Fotografia de Louise Dahl-Wolfe
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segunda-feira, 25 de julho de 2016
domingo, 24 de julho de 2016
Os Vampiros: um luxo de BD sobre a guerra na Guiné.
Os vampiros nunca
saíram de moda, antes de serem personificados pelo conde Drácula já faziam
parte de diferentes mitologias do mal onde pululam hidras, górgonas, lobisomens
e figuras fantasmáticas do mundo das trevas. A sua presença na
contemporaneidade, com expressão na literatura e no cinema, decorrem
naturalmente da atracção pelas situações-limite entre o homem e a fera, o belo
demoníaco, o sugador que depreda até à queda final. Há, evidentemente, outras
dimensões que se podem explorar na procura de uma explicação sobre a moda dos
vampiros: há quem diga que esta sociedade competitiva, sem escrúpulos, de
triunfadores e predadores excita o imaginário dos vampiros. E o vampiro como
homem condenado é a maldade sem perdão.
Os Vampiros, Tinta-da-china,
2016, é um acontecimento de BD pelo nome do argumentista e do desenhador.
Filipe Melo é polifacetado, na música e na BD, Juan Cavia é director de arte
para cinema e publicidade, é nome sonante do audiovisual. Meteram ombros a um
projecto temerário: guerra da Guiné, uma estranha patrulha dentro do Senegal,
uma viagem com monstros (na consciência e à solta), uma missão aparentemente
formal é dada a um grupo de homens. Metem-se à mata, a viagem marcha de
assombro em assombro, o terror é imparável, até ao deslindamento final.
O álbum abre com uma
citação do padre António Vieira, vem mesmo a propósito: “É a guerra aquele
monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come
e consome, tanto menos se farta”. Quem viaja a caminho daquela missão leva
imensas dores, estamos em Dezembro de 1972, os militares da missão saem de uma
LDP, encontram-se com outros militares que saem do helicóptero, sabemos que o
manda-chuva é o sargento Emanuel Ferreira dos Santos, é um grupo pequeno e tem
um guia africano. Em pleno mato sabemos que a missão é atravessar a fronteira
para o Senegal e fazer um reconhecimento, confirmar aonde é que fica uma base
do PAIGC junto à fronteira, enviar as coordenadas por rádio e voltar ao ponto
de recolha. Internam-se mato adentro. Surgem as primeiras imagens de
atrocidades, há miragens que o leitor ainda não está em condições de
descodificar, um atirador furtivo faz a primeira baixa na patrulha, é depois
liquidado, reacendem-se imagens de barbárie (corte de orelha); as tropas fazem
um alto, há trocas de confidências, alguém se refere ao sargento como o maior
carniceiro da Guiné, há pesadelos, e recomeça a viagem, o soldado de nome
Totobola gaba-se da sorte que tem tido, pisa uma mina, temos a segunda vítima,
os ânimos aquecem, o sargento Santos manda prosseguir, aparece uma nativa com
um filho, repete-se a violência, mãe e filho são abatidos, os militares começam
a descontrolar-se e a apontar as armas uns aos outros, há quem tenha pesadelos
num períodos de descanso, a marcha prossegue debaixo de chuva diluviana, a
patrulha dá com o corpo do guia Sanhá mutilado a face com uma expressão de
horror total, os olhos ensanguentados.
Estamos agora no
segundo capítulo, a citação é tirado do livro Moby Dick de Herman Melville: “A
loucura humana é a coisa mais matreira e felina que existe. Quando pensamos que
desapareceu, pode apenas ter-se transfigurado numa forma ainda mais subtil”. A
patrulha aproxima-se da base rebelde, depara-se-lhes uma autêntica carnificina.
Atónitos com este banho de sangue, procuram vivos, na escuridão sobressaem
olhos sanguinolentos, aparece alguém aterrorizado, é abatido, um dos elementos
da patrulha aparece ferido e delirante, o contingente militar percebe que estão
cercados por um inimigo invisível, barricam-se nas instalações. Mais pesquisas
e encontra-se um outro elemento que teria pertencido ao grupo abatido,
encontrara um esconderijo, mais cenas de violência, novamente há camaradas a
apontar armas aos seus camaradas. O sobrevivente, que não fala português,
consegue uma ligação rádio, o comandante da patrulha dá as coordenadas. A
espera continua, o rádio emudecido.
