sexta-feira, 28 de setembro de 2018

O caso da arma roubada.

 
 
Fotografia de Gérard Castello Lopes
 
 
 
         Era no Verão de 1980. Estava eu de oficial de dia no Regimento de Lanceiros de Lisboa. O eufemismo “oficial de dia” traduzia a realidade da função: os oficiais milicianos faziam, volta não volta, de “oficiais de noite”, enquanto os oficiais de quadro iam para casa ou para o saudoso Elefante Branco, como o comandante do Regimento, que chegava de manhã, ensonado, por vezes atrasado, ainda à civil, com a barba por fazer, para receber o quartel na formatura, ritualmente, pela continência do miúdo que ficara de noite fingindo que havia guerra e inimigos.
         Certa noite houve um inimigo. Interior. Tinha naquelas horas sob a minhas ordens uns tantos soldados, cabo e sargentos. Um ou dois pelotões, não recordo. Entre os sargentos, estava um rapaz açoriano, um Antero sem barbas, generoso e ingénuo, que tinha feito a recruta comigo em Santarém. Era furriel miliciano e tocava guitarra. No bar de sargentos, armou-se uma guitarrada. A mesa de bilhar serviu de assento ao furriel, entusiasmado com a transformação da noite de serviço em noite de alegria. Não era comigo, não era proibido. Dei as minhas indicações e fui descansar até à hora da próxima ronda.
         Só soube de manhã: tinham roubado a pistola Walther de 9mm ao furriel açoriano. Para tocar mais à vontade, o furriel tirara o cinturão com a Walther, pousando-o na mesa de bilhar. O caso não era Tancos, mas, comparado com a bandalheira actual, parecia mais grave do que Tancos. Inquérito. Entra a Polícia Judiciária Militar, que havia de servir para alguma coisa. Fui ouvido, como outros, não porque estivesse no bar de sargentos, mas porque era o oficial de dia e, naquela época, os responsáveis militares ainda eram militares responsáveis.
         Fui suspeito do roubo, não sei se o principal suspeito. Só percebi depois de deslindado o caso. Chamado de novo à PJM, apresentei-me ao oficial a cargo da investigação. Capitão ou major, não me lembro, o tipo  assentava perfeitamente numa das categorias definitivas de Carlo Cipolla em As Leis Fundamentais da Estupidez Humana. Com aquele ar inteligente e superior que certos estúpidos carregam no semblante, explicou-me depois porque era eu suspeito de peso.
         Antes, esclareço os factos: a arma tinha sido roubada por um soldado. Era drogado, precisava de vender a arma para comprar o produto. Vendeu-a a um cigano, grupo que é mestre insuperável no comércio marginal de que as sociedades precisam. O soldado não foi suspeito inicial, porque era filho de um coronel do Exército. Eu fui suspeito porque sou Cintra, portanto sobrinho do professor Luís Filipe Lindley Cintra, portanto um perigoso esquerdista, portanto pela certa ladrão de armas no bar de Sargentos do Regimento de Lanceiros numa noite de farra. Os ramos próximos das árvores genealógicas desfolhavam explicações inexoráveis: a do sobrinho do professor nada podia contra a do filho do coronel. 
         A explicação deu-ma o oficial da PJM, qual Poirot chamando o descartado suspeito, apenas para lhe revelar, com a candura do estúpido superior, o seu génio abdutivo. O soldado ladrão, filho do coronel, safou-se rapidamente, no anonimato desta justiça subterrânea. O inocente sobrinho do professor foi ilibado do roubo, mas não se safou do castigo: em vez de pertencer ao quadro da Polícia Militar, como até ali, como resultava da sua preparação militar, passei a dar recrutas no Regimento. Em vez de uma Walther, teria ao meu dispor dezenas de G-3 dos soldados, mas isso que lhes interessava? Vinguei-me como podem vingar-se os fracos, aspirante a oficial miliciano fazendo de soldado Sveik: treinava ordem unida com os recrutas na parada, horas a fio, mesmo em frente do edifício dos oficiais. Sei colocar a voz e, ui!, como eu o fazia, qual barítono na Arena de Verona! Incomodava-os profundamente enquanto eles bocejavam ou dormitavam sobre papéis inúteis nos seus gabinetes, ao ponto de um dia um deles, falando em nome de todos, envergonhado, me pedir para não fazer a ordem unida na parada, que era onde ela se devia fazer. Continuei. Os recrutas juraram bandeira, que era coisa de que eles e o seus parentes, vindos de Bragança ou de Vila Real de Santo António, ainda se orgulhavam: jurar servir a Pátria.
         A vida do Regimento seguiu sem mim depois de Dezembro como se nada fosse. O aspirante Sveik acabou o curso de História e foi procurar trabalho. O comandante continuou as suas noitadas no Elefante Branco. O Poirot da PJM lá terá continuado no edifício do Restelo a descobrir, com fina argúcia, inocentes entre os culpados e culpados entre os inocentes. O oficial lateiro continuou a roubar na conta das batatas e dos miúdos de frango, os oficiais do quadro nas suas secretárias ou montando em cavalos do Estado para deleite pessoal, os sargentos, cabos e praças desenrascando-se nos meandros daquela vida, que é o que fazem os sargentos, cabos e praças. Ou todos, cada qual à sua maneira, consoante as tiras de pano que penduram nos ombros das fardas.
         Naquela magnífica localização na Calçada da Ajuda, enorme, arborizada, o Regimento fechou, muitos anos depois. Espera-se que o Estado o venda para algum “empreendimento”, que será louvado em comunicados de imprensa e em locutórios televisivos. Pois, dirão, as Forças Armadas não têm de se modernizar e ser úteis à sociedade? Os parasitas com galões ao ombro que passaram pela minha vida de Janeiro a Dezembro de 1980 repousarão já nalgum assento etéreo ou gozam, como se diz, a merecida reforma. Eu cá vou.
 
