Uma viagem nos passos de Hokusai, no The Guardian,
aqui
domingo, 30 de setembro de 2018
sábado, 29 de setembro de 2018
sexta-feira, 28 de setembro de 2018
O caso da arma roubada.
Fotografia de Gérard Castello Lopes
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Era no Verão
de 1980. Estava eu de oficial de dia no Regimento de Lanceiros de Lisboa. O
eufemismo “oficial de dia” traduzia a realidade da função: os oficiais
milicianos faziam, volta não volta, de “oficiais de noite”, enquanto os
oficiais de quadro iam para casa ou para o saudoso Elefante Branco, como o
comandante do Regimento, que chegava de manhã, ensonado, por vezes atrasado,
ainda à civil, com a barba por fazer, para receber o quartel na formatura, ritualmente, pela
continência do miúdo que ficara de noite fingindo que havia guerra e inimigos.
Certa noite houve um inimigo. Interior.
Tinha naquelas horas sob a minhas ordens uns tantos soldados, cabo e sargentos.
Um ou dois pelotões, não recordo. Entre os sargentos,
estava um rapaz açoriano, um Antero sem barbas, generoso e ingénuo, que tinha
feito a recruta comigo em Santarém. Era furriel miliciano e tocava guitarra. No
bar de sargentos, armou-se uma guitarrada. A mesa de bilhar serviu de assento
ao furriel, entusiasmado com a transformação da noite de serviço em noite de
alegria. Não era comigo, não era proibido. Dei as minhas indicações e fui
descansar até à hora da próxima ronda.
Só soube de manhã:
tinham roubado a pistola Walther de 9mm ao furriel açoriano. Para tocar mais à vontade,
o furriel tirara o cinturão com a Walther, pousando-o na mesa de bilhar. O caso
não era Tancos, mas, comparado com a bandalheira actual, parecia mais grave do
que Tancos. Inquérito. Entra a Polícia Judiciária Militar, que havia de servir
para alguma coisa. Fui ouvido, como outros, não porque estivesse no bar de
sargentos, mas porque era o oficial de dia e, naquela época, os responsáveis
militares ainda eram militares responsáveis.
Fui suspeito do roubo, não
sei se o principal suspeito. Só percebi depois de deslindado o caso. Chamado de
novo à PJM, apresentei-me ao oficial a cargo da investigação. Capitão ou major,
não me lembro, o tipo assentava
perfeitamente numa das categorias definitivas de Carlo Cipolla em As Leis
Fundamentais da Estupidez Humana. Com aquele ar inteligente e superior que
certos estúpidos carregam no semblante, explicou-me depois porque era eu
suspeito de peso.
Antes, esclareço
os factos: a arma tinha sido roubada por um soldado. Era drogado, precisava de
vender a arma para comprar o produto. Vendeu-a a um cigano, grupo que é mestre
insuperável no comércio marginal de que as sociedades precisam. O soldado não
foi suspeito inicial, porque era filho de um coronel do Exército. Eu fui
suspeito porque sou Cintra, portanto sobrinho do professor Luís Filipe Lindley
Cintra, portanto um perigoso esquerdista, portanto pela certa ladrão de armas
no bar de Sargentos do Regimento de Lanceiros numa noite de farra. Os ramos próximos
das árvores genealógicas desfolhavam explicações inexoráveis: a do sobrinho do
professor nada podia contra a do filho do coronel.
A explicação deu-ma o
oficial da PJM, qual Poirot chamando o descartado suspeito, apenas para lhe
revelar, com a candura do estúpido superior, o seu génio abdutivo. O soldado ladrão, filho do
coronel, safou-se rapidamente, no anonimato desta justiça subterrânea. O
inocente sobrinho do professor foi ilibado do roubo, mas não se safou do
castigo: em vez de pertencer ao quadro da Polícia Militar, como até ali, como
resultava da sua preparação militar, passei a dar recrutas no Regimento. Em vez
de uma Walther, teria ao meu dispor dezenas de G-3 dos soldados, mas isso que
lhes interessava? Vinguei-me como podem vingar-se os fracos, aspirante a
oficial miliciano fazendo de soldado Sveik: treinava ordem unida com os
recrutas na parada, horas a fio, mesmo em frente do edifício dos oficiais. Sei
colocar a voz e, ui!, como eu o fazia, qual barítono na Arena de Verona!