Temos agora o terceiro
e último capítulo, Zeca Afonso é a citação com os seus Vampiros: “No céu
cinzento, sob o astro mudo,/batendo as asas, pela noite calada,/vêm em bandos,
com pés de veludo,/chupar o sangue fresco da manada./Eles comem tudo, eles
comem tudo,/eles comem tudo e não deixam nada”. Há, durante esta longa espera,
diálogos confusos, cortaram a luz do exterior, a força sitiada abre a porta,
chegou um jipe com gente armada, tudo vai correr mal. O sargento Santos
desabafa acerca da família que o espera: “O homem de quem elas estão à espera
já não existe. Morreu pouco depois de chegar à Guiné”. Amanhece, vem um avião e
bombardeia a posição com Napalm. A força militar está praticamente extinta, e
aparece um jipe, e no uso da metáfora os autores dão-nos conta de quem
sobrevive fica sujeita à condição de vampiro.
Nada ao nível das artes
da banda desenhada tinha acontecido entre nós com um traço tão plausível, um
estudo tão apurado do mundo tropical, do horror da guerra, dos transportes
militares, do caminhar dentro da mata, podendo-se discutir se os ambientes de
floresta podem ser totalmente identificados com as lalas e matas guineenses. Há
o jargão intenso da caserna, a despeito de alguém dizer “tudo bem”, expressão
que ninguém usava naqueles tempos. A arte, convém esclarecer os mais céticos e
exigentes no tratamento do que foi aquela guerra, tem liberdades, metáforas e
bizarrias que não devem ser encaradas como ofensas a quem combateu. Ninguém
imagina um grupo tão pequeno a fazer aquela incursão no Senegal; não se pode
fazer uma leitura literal daqueles vampiros e aos exageros da barbárie. Tomando
como referência as citações dos três capítulos, a guerra foi aquele monstro que
quanto mais comia menos se fartava, põe todos os homens contra todos os homens,
e em que a loucura se transfigura porque há patrulhas, flagelações, inimigos
imprevisíveis, minas, muitas minas, é um terreno de eleição para que o homem se
sinta moldado no papel de sugador, de besta insaciável. A propósito de uma
história que nesta banda desenhada ocorre em Dezembro de 1972, no Norte da
Guiné, até parece ajustado lembrar aquele coronel do filme Apocalypse Now que
vive empolgado com o horror e no horror é justiçado por ter quebrado todas as
normas por que se rege a instituição militar.
“Os Vampiros”, de
Filipe Melo e Juan Cavia são um marco miliário na BD portuguesa. Aquela guerra
da Guiné atingira a monstruosidade de que quanto mais consumia tanto menos se
fartava.
Mário Beja
Santos
sábado, 23 de julho de 2016
Amália e Frank Sinatra, entre outras reminiscências.
Como de costume, fui passar as férias
de Natal a Portugal, normalmente com um mês de duração, férias que ocupava
geralmente a fazer pesquisas literárias em bibliotecas e arquivos portugueses,
a ler e a escrever.
Conhecendo já bem a Amália Rodrigues,
em virtude dos nossos frequentes encontros em casa do Dr. Adriano Seabra Veiga,
primo direito do marido da Amália, o Eng. César Seabra, o Dr. Veiga e a esposa dele, a Dona Rita, pediram-me que
levasse um pequeno presente à Amália.
Chegado a Portugal e alojado no meu
condomínio do Estoril, telefonei para casa da Amália a perguntar quando podia
passar por lá para a cumprimentar e para lhe entregar o presente de Natal
mandado pelo primo do marido e pela D. Rita. Como a Amália só se levantava
normalmente cerca da uma ou duas da tarde (as noites eram passadas, com
frequência, em tertúlias intermináveis com os amigos que quisessem aparecer lá
por casa), foi-me dito que podia ir por volta das duas da tarde.
Quando cheguei, fui recebido pelo
César, o qual me disse que a Amália ainda se encontrava no quarto, mas que já
se tinha levantado. Que me sentasse e esperasse um momento, que a Amália já
vinha. Passados uns instantes, apareceu a Amália, ainda vestida de robe caseiro.
Como ela ainda não tinha tomado o pequeno-almoço, pediu-me que me sentasse à
mesa com ela, para irmos conversando enquanto ela comia alguma coisa, por sinal
uma refeição muito leve, que fazia de pequeno-almoço e de almoço. Como o César
já tinha almoçado e eu também, fomos conversando todos enquanto a Amália comia.
