maria Goretti. Tratam-se de gravações sobre fundo dourado e mármore. São da autoria do artista austríaco de origem checa Franz Kaulfersch (1901-1995).

 


 

Estamos na Região onde decorreu um dos episódios mais controversos e misteriosos da História da Áustria do Século XIX: a morte do Príncipe herdeiro do Império Austro-Húngaro, Rudolfo.

Em Mayerling, Rudolfo, filho único do Imperador Francisco José e da Imperatriz Sissi, aparece morto num pavilhão de caça juntamente com Maria Vetsera em 30 de Janeiro de 1889. A descoberta gera uma enorme desorientação na Corte o que só contribuiu para as teorias da conspiração em volta do caso.

A tese hoje predominante é a de que se tratou de um pacto de suicídio entre os dois amantes, mas a instabilidade psicológica do Príncipe e as suas inclinações revolucionárias permitem outras teses, nomeadamente as ligadas à Razão de Estado.

 


 

                                        Fotografias de 3 de Agosto de 2024

                                                                            José Liberato




terça-feira, 29 de outubro de 2024

Carta de Bruxelas.

 

 

                                                                                                            O PREEC


 

Como se sabe, o Processo de Rápida Estupidificação Em Curso abarca o infantilismo generalizado e o vago sincretismo de deuses tradicionais e científicos. Além disso, sobra uma mistura de trágico e cómico na formalização das condições básicas de humanidade. Há o dinheiro, claro.

E – o assunto é a compaixão – há até a necessidade de deixar bem claro: «Não se requer experiência prévia». 


                                                                                        João Tiago Proença




 

 

 

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Água em Portugal? Só parte dela, era escusado um título enganador.

 



 

O livro intitula-se Água em Portugal, o seu autor é Rodrigo Proença de Oliveira, professor universitário e investigador. A sua área de interesse é a hidrologia e os recursos hídricos, o ensaio que escreve é sobre a gestão dos recursos hídricos em Portugal. O título da obra e o grafismo da capa com uma torneira doméstica ou, vamos lá, de equipamentos públicos, sugerem que o livro tem a ver com as características da água de abastecimento público. Não é isso que acontece, o autor adverte que “este ensaio analisa a gestão dos recursos hídricos em Portugal Continental”, num contexto em que “apesar de a disponibilidade per capita ser confortável, a irregularidade temporal e a assimetria espacial provocam situações de escassez”. Acresce que o autor define este seu trabalho como “ensaio para o grande público.”

O enfoque está, por conseguinte, na gestão dos recursos hídricos na perspetiva estrita da hidrologia, isto é, das quantidades e movimentação da água na terra nos seus diversos estados físico-químicos, na natureza e nas infraestruturas criadas pelo Homem para armazenamento, transporte e utilização agrícola, industrial e urbana.

Avisa-nos na introdução que a água tem características peculiares, é um recurso sujeito às leis da natureza, é igualmente um recurso económico, e clarifica que o uso da expressão gestão dos recursos hídricos procura distinguir da gestão dos serviços de águas, isto é, dos serviços de abastecimento de água para consumo humano e de saneamento das águas residuais. É de prever que a Fundação Francisco Manuel dos Santos venha a publicar outro ensaio intitulado Água em Portugal II. Ficamos depois a saber que a gestão dos recursos hídricos compreende todas as utilizações da água dentro e fora dos seus cursos, incluindo as necessidades dos ecossistemas. E o leitor recebe mais informação, esta gestão está associada à hidrologia (a ciência que estuda a distribuição, a movimentação e as propriedades físico-químicas da água nos diferentes compartimentos do sistema hidrológico natural), abrangendo também as infraestruturas hidráulicas, os instrumentos de governança e de gestão.