Incomodava-os profundamente enquanto eles bocejavam ou dormitavam sobre papéis
inúteis nos seus gabinetes, ao ponto de um dia um deles, falando em nome de
todos, envergonhado, me pedir para não fazer a ordem unida na parada, que era
onde ela se devia fazer. Continuei. Os recrutas juraram bandeira, que era coisa
de que eles e o seus parentes, vindos de Bragança ou de Vila Real de Santo António,
ainda se orgulhavam: jurar servir a Pátria.
A vida do Regimento seguiu sem mim
depois de Dezembro como se nada fosse. O aspirante Sveik acabou o curso de História
e foi procurar trabalho. O comandante continuou as suas noitadas no Elefante
Branco. O Poirot da PJM lá terá continuado no edifício do Restelo a descobrir,
com fina argúcia, inocentes entre os culpados e culpados entre os inocentes. O
oficial lateiro continuou a roubar na conta das batatas e dos miúdos de frango,
os oficiais do quadro nas suas secretárias ou montando em cavalos do Estado
para deleite pessoal, os sargentos, cabos e praças desenrascando-se nos
meandros daquela vida, que é o que fazem os sargentos, cabos e praças. Ou todos,
cada qual à sua maneira, consoante as tiras de pano que penduram nos ombros das
fardas.
Naquela magnífica
localização na Calçada da Ajuda, enorme, arborizada, o Regimento fechou, muitos
anos depois. Espera-se que o Estado o venda para algum “empreendimento”, que
será louvado em comunicados de imprensa e em locutórios televisivos. Pois, dirão,
as Forças Armadas não têm de se modernizar e ser úteis à sociedade? Os
parasitas com galões ao ombro que passaram pela minha vida de Janeiro a
Dezembro de 1980 repousarão já nalgum assento etéreo ou gozam, como se diz, a
merecida reforma. Eu cá vou.
Eduardo Cintra Torres
Caxias, 26 de Setembro de 2018
quinta-feira, 27 de setembro de 2018
Fábrica de sonhos.
Na
Biblioteca Nacional, os primeiros 25 anos da Agência Portuguesa de Revistas.
Mais
informações, aqui
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Suite 516.
Cena do filme 007 Ao Serviço de Sua Majestade, com José Afonso
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José Afonso, 65 anos no Hotel Palácio
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Não tinha reparado na reportagem deliciosa do Observador sobre José Afonso (aqui), o porteiro do Hotel Palácio, no
Estoril. Sessenta e cinco anos ali, ao serviço de suas majestades, os clientes. Figurante em Ao Serviço de Sua Majestade, James Bond, 007. Uma outra reportagem,
saída há pouco no El País (aqui, e antes, no Público, aqui),
fala de outro empregado do hotel. José Diogo Viei, um rapazito que há 50 anos entrou
no filme de Bond. Mais não tinha que fazer do que entregar a chave de um quarto
e dizer o número do aposento. Em brevíssimos segundos se imortalizou uma vida,
uma existência passada no Hotel Palácio, a dar chaves a clientes e a dizer o
número dos aposentos, suite 516. José Diogo entrou como assistente de recepção, é hoje,
cinco décadas passadas, subdirector de recepção. Ou seja, sempre à recepção,
cinquenta anos à recepção, uma vida inteira à recepção. É muito, é pouco? É
simplesmente maravilhoso.
quarta-feira, 26 de setembro de 2018
Alegrias do trabalho infantil.
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terça-feira, 25 de setembro de 2018
A Origem du Monde.
Enquanto
entre nós se debate o caso Mapllethorpe, em França decifra-se o enigma da Origem do Mundo. Uma demanda com 152
anos, agora concluída. Desvendou-se, enfim, ou talvez não, a identidade do
modelo do quadro de Courbet. Para os mais curiosos, ei-la.
Vidas singulares: Louise de Vilmorin (1902-1969).
