Talento
especial é o daquele que apanha o lugar-comum e o vira do avesso. O que é capaz
de em nós causar surpresa até quando fala do que já sabíamos. Em poucos dias,
conheci um fotógrafo espantoso, de inteligência, humor e graça. Tudo dito na subtileza do seu nome
artístico: Cartiê-Bressão. As imagens confirmam, uma a uma, as palavras de Alexandra Lucas Coelho, que chegou, falou e disse ao povo:
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RIO - Vou
deixar o Rio de Janeiro daqui a três semanas, ao fim de três anos e meio. É
2014, ano de Copa do Mundo, de #nãovaitercopa, de eleição presidencial, do cinquentenário
do golpe: o mundo de olhos no Rio e eu, que escrevo uma coluna semanal do Rio,
e estou a tentar escrever um romance sobre o Rio, deixando a cidade
voluntariamente. Não há nenhuma razão natural para deixar o Rio, só razões
naturais para ficar, as que toda a gente conhece mais esta: é fortalecedor
morar em cidades que contradizem a nossa natureza e esse é o meu caso com o
Rio. Então, a única razão que há para partir é não-natural, a mesma que faz o
mundo olhar para cá, o Rio ter sido tomado pela narrativa do triunfo.
Eu não tenho
dinheiro para um apartamento no Rio agora, ou para ter esse dinheiro teria de
passar todo o tempo a tentar arrumá-lo, e não quero morar numa cidade em que
todo o tempo seja gasto tentando arrumar dinheiro para morar lá. Uma cidade,
entretanto, na qual ser branco já é ser rico, ser negro já é ser pobre, e em
que rico ou pobre é estimulado a parcelar tudo no cartão de crédito, até ao
colapso do trânsito, da falha de energia, da falta de água: certamente a cidade
mais bela do mundo capitalista. Como o Rio não vai perder os seus poetas? Como
a floresta não vai virar um safári? Como o morro não venderá a vista?
Não está
gostando?, perguntam-me os cariocas quando digo que vou deixar o Rio. Claro que
estou gostando, não tem como estar vivo e não gostar do Rio: saio à rua e
agradeço, dobro a esquina e é uma bênção. Meu Rio de Janeiro do céu
vermelho-pitanga, do chão de mangas maduras do Cosme Velho onde morei 24 meses
e perdi o medo de cães para sempre, por causa de duas cachorras, uma delas
cega. Havia um ponto, entre duas árvores, de onde se via o Cristo, mas só
quando comecei a subir ao morro, Cerro Corá-Guararapes, é que vi de quem o
Cristo está realmente próximo. Ainda não havia carros da Polícia Militar no
começo da minha ladeira, nem as instalações da UPP lá em cima, nem obrigação de
usar capacete sempre que subíamos de mototáxi, mas o lixo era o mesmo que
agora, a mesma podridão empilhada na berma. Como é que era mesmo, UPP social?
Da janela de casa, duas vezes por dia, ouvia a Ave-Maria de Schubert que vinha
(ainda virá?) da Igreja de São Judas Tadeu, e aos sábados, aos domingos, por
vezes igrejas evangélicas, de noite por vezes vezes funk, mais vezes samba,
sobretudo os foguetes que faziam as cachorras derrubar portas e janelas para
chegarem até mim, trémulas. O amor começa bem lá no fim do medo.
A bênção São
Sebastião do Rio de Janeiro, nunca acabarei de agradecer o dom de ficar tão
vivo apesar de toda a morte, toda a violência, todo o abandono, esse deus-dará
que milhões de cariocas conhecem desde que nasceram, e é seu, meu,
contemporâneo, eu que já sou daqui, porque aqui já sou eu. Então, arruma aí
tuas contas, teus condomínios, tuas grades de ferro, tua trava no pescoço de um
garoto de rua nu, e me chama que eu venho em visita. Virei sempre.