São caracterizados estes desafios da gestão, explanam-se conceitos como bacia hidrográfica, quais as que temos, quem as gere e entra-se numa explanação sobre o regime hidrológico de Portugal Continental, figuras e quadros não faltam; segue-se uma breve perspetiva histórica das infraestruturas e quadro legal institucional, como se fazem os aproveitamentos hidráulicos existentes, não se esquece de mencionar a Lei da Água (Lei nº58/2005) e a Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos (Lei nº54/2005), fazem parte da transposição para o Direito Nacional da Diretiva-Quadro da Água da União Europeia, até chegarmos aos convénios luso-espanhóis sobre águas internacionais. Para a porção de leitores que pretendam este esclarecimento parcelar das políticas da água, a narrativa é rigorosa, trabalho de escola não falta.

Subsistem, porém, sinuosidades da escrita. Diz-se que “Portugal não é um país pobre em recursos hídricos”, compara-se os valores de escoamento anual (?) em Portugal (7100 m3/ano/hab) com os da França, Itália, Espanha, Grécia e Reino Unido. No mesmo sentido acrescenta-se que “250 m3/ano/hab é considerado por muitos (?) como a referência a baixo da qual o país se torna vulnerável à escassez de água.” No parágrafo seguinte acrescenta “No entanto, vários fatores determinam uma acentuada simetria espacial da disponibilidade do recurso”… com o rio Tejo a dividir o território entre um Norte húmido e um Sul seco. O leitor fica esclarecido?

Somos depois sujeitos a um curso acelerado de hidrologia e assim se chega aos usos da água, e aqui, palavra de honra, se isto é um livro de divulgação estou mesmo néscio. Para que o leitor entenda que nada tenho contra este escrito a não ser o seu despropósito de não ser destinado ao grande público, cinjo-me ao uso industrial da água, escreve-se que é estimado o volume captado em Portugal Continental para fins industriais em 387hm3/ano. A maior parte deste volume de água (79%) é satisfeito a partir de origens superficiais. As RH com maiores volumes captados são as do Tejo, Sado e Mira e Vouga, Mondego e Lis. Em 2018, o volume acrescentado bruto (VAB) das indústrias transformadoras e extrativas foi de 24,4 mil milhões de euros, correspondendo este valor quase exclusivamente às primeiras, uma vez que o peso da indústria extrativa é inferior a 2%. É interessante verificar que o volume captado para usos industriais nem sempre acompanha o VAB de cada região. A RH5 – que inclui a Região Metropolitana de Lisboa, as zonas industriais do Arco Ribeirinho Sul e o polo industrial em torno da Volkswagen Autoeuropa – é a que apresenta maior VAB e maior uso de água…” Realça-se os consumos da agricultura, a produção de energia elétrica, como se processa a proteção de ecossistemas aquáticos e ribeirinhos. Questiona-se disponibilidades de água e balanço hídrico. Quanto aos desafios do futuro, recorre-se a uma linguagem tecnocrática muito útil para não sobressaltar ninguém:

“A resposta ao desequilíbrio entre disponibilidades e necessidades de água exige uma estratégia ativa, eficaz e integrada, que assegure simultaneamente o desenvolvimento social e económico do país e a proteção e valorização dos ecossistemas naturais.

Essa estratégia deverá consubstanciar-se numa política pública coerente e consistente que, idealmente, resulte de um consenso esclarecido e alargado a toda a sociedade, mas particularmente entre aqueles cuja atividade mais se relacione com a água. No seu papel regulador de diferentes interesses que são, naturalmente, em parte antagónicos, cabe ao Estado mover essa política, assumindo responsabilidades, reconhecendo direitos e distribuindo tarefas. Nesse sentido, é fundamental existir um sistema de governança capaz de assegurar uma utilização eficiente e sustentável dos recursos hídricos, o que exige um quadro legal e institucional adequado, infraestruturas operacionais, sistemas de monitorização, capacidade técnica e acesso a recursos financeiros.” Assim se sacode a água do capote para estar bem com gregos e troianos, não compete ao professor universitário meter as mãos na massa do alguidar, com generalidade, ambiguidades e lugares comuns não se motiva o leitor, porque isto da gestão dos recursos hídricos e da hidrologia não é assunto direto da cidadania, tenham paciência. 