Aqui um breve aparte, antes de voltar
ao fio da história. Trocados os cumprimentos, a primeira coisa que a Amália me
disse foi que não reparasse na modéstia da casa: que era uma casa de gente
simples, que de forma alguma se podia comparar com as casas dos nouveaux riches (sic). Ao que o César replicou,
em tom meio jocoso: −Ó Amália, deixa-te lá dessa falsa modéstia, que o Dr.
Cirurgião já pôde observar as belas telhas da parte de fora da casa e os ricos
azulejos das escadas e o teu retrato ao cimo das escadas e alguns dos quadros e
dos tapetes e até algumas peças de mobília, para já não falar do teu famoso
presépio.
Ao desembrulhar o presente de Natal, a
Amália notou que se tratava de umas fitas magnéticas com algumas das gravações
das homenagens feitas nos canais de televisão americana em honra de Frank
Sinatra, para comemorar os seus oitenta anos de vida. Acabaram-se abruptamente
as meias conversas sobre mil e uma coisas, qual delas a mais inconsequente. A
partir desse momento, a Amália só estava interessada numa coisa: saber de mim,
presumível testemunha ocular e auricular dessas homenagens, a maneira como os
americanos tinham celebrado os oitenta anos do lendário e mítico cantor e actor
americano. A Amália queria saber tudo e mais alguma coisa. Eu, na minha
proverbial ingenuidade, não compreendia a razão de ser desse interesse
desmedido e obsessivo, por parte da Amália, nas ditas comemorações. Mas, pouco
a pouco, através dos anos, lá fui compreendendo que a Amália, que em nada tinha
por que se sentir inferior ao “Chairman of the Board” ou o “Blue Eyes”, no
mundo da música, e no do cinema, na realidade estava a imaginar como desejava
ser festejada em Portugal em idênticas efemérides.
E foi nesse momento que me dei conta
pela primeira vez da fome insaciável que a Amália tinha de ser reconhecida como
a maior cantora de Portugal de todos os tempos, que aliás o era, na opinião de
muito boa gente, exigindo do grande público português e do governo esse
reconhecimento. Ela que já tinha sido várias vezes homenageada, ao mais alto
nível, tanto em Portugal como no estrangeiro; ela que já tinha recebido
condecorações tanto do governo português como de vários governos estrangeiros,
entre os quais sobressaía o francês; ela, que já tinha recebido testemunhos
públicos tanto de entidades privadas portuguesas como estrangeiras; ela achava
que tudo isso era pouco para a rainha do fado.
A carência que a Amália tinha de ser
amada e admirada! As repetidas e amargas queixas que ela me fazia da ingratidão
dos homens e do mundo!
Continuando
a digressionar, não posso esquecer o dia em que, por ocasião de um jantar em
casa do Dr. Seabra Veiga, no momento em que estávamos a levantar-nos da mesa
para irmos para a sala de estar, a Amália me depositou nas mãos uma revista
francesa, recém-publicada, pedindo-me que lesse um longo artigo que aí vinha
sobre ela. Com a revista na mão, apressei-me a dizer que oportunamente leria o
artigo com o maior prazer, ao mesmo tempo que me encaminhava para a sala de
estar, onde já nos esperavam o Dr. Veiga e a D. Rita e a D. Lili, secretária
dedicadíssima e fiel companheira da Amália. Qual quê. Que fizesse o favor de
ler o artigo nesse preciso momento. E que lho lesse em voz alta. E eu li o
artigo e li-o em voz alta, naquele “preciso momento”, como me fora pedido. E,
enquanto lia, pude reparar, pelo cantinho maroto do olho direito, no
embevecimento da Amália no decorrer dessa leitura. É que o artigo era cem por
cento elogioso e positivo, pondo a Amália nos píncaros da lua. Lembro-me que
nesse artigo se dizia que a Amália Rodrigues e a Maria Callas eram as duas
maiores cantoras do século XX e que Portugal era o país dos três efes: de
Fátima, do Futebol e do Fado. E foi nessa precisa ocasião que a Amália me disse
pela primeira vez uma coisa que eu lhe ouviria repetir vezes sem conta através
dos anos: que os dois portugueses mais conhecidos no mundo contemporâneo eram o
Eusébio e a Amália. E nesse aspecto tinha a Amália toda a razão, como eu pude
constatar, não só como português da diáspora a viver nos Estados Unidos, mas
como cavaleiro andante por esse mundo fora (viajar foi sempre um dos meus
vícios, tomando à letra o velho dito dos fenícios, evocado por Fernando Pessoa
e celebrado em música por Maria Bethânia: “viver não é preciso: navegar é
preciso”).