Esta
super-tia francesa chama-se Louise Lévêque de Vilmorin, que nasceu e morreu num
belo castelo nos arredores de Paris. Não foi certamente pela sua dentição que
Louise ficou conhecida para a História. Repare-se, porém, no vibrar dos seus
olhos quando fala. E na afectação parisiense da voz, uma modulação perfeita. Há
ali, sem dúvida alguma, uma certa idée de
la France. Louise chegou a estar noive de Antoine de Saint-Exupéry, mas a
família da noiva opôs-se ao enlace com um homem que, apesar de pai de um
principezito, não tinha os pergaminhos dos Vilmorin. Vai dá, a rapariga casa-se-me
com um americano, e vai viver para Dallas, onde tem três filhos, desse
americano. Antes disso, tivera uma ligação amorosa com André Malraux, entre
outros – mas manda a discrição e o bom gosto que não lhe revelemos os nomes,
até porque está todos na Wikipedia. Além disto, que não é pouco, Louise foi
poetisa, escritora de contos mordazes
passados em meios aristocráticos. Quando a conheceu pela primeira vez, Malraux
disse-lhe, profeticamente: «Nous finirons nos viés ensemble». Voltaram a
relacionar-se em 1967. Depois de se demitir com a queda do gaullismo, Malraux
instala-se no castelo de Louise. Ela morre lá, em 1969. Ele passará aí os seus
últimos dias, ocorridos em Novembro do ano de 1976.
segunda-feira, 24 de setembro de 2018
Dúvida cruciante.
Tintoretto, Criação dos Animais, 1551-52
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Sobre o quadro de
Tintoretto «Criação dos Animais» já muito foi escrito. Com Deus Criador
suspenso nos céus, alado e em movimento, este óleo de 1551-52 encontra-se
actualmente exposto na Galeria da Academia, em Veneza. Inspira-se na tela de
Ticiano «Baco e Ariadne», que está na National Gallery, em Londres. Há quem
diga que as aves e os peixes se concentram no lado esquerdo da imagem e os
mamíferos no lado direito, o que só em parte é verdade (há um par de gansos no
canto superior direito). E está lá um unicórnio, todos o vêem.
Ticiano, Baco e Ariadne, 1522-23
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Olhando com
calma, quer-me parecer que uma cabeça de veado emerge do lado direito da tela,
quase imperceptível. Está lá um outro veado, é certo. Mas parece mesmo uma cabeça de veado , ali onde a
assinalo. Tentei saber mais, para confirmar ou infirmar esta impressão. Não
consegui. Apelo à ajuda de leitores mais bem informados do que eu, ou seja, de
quase todos os que acabam de passar os olhos por estas pungentes palavras.
domingo, 23 de setembro de 2018
Grécia revisitada.
O
Duarte Vera Jardim, amigo de várias décadas, dos bancos da escola, esteve na Grécia,
onde vai muito. E das muitas notícias que de lá trouxe, esta, sensacional: o
arquivo fotográfico do Museu Benaki, um luxo. Obrigado, Duarte!
sábado, 22 de setembro de 2018
À tona d'água.
Exercícios
como este, saído no New York Times, são certamente questionáveis. Ou talvez
não, fica ao pensamento de cada qual. Um filho que acompanhou a lenta
progressão do Alzheimer no espírito e no corpo do seu pai. Desde as primeiras
imagens, de um homem ensimesmado e de rosto fechado, até ao enterro das cinzas num parque natural
dos Estados Unidos. Num livro que dedicou à mulher, a escritora Iris Murdoch, o
marido falou também do avanço da doença, da forma como o mutismo e o silêncio
gélido invadiam tudo. Falou da estranha aparência dos doentes de Alzheimer, com
«rosto de leão», impassíveis e fechados sobre si mesmos. Cheney Orr, o miúdo
que fotografou tudo isto, tinha 21 anos quando soube que o pai, muito novo (62
anos), padecia dessa doença. Vê-se a sua caminhada, lenta mas
inexorável. E a perda cada vez maior de autonomia e de consciência,. Olhem os cuidadores, quase todos negros. E sobretudo a família, os
gestos de amor que não são tão frequentes ou patentes entre nós, povo mais
reservado e pouco dado a expor os sentimentos. David Orr morreu em Brooklyn,
com 69 anos. Para ele, que tinha nascido nos desertos do Arizona, um dos
maiores momentos de felicidade era, paradoxalmente, mergulhar nas ondas, e nadar,
nadar.
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