                                                        Mário Beja Santos


A década prodigiosa.

 



        É um livro volumoso, de mais de 600 páginas, porque, no fundo, no fundo, constitui um três em um: (1) memórias de juventude, contadas com contenção e reserva (por exemplo, quanto à sexualidade); (2) retrato de uma década, com abundância de factos e números; (3) almanaque revivalista, cozinhado com os ingredientes certos para o paladar dos mais nostálgicos. E a primeira coisa a dizer é que o autor soube conjugar e entrelaçar muitíssimo bem estes três planos, o que, convenhamos, não era tarefa fácil.

          Há o risco de este livro ser tomado, ou ser tomado apenas, como uma colectânea de referências pretéritas (a situações, a bens de consumo) para alimentar o mercado da nostalgia, quando a intenção do autor, segundo creio, foi muito mais vasta do que isso (daí nem citar sequer as Cadernetas de Cromos de Nuno Markl).

Como há o risco de julgar que o autor pretendeu teorizar sobre uma década que qualifica de «prodigiosa», o que também não julgo ter sido o seu propósito (daí não ter mencionado uma brincadeira que escrevi em forma de livro, Da Direita à Esquerda. Cultura e sociedade em Portugal dos anos 80 à actualidade).

Três notas apenas:

- este é um retrato da primeira geração que viveu a chegada em força da sociedade de consumo a Portugal (as memórias de outros tempos falavam de bailaricos e festas da aldeia, esta prende-se muito mais, e não por acaso, com aquilo que gastávamos, comíamos, usávamos);

- em segundo lugar, este é um retrato da primeira década de democracia plena, ou quase (o Conselho da Revolução só foi extinto em 1982), sendo curioso observar como a democratização e o consumismo correram a par, lado a lado, em convívio íntimo – e explicam em larga medida as vitórias eleitorais de Cavaco;

- em terceiro lugar, por fim mas não por último, este livro revela, com copiosos exemplos, o ritmo alucinante como, em poucos anos de meados da década de 80, se alteraram radicalmente os nossos hábitos culturais e de consumo. Em três, quatro anos, passámos dos ténis Sanjo à Adidas, o que teve profundíssimas implicações sociais e culturais, mas também políticas, ou essencialmente políticas. De semelhante, só a queda do Muro em Berlim. E, de facto, o que em Portugal ocorreu nos anos 80 foi também a queda de um muro ou, se quisermos, o derrubar das últimas pedras de uma ditadura tingida de preto e branco. O juízo do autor relativamente à «década prodigiosa» será talvez complacente ou benévolo em excesso, exagerado até, e, claro, naturalmente ditado pelas circunstâncias próprias das suas origens, condição social e dos lugares onde cresceu. Mas que foi assim como ele conta, ai isso foi.

 

                                                                          António Araújo        


sábado, 26 de outubro de 2024

São Cristóvão pela Europa (280).

 

 

 

Inicio com este post a digressão pelo Estado de Niederösterreich (Baixa Áustria) que circunda a Área Metropolitana de Viena.

O primeiro distrito por que passei foi o de Wiener Neustadt.

A cidade que dá o nome ao distrito foi a capital imperial de Frederico III (1415-1493).

Já aqui contei a história da imagem desaparecida da Catedral em https://malomil.blogspot.com/2020/12/sao-cristovao-pela-europa-135.html

E não posso deixar de mencionar que aqui viveu a Imperatriz Leonor (1434-1467), mulher do Imperador, filha do Rei D. Duarte de Portugal. Em Wiener Neustadt morreu e foi sepultada. Na Abadia de Neukloster pode-se ver o seu túmulo da autoria de Niclas Van Leyden e ostentando as armas de Portugal.

 


Se o túmulo da Imperatriz Leonor não foi fácil de localizar, só consegui aceder ao do filho, o imperador Maximiliano I, graças à condescendência do oficial de dia da Academia Militar, instalada no que era o Palácio Imperial e a contígua catedral.