Foi
outrossim nessa ocasião que ela me confessou, pela primeira vez (facto que me
viria a repetir também vezes sem conta), da mágoa que sentira – e que
continuava a sentir, e continuaria a sentir, enquanto vivesse – ao ser acusada
de fascista, logo após o 25 de Abril de 1974. Que jamais fora fascista; que era
portuguesa, de alma e coração, e que cantara sempre e continuaria a cantar para
quem quisesse ouvi-la, desde os presidentes da República às pessoas mais
simples do povo, e independentemente das cores políticas de cada um. Que fora
por causa dessas acusações infundadas e injustas que ela recusara e viria a
recusar terminantemente emprestar a sua voz às festas anuais do Avante!, apesar
da insistência com que esse pedido lhe era feito todos os anos, por intermédio
das pessoas mais influentes. Que lhe tinham despudoradamente vestido a casaca
de fascista e que depois a queriam ver a abrilhantar os palcos dessa cambada de
oportunistas sem escrúpulos? Que ela tinha a sua dignidade e que essa dignidade
tinha ela a obrigação de defendê-la durante a vida inteira.
A esmo, vou atirar para o papel, ou
melhor, para o ventre do computador, com mais alguns episódios referentes ao meu
convívio com a Amália, na esperança de que eles possam vir a dar uma pequenina
contribuição para um melhor conhecimento de uma das jóias mais brilhantes do
brasão de Portugal (desconfio que alguns deles já se encontram registados
algures, mas, na incerteza, vou pelo princípio que diz que, em casos destes, é melius abundare quam defficere, adágio
que poderíamos traduzir aproximadamente assim: é melhor pecar por excesso que
por defeito).
No final de um dos almoços que tive com
a Amália em casa do Dr. Veiga, em Waterbury, dirigi-me ao consultório médico
dele. A primeira coisa que fiz foi pedir à Diana, uma das enfermeiras e a
recepcionista, que adivinhasse com quem eu tinha almoçado nesse dia. Sem
qualquer hesitação, ouço dos lábios da Diana estas palavras mais ou menos
textuais: “Professor, não me diga que também é um dos escravos da Amália.”
Perante essas palavras, não pude deixar de reflectir, mais tarde, que, como em
muitas outras coisas, era preciso o necessário distanciamento, a fim de poder
compreender o verdadeiro sentido de determinados comportamentos. A Diana, na
sua qualidade de recepcionista e enfermeira, e, sobretudo, de americana genuína,
nada e criada na democrática América, a trabalhar há vários anos no consultório
do Dr. Veiga, já tinha observado mais que o suficiente para poder concluir,
muito acertadamente, que, a julgar pela subserviência demonstrada para com a
Amália pelos seus acompanhantes, a começar pela Dona Lili, espécie de
secretária, governanta e companheira, e a acabar pelos pacientes e enfermeiras
de origem portuguesa do Dr. Veiga, todos se comportavam como se fossem escravos
da Amália. E a Amália, por sua vez, nada fazia para desencorajar esse
comportamento. Antes pelo contrário. Mas, diga-se de passagem, essa atitude
tinha a mais lógica das explicações. Ao fim e ao cabo, tratava-se de hábitos
ancestrais, sancionados pelas leis da tribo.
Para comprovar coisas desta natureza
não há como referir casos concretos. Como era meu costume - e continuou sendo
-, normalmente, quando era convidado para almoçar ou jantar em casa dos Veigas,
levava um ramo de flores para a D. Rita. Pois bem: sabendo que a Amália estava
hospedada em casa deles, em vez de um ramo de flores, levava dois. E que
aconteceu das duas primeiras vezes? Eu a entrar a porta com os dois ramos de
flores e a Amália a apoderar-se de ambos, com enorme sofreguidão, como se só
ela tivesse direito a ramos de flores. De maneira que, perante essa experiência, a partir da segunda visita eu
fazia questão de dizer muito claramente que um dos ramos de flores era para a
Amália e o outro era para a D. Rita. Acentuo, a propósito, que a Amália
aproveitava a ocasião para me dizer que sempre adorara flores, e,
particularmente, as flores silvestres. Que algumas das horas mais agradáveis da
sua vida eram aquelas que ela passava no seio dos campos, extasiando-se a
contemplar a beleza das flores e a inalar o seu perfume inebriante.
