O
livro intitula-se A Hora dos Lobos, A Vida dos Alemães no Rescaldo do
III Reich, Publicações Dom Quixote, 2023, o seu autor, Harald Jähner, é um
consumado desenhador de águas-fortes, acaba de cair Berlim, chegou a hora dos
alemães conhecerem as maiores privações e situações traumáticas, violações,
assassinatos, roubos, fome; impõem-se estratégias de limpeza dos escombros, e
no meio daquele cataclismo aparece um turismo, há quem ande por ali a
fotografar, abrem-se caminhos, no meio de tanto desaire os vencidos procuram
novas formas de mobilidade; dá-se uma migração avassaladora, há prisioneiros
errantes, despatriados, libertam-se trabalhadores forçados, os alemães veem-se
confrontados dentro de um mosaico de povos em que a raça ariana passou a ser um
mito; e naquele descalabro, sobretudo os mais novos procuram divertir-se, ter
lazeres, no meio de uma vida tão áspera, onde praticamente tudo falta;
regressaram os militares vencidos, descobrem que as suas mulheres tiveram uma
vida duríssima, descobriram uma outra dimensão da sua emancipação, haverá um
caudal de divórcios, muita prostituição com os vencedores; o mercado negro irá
prosperar, uma lógica das senhas de racionamento que põe gente rica, gente
remediada e gente pobre no mesmo plano de igualdade, e vai acontecer algo de
inédito, aquele mercado negro funcionará como uma escola de cidadania; aos
poucos, os alemães não ser postos perante o grande desafio da recuperação, a
reforma monetária em muito contribuiu; ainda não chegámos à guerra fria, os
aliados ocidentais põem uma reeducação que apague o nazismo e molde a mente
alemã para os valores democráticos; quem veio de Moscovo traz outros planos,
vai germinar a formação de duas Alemanhas; esta é a saga da geração Carocha
(Carocha era o termo usado para falar do modelo popular do Volkswagen). É esta
a sumula da narrativa espantosa, escrita com imensa sensibilidade, uma lição
para qualquer europeu sobre quanto custam estes horrores da guerra, agora que
vivemos uma nas fronteiras da Europa, e profundamente destruidora.
A
saga desta geração Carocha e dos dois estados alemães, como observa Harald
Jänher no posfácio tem aspetos muito relevantes. “O facto de, apesar da recusa
generalizada em lidar com o passado e apesar do regresso em massa das elites
nacionais-socialistas aos seus altos cargos, ambos os estados alemães se terem
conseguido purificar do nacional-socialismo é um milagre muito maior que o dito
milagre económico.” E, mais adiante: “Um fator que contribuiu de forma crucial
para o desfecho feliz da história do pós-guerra foi a força da retoma
económica. Permitiu acomodar 12 milhões de expatriados, 10 milhões de soldados
desmobilizados e, pelo menos, o mesmo número de desalojados em virtude dos
bombardeamos em instalações provisórias algures, às quais seria prematura
chamar pátria.” Os alemães, durante gerações, também tiveram que enfrentar a
acusação de culpa coletiva. Durante décadas, o país evitou de forma sustentada
ter de lidar com os milhões de assassinatos – até aos processos de Auschwitz,
que duraram entre 1963 e 1968. Ter de
ver os filhos transformados em acusadores arrogantes, embora muitas vezes
desesperados, foi uma das consequências tardias da repressão que os alemães
exerceram sobre si mesmo, após 1945.
Este
livro é comovente e emocionante, permitam-me que registe alguns parágrafos que
considero esplendentes, elucidativos:
“As
pessoas estavam constantemente de pé, na rua, à espera de saber notícias. Os
correios não funcionavam, o telefone também não, por isso a comunicação tinha
de ser feita de pé. No caos carregado de medo dos meses que se sucederam à
guerra, as notícias eram um bem essencial à vida- Informações sobre vivos e
desaparecidos, sobre onde arranjar o quê ou qualquer coisa que se quisesse
saber estavam reservadas a quem se fizesse à estrada. A situação era incerta,
as rotas de fornecimento haviam sido cortadas. Deixar mensagens sobre o
paradeiro de alguém e dar um sinal de vida era, por isso, de importância
elementar. As pessoas estavam famintas de pistas, de novidades, deambulavam de
visita em visita para contar e para escutar. Até mesmo para arranjar artigos de
primeira necessidade no mercado negro era necessário percorrer caminhos
inconcebivelmente longos por várias partes da cidade.”
“O
momento de regresso a casa era ansiado por muitos. Nas salas de estar, os
homens que combatiam na frente foram substituídos por fotografias. As crianças
eram instadas a olhar regularmente para as fotografias, para que mantivessem a
ideia do pai, nem que fosse na imaginação. A fotografia do pai ocupava o seu
lugar no aparador como se de um altar se tratasse. Ele estaria algures na
Rússia ou no Egito; em casa, as mães procuravam a suposta localização no atlas
e apontavam-na com um dedo para mostrar às crianças. Tão distante do dia a dia.
tornou-se uma figura que prometia uma vida melhor, a qual chegaria com o fim da
guerra. Com o regresso do marido, pressuponha-se o fim para a solidão, para a
sobrecarga constante que era criar os filhos sempre sozinhas e em condições
extremas.”
“A
solidez estava fora de moda. Tudo tinha de ser fácil de arrumar e mudar de
sítio. Até os candeeiros de pé com quebra-luzes cónicos obedeciam ao mandamento
da flexibilidade; os quebra-luzes assentes em braços articulados de metal
móveis permitiam adaptar constantemente a intensidade da iluminação. O ideal
desta nova leveza devia-se em parta também à pura necessidade: nas exíguas
condições provisórias, eram amiúde necessário mudar a disposição dos móveis e
aconchegá-los. Já não havia espaço para o acarinhado estilo colossal, o que
agora se vendia eram móveis que se pudessem dobrar e empilhar. Isto permitia
acomodar quatro pessoas em três divisões e ainda transformar o quarto de dormir
em escritório.
Este
modo de viver descomplicado agradava a ricos e a pobres. As delicadas e
dispendiosas estantes da Knoll International renunciaram totalmente aos apoios
laterais, o que lhes conferia leveza. As escrivaninhas tinham pernas finas de
aço, nas quais as gavetas pareciam flutuar. Um mundo de sumptuosidade e móveis
pesados em carvalho como que se esfumara e as pessoas agora queriam respirar ar
puro com uma estética despreocupada.”
“Qualquer
região que fosse capturada pelos Aliados era subitamente dominada pela paz. Os
soldados invasores mal poderiam crer no que viam: estes alemães, que pouco
tempo antes haviam combatido com uma raiva cega, mesmo já tendo perdida toda e
qualquer esperança de saírem vitoriosos, assim que capitulavam, revelavam ser
os cordeirinhos mais mansos do rebanho. Parecia que o fanatismo se desprendia
deles como uma pele.”
De leitura obrigatória, um sério aviso sobre o que é reconstruir uma sociedade a partir do caos.
Mário Beja Santos