Como bónus, consegui ver o local esplendoroso onde a Imperatriz assistia à missa

 



No distrito, estive em três localidades: Bad Schönau, Kirschlag e Bromberg. 

Em Bad Schönau, a igreja fortificada de São Pedro e São Paulo tem um grande fresco exterior representando São Cristóvão do final do Século XIV. A igreja foi atacada pelos turcos em 1683 e pelos húngaros em 1708.

 

 

A Igreja de São João Baptista em Kirchschlag, cujo nome oficial é Kirchschlag in der Buckligen Welt, tem um mural no seu exterior. A igreja foi construída no Século XV em estilo gótico tardio.

A localidade é dominada pelas ruínas do seu castelo do Século XII. Na Strangerstrasse um mosaico na empena de um edifício.

 


  


Finalmente em Bromberg, a Igreja de Santo Lambert construída essencialmente no Século XV, é também uma igreja fortificada que servia também como elemento de defesa.

Tem um mural.

 


 

                                                Fotografias de 2 de Agosto de 2024

                                                                                    José Liberato




quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Scorsese em estado de graça e para quem qualquer rosto humano tem um direito sobre nós.




Tudo terá começado em 3 de março de 2016, em Nova Iorque, um jesuíta e teólogo, Padre Antonio Spadaro, encontrou-se com Martin Scorsese em sua casa para discutir Silêncio, filme que o realizador italo-americano dedicou à perseguição aos jesuítas no Japão, e a relação do cineasta com a fé. Este livro compendia um conjunto de conversas sobre as motivações do cineasta, ele é questionado sobre a fé e a graça que, mais ou menos subtilmente, emergem das suas obras. O mínimo que se pode dizer do todo desta obra é que ficamos com o retrato de uma das principais figuras contemporâneas da sétima arte, Conversas Sobre a Fé, Casa das Letras, 2024.

Nesse primeiro encontro de 2016, Scorsese fala da sua juventude, era acólito e por vezes ao sair para a rua no fim da missa perguntava a si próprio: “Como é possível que a vida continue como se nada tivesse acontecido? Porque é que o mundo não é abalado pelo corpo e pelo sangue de Cristo?” Questão que o realizador tratou no cinema em filmes como O Touro Enraivecido, A Última Tentação de Cristo e o Silêncio. Padre e realizador irão encontrar-se durante o período da pandemia, falarão de pessoas e livros que influenciaram o realizador que continua obcecado em filmar sobre Jesus.

Fala-se inicialmente de Silêncio, dos jesuítas perseguidos no Japão. Scorsese é assumidamente católico, inquieta-o a questão da graça, algo acontece ao longo da vida e comenta: “Não se consegue ver através da experiência de outra pessoa, apenas da nossa. Por isso, pode parecer paradoxal, mas relacionei-me com o romance de Shūsaku Endō.” Contará ao entrevistador o que pensa das fascinantes e intrigantes personagens do romance, padres que perderam a sua fé, padres que descobriram o rosto de Cristo. Questionado se a compaixão é instinto ou humor, responde que a chave é a negação de nós mesmos, ele dá-se como obcecado pelo espiritual. “Estou obcecado com a questão do que somos. E isso significa olhar para nós de perto, para o bom e para o mau. Será que podemos cultivar o bem para que, num momento futuro da evolução da humanidade, a violência possa, possivelmente, deixar de existir? Mas, neste momento, a violência está cá. É importante mostrar isso. Para que não se cometa o erro de pensar que a violência é algo que os outros fazem.” Reflete demoradamente sobre o tempo da pandemia, os livros que releu, os filmes que viu e fala do que ressoou em si a mensagem do Papa Francisco:

“Durante muitos anos, tentei compreender como Jesus vive no mundo que o rodeia e como a sua presença pode viver em mim e ser expressa por mim. Durante muito tempo cometi o erro de pensar que estava a exprimir Jesus quando, na verdade, estava a estragar as coisas – era uma questão de orgulho e de ego, de me deixar levar pelo papel de grande realizador de cinema e pelo poder de fazer arte. Lendo o texto do Papa Francisco, fiquei entusiasmado.” E fala do seu passado e da sua juventude, em Little Italy¸ Nova Iorque, zona de crime organizado, frequentou uma escola católica, conheceu o padre Francisco Príncipe, influenciou-o muito. “Ele representava uma forma de pensar e uma forma de lidar com a vida que era muito, muito diferente do mundo cruel, duro e julgador que me rodeava. Olhava para nós e dizia: ‘Não têm de viver assim’.” Era uma época de movimentos de direitos civis e o padre Príncipe dera-lhe uma abertura para o mundo, teve um efeito poderoso sobre Scorsese. Pensou que estava destinado a seguir a vida sacerdotal, cedo descobriu que estava a tentar esconder-se da vida e do medo, apercebeu-se que queria estar com os outros, e então apareceu a paixão pelo cinema.

Há um outro momento decisivo na sua vida quando, em 1964, viu o filme Evangelho Segundo Mateus, de Pasolini, o filme era para ele num planeta diferente, o rosto de Jesus aparecia nada que tinha visto antes. “Os outros filmes sobre Jesus que tinha sido feitos até essa altura eram muito, muito piedosos, e sempre que Jesus aparece é o centro das atenções em todos os sentidos. É destacado do resto da humanidade na sua maneira de falar, na sua maneira de se mover, na sua perfeição física e no enquadramento, na encenação, na encenação, na iluminação. Mantém uma longa tradição de representar Jesus na pintura de forma absolutamente idealizada. Mas o que Pasolini fez foi tornar Jesus um ser humano, uma pessoa, alguém que se pudesse conhecer e com quem se pudesse falar.”

Respondendo a comentários sobre os seus filmes lembra que A Última Tentação de Cristo toca em toda a iconografia da igreja. “Apercebi-me que tinha de ir mais longe na história de Jesus quando fiz este filme. Havia uma parte de mim que se sentia compelida a lidar com a iconografia – tinha de criar a crucificação, tinha de criar a ressurreição de Lázaro, tinha de criar o sermão da montanha, mas acho que essa não é realmente a história de Jesus.” E, mais adiante: “Jesus abraça toda a humanidade, e Jesus é realmente toda a humanidade. Mostra-nos a todos o caminho, a forma de viver, de lidar com a raiva, a vingança e a retribuição, com o amor, o perdão, a redenção e tudo o mais que existe em nós e entre nós.”

E conta-nos o que o acicatou a filmar Assassinos da Lua das Flores. “Por volta do início do século XX, os Osage descobriram petróleo na sua reserva. Rapidamente, tornaram-se o povo mais rico do mundo. Depois, como é óbvio, os brancos especuladores e vigaristas e oportunistas e ladrões e assassinos desceram. Sentiram o cheiro do dinheiro fácil. Houve um esforço concentrado para matar praticamente toda a comunidade Osage em troca do dinheiro do petróleo, por todos os meios imagináveis: tiroteios, atentados à bomba, a bebidas alcoólicas e envenenamento lento.” Confessa que procura compreender e aceitar a violência que existe em nós, procura aprender sobre a vida interior dos outros observando o seu comportamento exterior. Volta a falar sobre a hecatombe que caiu sobre os Osage: “O reinado de terror dos Osage foi uma questão de poder e ganância. Foi muito fácil para Bill Hale e todos os outros assassinos desumanizarem os Osage, mas estes homens e mulheres não foram assassinados por serem Osage, foram assassinados pelo seu dinheiro. No final, os assassinos não escaparam com nada a não ser dinheiro. Os Osage têm a sua cultura extraordinária, agora em processo de renascimento e reconstrução.

E Scorsese despede-se deixando um argumento para um possível filme sobre Jesus, belíssimo texto a coroar esta longa conversa sobre a fé, medos e inspirações, sempre presentes no cinema de um dos maiores realizadores do nosso tempo. 


                                                                        Mário Beja Santos



 

Obrigado.

 



terça-feira, 22 de outubro de 2024

São Cristóvão pela Europa (279).