Não foi preciso deixar passar muito
tempo, logo após os primeiros encontros, para me dar conta de que a Amália
gostava de falar comigo. Entretanto, sabendo do meu estatuto de professor
universitário, começava quase sempre por repetir, no início das nossas
conversas, que ela apenas tinha feito uma simples quarta classe, não era
ninguém para poder dialogar com um professor universitário. Que eu devia
desculpar o seu atrevimento. Mas que ela tinha uma grande curiosidade
intelectual e que sempre gostara de falar com pessoas cultas. E que os assuntos
de que mais gostava de conversar eram a filosofia e a poesia. E como eu lhe
observasse, em abono da verdade, sem a mínima aparência de lisonja, quando ela
tomava essa atitude de inferioridade intelectual, que conhecia muitas pessoas
com títulos universitários que mal acompanhavam uma conversa de carácter mais
elevado, no campo da cultura geral, fenómeno comum nos meios intectuais
americanos, e que não era necessário frequentar academias ou instituições de
ensino superior para ser culto e ter genuína curiosidade intelectual, a Amália
descia ao mundo da realidade e limitava-se a conversar com a maior das
naturalidades. Aliás, eu sabia muito bem que a Amália convivia e conversava,
nos longos serões realizados em sua casa, com toda a espécie de intelectuais,
portugueses e estrangeiros, principalmente com gente das letras e das artes.
Um dia, à mesa de um dos vários
restaurantes portugueses de Waterbury, no estado de Connecticut, aonde por
vezes íamos almoçar, a conversa entre a Amália e o Cirurgião encaminhou-se para
questões de religião e de fé religiosa. Ao perceber que eu era agnóstico,
recorreu a uma série de argumentos para me fazer ver que Deus existia e que era
preciso e era bom acreditar n’Ele. E não posso esquecer-me que o último
argumento a que Amália recorreu, mais de uma vez, para tentar converter-me à
religião católica, consistiu em apontar para as flores que enfeitavam a mesa e
perguntar-me, retoricamente, se a existência de umas flores tão belas e tão bem
cheirosas não pressupunham a mão sábia e omnipotente de um Criador. E isso –
prosseguia ela – para não falar dos alimentos que acabáramos de saborear. E,
saídos do restaurante, estava eu a abrir-lhe a porta do carro quando ela me
pediu desculpa por tentar converter-me ao Catolicismo. Mas que tudo isso o
fazia ela por bem. Que tinha pena que uma pessoa tão boa e tão culta como eu
não tivesse fé (rogo se me releve esta maneira de falar, mas o memorialista
narra os factos: não os inventa). Que, por isso, eu fizesse o favor de lhe não
levar a mal o atrevimento. Claro que eu não levei a mal – nem poderia levar a
mal, antes pelo contrário, – esse santo atrevimento à Santa Rainha do Fado, que
se dignou honrar-me com a sua amizade.
António
Cirurgião
PS. – lembrei-me
de evocar a memória da Amália por ocasião do seu aniversário natalício,
ocorrido no dia 23 de Julho de 1920.
sexta-feira, 22 de julho de 2016
Na ONU.
Na ONU, em 2 de Novembro de 1973: um
reconhecimento especial
1.
A iniciativa
A abertura da XXVIII sessão da Assembleia
Geral da ONU, em Setembro de 1973, foi marcada por dois acontecimentos
importantes: a admissão dos Estados alemães (RFA e RDA) e a declaração
unilateral de independência da Guiné-Bissau.
Quanto
a esta última, em 5 de Outubro, culminando a ofensiva que marcara as primeiras
reuniões, o representante da Nigéria transmitiu ao Presidente do Conselho de
Segurança uma série de documentos relativos à declaração de independência e, em
22 de Outubro, cinquenta e oito Estados requereram a inscrição na ordem do dia,
como “questão urgente e importante”, dum
ponto intitulado "Ocupação ilegal pela forças militares portuguesas de
certos sectores da República da Guiné-Bissau e actos de agressão cometidos por
elas contra o povo da República"[1]. Em suma, na parte decisória deste
projecto, a Assembleia Geral felicitava-se «pelo recente acesso à independência
do povo da Guiné-Bissau, ao criar o Estado soberano que é a República da
Guiné-Bissau», condenava «energicamente» a política portuguesa e, além de
chamar a atenção do Conselho de Segurança «sobre a situação crítica criada pela
presença ilegal de Portugal», exigia que o Governo português se abstivesse «imediatamente
de qualquer nova violação da soberania e da integridade territorial da
República da Guiné-Bissau e de todos os actos de agressão contra o povo da
Guiné-Bissau e de Cabo Verde, retirando imediatamente as suas forças armadas
destes territórios».