Eduardo Cintra Torres
Caxias, 26 de Setembro de 2018
 
 

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Fábrica de sonhos.

 
 



Na Biblioteca Nacional, os primeiros 25 anos da Agência Portuguesa de Revistas.
 
Mais informações, aqui



Suite 516.


 
Cena do filme 007 Ao Serviço de Sua Majestade, com José Afonso

José Afonso, 65 anos no Hotel Palácio
 
 
 
         Não tinha reparado na reportagem deliciosa do Observador sobre José Afonso (aqui), o porteiro do Hotel Palácio, no Estoril. Sessenta e cinco anos ali, ao serviço de suas majestades, os clientes. Figurante em Ao Serviço de Sua Majestade, James Bond, 007. Uma outra reportagem, saída há pouco no El País (aqui, e antes, no Público, aqui), fala de outro empregado do hotel. José Diogo Viei, um rapazito que há 50 anos entrou no filme de Bond. Mais não tinha que fazer do que entregar a chave de um quarto e dizer o número do aposento. Em brevíssimos segundos se imortalizou uma vida, uma existência passada no Hotel Palácio, a dar chaves a clientes e a dizer o número dos aposentos, suite 516. José Diogo entrou como assistente de recepção, é hoje, cinco décadas passadas, subdirector de recepção. Ou seja, sempre à recepção, cinquenta anos à recepção, uma vida inteira à recepção. É muito, é pouco? É simplesmente maravilhoso.
 
José Diogo em cena
 

 

terça-feira, 25 de setembro de 2018

A Origem du Monde.

 
 



Enquanto entre nós se debate o caso Mapllethorpe, em França decifra-se o enigma da Origem do Mundo. Uma demanda com 152 anos, agora concluída. Desvendou-se, enfim, ou talvez não, a identidade do modelo do quadro de Courbet. Para os mais curiosos, ei-la.

 


Vidas singulares: Louise de Vilmorin (1902-1969).