 

 

 

Termino o circuito pelo Estado austríaco da Estíria em Anger e Strallegg.

A Igreja dos Catorze Santos Auxiliares de Anger é dedicada ao conjunto daqueles catorze santos, incluindo São Cristóvão, de que já tenho falado e que são muito celebrados no mundo germânico.

É uma igreja de peregrinação, presumivelmente edificada no início do Século XVI.

O portal oeste tem uma inscrição com a data de 1517.

No altar-mor uma pintura representa os catorze santos. O destaque é dado a Santo Egídio e a São Brás. São Cristóvão está representado ao alto.

Numa das paredes da Igreja, 14 óleos com as imagens individuais dos 14 Santos. O de São Cristóvão tem a data de 1743 e a assinatura de Philip Widenhof.

Há ainda um pendão usado nas procissões.

 




Na igreja de Strallegg, dedicada a São João Baptista, existe, num nicho exterior, um monumento funerário com um grande mural de São Cristóvão.

 



Finalmente, em todo o Estado de Burgenland, encontrei apenas uma imagem de São Cristóvão.

Foi em Zahling, a menos de 10 quilómetros da fronteira húngara.

A Igreja de São Lourenço tem mais de 700 anos de existência, tendo um sino com a data inscrita de 1404.

No exterior um mural do nosso Santo, bastante desvanecido.



                                                         Fotografias de 1 e 2 de Agosto de 2024.


                                                                                                    José Liberato


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Como me fiz um homem inteiro, feito de todos os homens e que vale por todos eles.

 


 

Antes de se tornar no Papa do existencialismo, em grande romancista e dramaturgo, teatrólogo brilhante, ativista de grandes causas, Jean-Paul Sartre foi criança, teve uma infância marcante, viveu num ambiente familiar tratado com desvelo e atribui àquela atmosfera de livros o gosto em tornar as palavras que leu na sua própria escrita. As Palavras, romance autobiográfico dado à estampa poucos meses antes de lhe ser atribuído o Prémio Nobel da Literatura, é esse estupendo exercício.

Escavando a memória, libertando recordações, vai dar-nos essencialmente o que foi a sua infância no meio dos livros, no recato do meio familiar e como a leitura lhe definiu o modo de escrever, na pessoa em que se transformou. Dirá mesmo que “comecei a minha vida como provavelmente a irei terminar: no meio dos livros”. E adianta: “No escritório do meu avô, havia-os por toda a parte; era proibido limpar-lhes o pó, exceto uma vez por ano. Ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas; direitas ou inclinadas, robustas como tijolos nas estantes da biblioteca ou nobremente espaçadas em áleas de menires, sentia que a prosperidade da família dependia delas. Tocava-lhes às escondidas para honrar as minhas mãos com a sua poeira, mas não sabia bem o que fazer delas e todos os dias assistia a cerimónias cujo sentido me escapava: o meu avô – normalmente tão desajeitado que a minha mãe lhe abotoava as luvas – manuseava esses objetos culturais com uma destreza de oficiante. Vi-o mil vezes levantar com um ar ausente, dar a volta à mesa, atravessar a divisão em duas passadas, pegar num volume sem hesitar, sem se dar tempo de o escolher, folheá-lo ao voltar para a poltrona, com um movimento combinado do polegar e do indicador.”

Muito se fala da Alsácia Lorena, o avô domina fluentemente o alemão e o francês. A biblioteca é volumosa, a vida social era fluente, como Sartre observa: “Frequentávamos pessoas ponderadas que falavam alto e com clareza, baseavam as suas certezas em princípios sãos, na sageza das nações, e não desdenhavam distinguir-se do comum apenas por um certo maneirismo da alma, ao qual eu estava perfeitamente habituado. As visitas despediam-se, eu ficava sozinho, evadia-me desse cemitério banal, ia juntar-me à vida, à loucura dos livros. Bastava-me abrir um para nele redescobrir esse pensamento inumano, inquieto, cujas pompas e trevas ultrapassavam o meu entendimento, que saltava de ideia em ideia, cem vezes por página, e eu deixava-o seguir, atordoado, perdido.”