2.
O debate geral
A questão foi discutida nas reuniões plenárias
realizadas entre 26 de Outubro e 2 de Novembro de 1973. O número de oradores
inscritos para o debate geral foi elevadíssimo: cinquenta e uma intervenções.
A grande maioria saudou a proclamação da
independência e solicitou efectivas medidas de apoio por parte da ONU. Alguns
recordaram as propostas prévias de negociações, sustentaram que a Guiné-Bissau
revelava os necessários atributos de um território nacional, destacaram alguns
traços do texto da Proclamação de Independência e da própria Constituição
Política do novo Estado. Outros recordaram as conclusões da Missão Especial
que, no ano anterior, visitara as regiões libertadas e enfatizaram o elevado
número de reconhecimentos da novel República. Todos apontaram para a
ilegalidade da presença portuguesa, para o termo inevitável do colonialismo e
apelaram a Portugal para retirar imediatamente das colónias. Alguns criticaram
a cumplicidade do apoio militar, económico e político da NATO.
O embaixador António Patrício interveio, pela
delegação portuguesa, na reunião vespertina de 31 de Outubro. Invocando
Lauterpacht, sustentou que a Guiné-Bissau era um Estado fantasma, que não
preenchia minimamente qualquer dos requisitos impostos pelo direito
internacional clássico para o reconhecimento – por exemplo, o PAIGC, não
obstante o invocado controlo territorial, tivera de proclamar a independência
debaixo das árvores, numa floresta e fizera-o quase na clandestinidade, como
mostrava a ausência de jornalistas senegaleses e o facto de a Proclamação só
ter sido anunciada dois dias depois. Recordou a afirmação de Marcelo Caetano,
de 26 de Outubro, de que a declaração de independência não era mera manobra de
propaganda, por os seus adeptos visarem um pretexto jurídico para acréscimo do
apoio diplomático e militar e
aplicação do regime internacional sobre a guerra. À ANP que proclamara a
independência, contrapôs as eleições realizadas para a Assembleia Legislativa
em Março e o papel dos Congressos do Povo, os quais demonstrariam insofismável
apoio à presença portuguesa. Negou o controlo territorial invocado pelo PAIGC
e, a concluir, afirmou que Portugal, ainda mais num momento de inequívoca
«crise de confiança» mundial face à ONU, recusava «participar neste processo de
desintegração do direito internacional» e rejeitava «imediata e absolutamente
esta tentativa de inversão dos valores que regem as relações entre países que
estão convencidos da supremacia do direito sobre o uso da força».
3. A
votação
Terminado o debate geral, a reunião matinal de
2 de Novembro abriu com as intervenções dos representantes que pretendiam
explicar o voto antes do acto de votação.
A Argentina anunciou que votaria a favor,
porque a moção apresentava a questão sob uma nova óptica e permitiria que as
Nações Unidas tomassem medidas adequadas à sua complexidade, mas ressalvou que
o seu voto afirmativo não significava o reconhecimento de Estado. A Grécia
(dita "dos Coronéis") ia votar contra porque o método e a via
adoptados poderiam «criar precedentes perigosos». O Chile (da recém-instalada Junta Militar de Pinochet)
abstinha-se porque distinguia dois aspectos diferentes, a criação de um novo
Estado soberano e a condenação do colonialismo.
O Reino Unido ia votar contra. Rejeitava
liminarmente as acusações sobre o envolvimento da NATO: «a pertença de Portugal
à NATO é uma coisa. A sua política colonial é outra. Nada fazemos para apoiar a
política colonial portuguesa. Pelo contrário, como demonstrámos frequentemente,
dissociamo-nos dessa política». Apesar de tudo, a delegação britânica
continuava a considerar a Guiné-Bissau um território não autónomo e tinha de
votar contra o projecto de resolução «pela simples razão que se funda em
hipóteses irreais e que as correspondentes propostas são, por isso, não
fundamentadas e inaceitáveis». Estava, porém, a pagar um preço «muito alto»
para continuar a apoiar Marcelo Caetano e a ter o que o Foreign Office via como «má companhia»[2].