 
 

 
 
 
Esta super-tia francesa chama-se Louise Lévêque de Vilmorin, que nasceu e morreu num belo castelo nos arredores de Paris. Não foi certamente pela sua dentição que Louise ficou conhecida para a História. Repare-se, porém, no vibrar dos seus olhos quando fala. E na afectação parisiense da voz, uma modulação perfeita. Há ali, sem dúvida alguma, uma certa idée de la France. Louise chegou a estar noive de Antoine de Saint-Exupéry, mas a família da noiva opôs-se ao enlace com um homem que, apesar de pai de um principezito, não tinha os pergaminhos dos Vilmorin. Vai dá, a rapariga casa-se-me com um americano, e vai viver para Dallas, onde tem três filhos, desse americano. Antes disso, tivera uma ligação amorosa com André Malraux, entre outros – mas manda a discrição e o bom gosto que não lhe revelemos os nomes, até porque está todos na Wikipedia. Além disto, que não é pouco, Louise foi poetisa,  escritora de contos mordazes passados em meios aristocráticos. Quando a conheceu pela primeira vez, Malraux disse-lhe, profeticamente: «Nous finirons nos viés ensemble». Voltaram a relacionar-se em 1967. Depois de se demitir com a queda do gaullismo, Malraux instala-se no castelo de Louise. Ela morre lá, em 1969. Ele passará aí os seus últimos dias, ocorridos em Novembro do ano de 1976.  



 

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Natália, em Setúbal.

 
 

Dúvida cruciante.

 
 
Tintoretto, Criação dos Animais, 1551-52

 
         Sobre o quadro de Tintoretto «Criação dos Animais» já muito foi escrito. Com Deus Criador suspenso nos céus, alado e em movimento, este óleo de 1551-52 encontra-se actualmente exposto na Galeria da Academia, em Veneza. Inspira-se na tela de Ticiano «Baco e Ariadne», que está na National Gallery, em Londres. Há quem diga que as aves e os peixes se concentram no lado esquerdo da imagem e os mamíferos no lado direito, o que só em parte é verdade (há um par de gansos no canto superior direito). E está lá um unicórnio, todos o vêem.
 
Ticiano, Baco e Ariadne, 1522-23
 

 
 
      Olhando com calma, quer-me parecer que uma cabeça de veado emerge do lado direito da tela, quase imperceptível. Está lá um outro veado, é certo. Mas parece mesmo uma cabeça de veado , ali onde a assinalo. Tentei saber mais, para confirmar ou infirmar esta impressão. Não consegui. Apelo à ajuda de leitores mais bem informados do que eu, ou seja, de quase todos os que acabam de passar os olhos por estas pungentes palavras.
 
 

domingo, 23 de setembro de 2018

Grécia revisitada.

 
 














O Duarte Vera Jardim, amigo de várias décadas, dos bancos da escola, esteve na Grécia, onde vai muito. E das muitas notícias que de lá trouxe, esta, sensacional: o arquivo fotográfico do Museu Benaki, um luxo. Obrigado, Duarte!
 

sábado, 22 de setembro de 2018

Lisboa na mira do overtourism (ou a galinha dos ovos d'oiro).

 
 
 




Lisboa, ameaçada pelo overtourism? A pergunta do Telegraph, aqui
 





 

À tona d'água.

 























Exercícios como este, saído no New York Times, são certamente questionáveis. Ou talvez não, fica ao pensamento de cada qual. Um filho que acompanhou a lenta progressão do Alzheimer no espírito e no corpo do seu pai. Desde as primeiras imagens, de um homem ensimesmado e de rosto fechado, até ao enterro das cinzas num parque natural dos Estados Unidos. Num livro que dedicou à mulher, a escritora Iris Murdoch, o marido falou também do avanço da doença, da forma como o mutismo e o silêncio gélido invadiam tudo. Falou da estranha aparência dos doentes de Alzheimer, com «rosto de leão», impassíveis e fechados sobre si mesmos. Cheney Orr, o miúdo que fotografou tudo isto, tinha 21 anos quando soube que o pai, muito novo (62 anos), padecia dessa doença. Vê-se a sua caminhada, lenta mas inexorável. E a perda cada vez maior de autonomia e de consciência,. Olhem os cuidadores, quase todos negros. E sobretudo a família, os gestos de amor que não são tão frequentes ou patentes entre nós, povo mais reservado e pouco dado a expor os sentimentos. David Orr morreu em Brooklyn, com 69 anos. Para ele, que tinha nascido nos desertos do Arizona, um dos maiores momentos de felicidade era, paradoxalmente, mergulhar nas ondas, e nadar, nadar.