Para gozar na plenitude As Palavras, de Jean-Paul Sartre, Livros do Brasil, 2024, é preciso aceitar este passeio na memória até uma biblioteca do início do século XX, dela extrair a formação de uma mentalidade, a descoberta de que foi nesta infusão de leituras que nasceu o prazer da escrita. O menino Sartre é puxado pela mãe e pelo avô, da leitura que hoje se designa por infato-juvenil, um autêntico mundo de aventuras, a estudar em casa é depois inscrito no liceu onde se descobre que era demasiado avançado para a sua idade. Vai olhando à volta os adultos da sua família, confessa que e o seu corpo formavam um estranho casal, é educado no catolicismo até que a fé, um dia, se esvaiu. Teve as suas doenças e foi mimado nas suas convalescenças. Deus o angustia, e Dele passa a descrer: “Se Deus me livrasse das aflições, eu teria sido uma obra-prima assinada; seguro da minha parte no concerto universal, teria aguardado pacientemente que Ele me revelasse os seus desígnios e a minha necessidade. Eu pressentia a religião, aguardava-a, era o remédio. Se me a tivessem recusado, eu próprio a teria inventado. Que não ma recusassem: educado na fé católica, apreendi que o Todo-Poderoso me criara para a Sua glória: era mais do que aquilo que eu ousaria sonhar.”

Educado nesta atmosfera de gente cumpridora dos preceitos culturais burgueses, vai-nos deixando registos esplendentes desta sociedade antes da Primeira Guerra Mundial. O teatro, por exemplo:

“Os burgueses do século passado nunca se esqueceram do seu primeiro serão no teatro e os seus escritores encarregaram-se de nos relatar as circunstâncias. Quando o pano subiu, as crianças julgaram-se na corte. Os ouros e as púrpuras, as luzes, as pinturas, a ênfase e os artifícios punham algo de sagrado até no crime; no palco, viram ressuscitar a nobreza que os seus avós haviam assassinado. Nos entreatos, a estratificação das galerias oferecia-lhes a imagem da sociedade; foram-lhes mostrados, nos camarotes, ombros nus e nobres vivos.“

Aprendeu a ler, sente-se um beneficiário do amor familiar, é nisto que, surdamente, o vai minando a epopeia da escrita. A segunda parte de As Palavras é em si própria a génese da sua aventura na escrita, ele vai descrevendo as sinuosidades em todas estas tentativas dos seus queridos juvenis, a mãe orgulhosa com estes primeiros escritos, o avô mais cético. Em retrospetiva, faz a sua confissão:

“Há alguns anos, fizeram-me notar as personagens das minhas peças e dos meus romances tomam as suas decisões bruscamente e em crise, que basta um instante, por exemplo, para que o Orestes das Moscas conclua a sua conversão. Sem dúvida: é que os faço à minha imagem; provavelmente, não tal como sou, mas tal como quis ser (…) À falta de me amar, fugi para a frente; resultado: amo-me ainda menos, essa inexorável progressão desqualifica-me incessantemente aos meus olhos; ontem, agi mal, visto que era ontem, e hoje pressinto o julgamento severo que farei incidir sobre mim amanhã.”

E dá-nos uma despedida que é a sua assumida condição humana posta em palavras:

“Durante muito tempo, considerei a pena como uma espada, agora conheço a nossa impotência. Não importa: faço, farei livros; é preciso que o faça; servem para alguma coisa, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, não justifica. Mas é um produto do homem: este projeta-se nela, reconhece-se nela; apenas esse espelho crítico lhe oferece a sua imagem (…) Lancei-me por inteiro à obra para me salvar por inteiro. Se arrumo a impossível Salvação no armazém, que resta? Um homem inteiro, feito de todos os homens que vale por todos eles, e por quem valem todos os outros.”

Um monumento autobiográfico no topo da grandeza da escrita. 


                                                                            Mário Beja Santos