A
abstenção da Bélgica, apesar da «grande abertura de espírito» na questão do reconhecimento da Guiné-Bissau,
resultava de julgar que o território não reunia todos os atributos da soberania
e independência e, consequentemente, não respondia aos critérios admitidos pela
prática tradicional. O delegado sueco interveio em nome dos cinco países
nórdicos, cuja solidariedade concreta ao PAIGC era bem conhecida e iriam
abster-se porque o projecto de resolução continha «elementos que prejudicariam
a questão das nossas relações com a República que acaba de ser proclamada». Finalmente,
o Canadá e a Austrália abstinham-se pelos mesmos motivos: as questões
decorrentes do projecto levantavam «enormes dificuldades», assemelhando-se a um
reconhecimento colectivo do novo Estado.
A votação da resolução 3061 (XXVIII)
realizou-se por chamada nominal, iniciada, à sorte, pelas Maldivas. Foi aprovada
por 93 votos a favor, 30 abstenções e 7 contra (Portugal, África do Sul,
Espanha, Reino Unido, EUA, Brasil e Grécia).
Em declarações de voto, Holanda, Irlanda,
França, RFA e Nova Zelândia reafirmaram o seu apoio ao exercício do direito à
autodeterminação e independência do povo da Guiné-Bissau, lamentaram não ter
sido possível chegar a consenso sobre outro tipo de resolução, observaram que
um voto afirmativo poderia implicar um reconhecimento de facto e reafirmaram, cada qual por seu lado, que manteriam
contactos para proceder ao reconhecimento logo que possível, segundo as normas
do direito internacional.
Por sua vez, os Estados Unidos declararam
acompanhar de muito perto os acontecimentos e não observarem nada que os
convencesse que a declaração de independência era justificada; estavam
conscientes de que os revolucionários «ocupam e pretendem administrar certos
sectores dentro do território e ao longo das suas fronteiras»; todavia,
Portugal continuava a controlar os centros populacionais, a maioria das regiões
rurais e a administração do território. O Governo norte-americano reafirmava,
ademais, que só a negociação entre as partes interessadas, no quadro da
resolução 322 do Conselho de Segurança, permitiria «pôr um termo à luta
sangrenta no território».
4.
A doutrina
Esta
resolução 3061 (XXVIII foi uma espécie de míssil (de papel) contra Portugal e
exprimiu o clímax de uma recente série de acções da ONU sobre a situação na Guiné-Bissau[3]. Marcou um
limite-máximo na história da descolonização, pois procedia ao reconhecimento
(de um movimento de libertação) de um Estado (independente) enquanto este
lutava ainda pela independência e qualificava a potência administrante de país
agressor.
Vários jus-internacionalistas falam, a
propósito, de reconhecimento (colectivo) de Estado. Embora sem aprofundar,
Truyol y Serra afirma-o duas vezes[4]. Verdross
considera o reconhecimento da República da Guiné-Bissau como o «mais notável» caso de reconhecimento (não prematuro)
por alguns Estados e «inclusivamente pela Assembleia Geral da ONU, em 2 de
Novembro de 1973, enquanto duravam as hostilidades com Portugal»[5]. Paulette
Pierson-Mathy fala de um reconhecimento «quase universal» e conclui que a resolução
3061 implicava, para os Estados que a apoiaram, o reconhecimento solene e
colectivo da independência[6]. Também em
comentário, Paul Tavernier conclui que, mesmo não tendo a nova República
solicitado de imediato a sua admissão na ONU, a aprovação da "Ordem do
dia" da Assembleia Geral e da respectiva resolução, «já implicava, parece,
o reconhecimento pelas Nações Unidas do novo Estado»[7].
Para Charles Zorgbibe, o caso saía do quadro estrito da antecipação, pois não
só o reconhecimento provinha pela primeira vez da Assembleia Geral da ONU como,
sobretudo, analisadas as diversas etapas preparatórias da sua declaração de
independência, a República da Guiné-Bissau constituía um caso-limite[8]. No resumo
de outro especialista, parece indiscutível que, embora posterior a elevado
número de reconhecimentos, esta “certificação” da independência por parte da
ONU – não obstante as reclamações da “potência administrante”, que, aliás, nem
sequer aceitava tal estatuto – contribuiu substancialmente para o
reconhecimento da «existência separada» do Estado da Guiné-Bissau[9].
5.
Entre a solidão e o desespero
A
proclamação criara um dilema para os aliados de Portugal na NATO[10]. O
litígio entre Portugal e a ONU agudizou-se e a tentativa de détente africana que a diplomacia
marcelista ensaiara «parecia ter os seus dias contados»[11].
Acentuando a clara «degradação da imagem de
Portugal na ONU»[12], a
subsequente resolução 3067, de 16 de Novembro, convidou a República da
Guiné-Bissau (em vez do PAIGC, com o inerente estatuto de
"observador") a participar na III Conferência das Nações Unidas sobre
o Direito do Mar, e, em 17 de Dezembro, a Assembleia Geral aprovou os poderes
da delegação de Portugal apenas «tal como ele existe no interior das suas
fronteiras na Europa», sublinhando expressamente que esses poderes não se
estendiam aos «territórios sob dominação portuguesa de Angola e de Moçambique»
nem à Guiné-Bissau «que é um Estado independente».
A
proclamação da República da Guiné-Bissau fora o primeiro passo (e a chave) da
desintegração do Portugal colonial. Marcelo Caetano ficara refém da “teoria dos
dominós”[13], e esta
passava a abranger uma nova perspectiva, que não havia sido considerada
autonomamente: a eventualidade de sucessivas declarações unilaterais de
independência por todas as partes – pois, à última hora, conspirativamente, a
parte portuguesa também se iria envolver nesta via quanto a Angola e Moçambique[14].
Quer dizer, a separação dos territórios coloniais do Estado
metropolitano podia ter-se transformado em desmembramento. Todavia o
reconhecimento de jure da República
da Guiné-Bissau pela parte portuguesa abriu a via à independência rápida e
geral, mediante acordo com os movimentos de libertação
nacional.
António
Duarte Silva
[1] Sobre todo este processo, Nações Unidas – Assembleia Geral – A/PV. 2157, de 20/10/73 até A/PV. 2163, de 2/11/73, e um resumo in Yearbook of the United Nations – 1973 –
Vol. 27, Office of Public Information, Nova Iorque, pp. 143/147.
[2] Norrie MacQueen, “Marcelismo, Africa and the United
Nations [With particular reference to the British response to the PAIGC´s
Declaration of Independence for Guinea-Bissau]”, in Manuela Franco (coord.), Portugal, os Estados Unidos e a África
Austral; Lisboa, Fundação Luso-Americana/IPRI, 2006, pp. 115/ 116, e Pedro
Aires de Oliveira, “Live and Let Live: Britain and Portugal´s Imperial Endgame”,
in Portuguese Studies, Vol. 29, n.º
2, 2013, p. 203.
[3] Bunyan Briant e alii,
“Recognition of Guinea(Bissau)”, in Harvard
International Law Journal; Cambridge, Mass., Vol. 15, verão de 1974, pp.
482 e segs., especialmente p. 495.
[4] Antonio Truyol y Serra, “Théorie du Droit
International”,in Recueil des Cours de
l’Académie de Droit International Public. Tomo 173, Vol. IV, 1981, p. 341,
e La sociedad internacional, Madrid,
Alianza Editorial, p. 187, nota 1.
[5] Alfred Verdross, Derecho
Internacional Publico, tradução da 3.ª edição alemã, Madrid, 1982, p. 231,
nota 16b.
[6] Paulette Pierson-Mathy, La naissance de l’Etat par la guerre de libération nationale: le cas de
la Guinée-Bissau, UNESCO, 1980, pp. 84/85.
[7] Paul Tavernier, “L’Année des Nations Unies (20 Décembre
1972 – 18 Décembre 1973) – Questions Juridiques”, in Annuaire Français de Droit International, Vol. XIX, 1973, p. 628.
[8] Charles Zorgbibe, A
guerra civil, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1977, p. 154.
[9] John Dugard, Recognition
and the United Nations, Cambridge, Grotius Publications Limitede, 1987, p.
74.
[10] Norrie MacQueen,
“Related Decolonization and the UN Politics against the Backdrop of the
Cold War: Portugal, Britain and the Guinea Bissau’s Proclamation of
Independence”, in Journal of Cold War
Studies, 8, n.º 4, 2006, pp. 29 e segs..
[11] Pedro Aires de Oliveira, “A Política Externa do
Marcelismo: A Questão Africana”, in Fernando Martins (ed.), Diplomacia & Guerra, Lisboa, Edições
Colibri, 2001, pp. 241 e 259.
[12] Mário António Fernandes de Oliveira (dir.), A Descolonização Portuguesa – Aproximação a
um estudo, I Volume, Lisboa, Instituto Democracia e Liberdade, 1979, p.
198.
[13] Pedro Aires de Oliveira, ibidem, pp. 263/265.
[14] Por exemplo, Norrie MacQueen, “Portugal’s First
Domino: ‘Pluricontinentalism’ and Colonial War in Guinea-Bissau, 1963-1974”, in
Contemporory European History, 8, 2
(1999), p. 227.
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