Napoleão, entre os esplendores da luz
perpétua.
Parte I
Nos 200 anos da morte de Napoleão
Bonaparte, 5 Maio 1821
“Thus terminates in exile, and in prison, the most
extraordinary life yet known to political history.”
The
Times of London, 5 Julho 1821
Já
tudo se escreveu sobre ele. Herói da sua pátria, pária da Europa quase inteira,
louco, visionário, arrebatador, déspota, estratega, ditador, brilhante, esclavagista,
encantador, Napoleão Bonaparte morreu a 5 de Maio de 1821, no seu exílio-prisão
miserável da ilha britânica de Santa Helena, perdida no Atlântico Sul.
Envenenado
com arsénico ou, segundo a versão oficial, vítima de um cancro intestinal, o
ex-imperador dos franceses, entregou a alma ao Criador aos 51 anos, reconciliado
com a Igreja Católica, a mesma que humilhou e perseguiu de forma quase inédita.
Segundo
alguns dos primeiros relatos que chegaram à Europa, nos seus últimos
pensamentos estiveram Deus e a nação francesa. Outros mencionam apenas o
exército e Josefina, a sua primeira mulher, a quem repudiou quando percebeu que
não lhe podia dar o herdeiro de que tanto precisava.
Napoléon sur son lit de mort, óleo de Horace Vernet, 1826
A
morte do homem que dominou a Europa nos primeiros quinze anos do século XIX foi
dissecada desde o primeiro momento. Às páginas dos jornais ingleses e franceses
chegaram, no início de Julho de 1821, todos os pormenores: dos últimos dias à
autópsia, do testamento ao funeral, tal era o fascínio que este personagem continuava
a exercer no imaginário das gentes que habitavam a Europa de há 200 anos.
A
11 de Julho, o diário bonapartista e liberal francês Le Constitutionel, além de reproduzir o que haviam escrito dias
antes os jornais ingleses sobre os relatos de Santa Helena, não poupava nos
encómios a Napoleão:
“Poucos conquistadores tiveram uma
fama tão extensa quanto Napoleão Bonaparte. O seu nome encheu toda a Europa;
foi ouvido nas fronteiras da Ásia. Colocado, pela força dos acontecimentos, à
frente de uma grande nação, fatigada por uma longa anarquia, herdeiro de uma
revolução que tinha exaltado todas as paixões boas e más, ele foi elevado tanto
pela energia de sua própria vontade, quanto pela fraqueza dos partidos, ao
poder supremo; colocou a França em estado de guerra permanente, substituiu a
ilusão de glória pelos reais benefícios da liberdade e, identificando-se com a
independência nacional, tirou do medo de um jugo estrangeiro o principal
instrumento de uma autoridade sem limites. (...)
“Napoleão causou uma forte impressão
nas mentes e na imaginação da humanidade, e assim devia suceder. Um soldado
que, pela força do génio, se eleva acima dos seus contemporâneos; que dá
tranquilidade a uma sociedade perturbada e dita as suas leis aos soberanos,
aparece no mundo como um personagem maravilhoso, e a terra rende-se diante
dele.”1
Napoleão
Bonaparte foi, de facto, um ciclone na vida da Europa e isso mesmo sentiram os
europeus dos alvores de oitocentos, vendo, entre espanto e angústia, como o
mundo que conheciam parecia desmoronar-se ante o avanço confiante e imparável daquele
corso de quem se dizia valer, em batalha, mais de 30.000 homens, tal era a
energia que a sua presença inspirava e a aura de vencedor que o acompanhava.
Napoleão
via-se como libertador dos povos oprimidos – foi esse o papel que reclamou para
si nas Mémorial de Sainte-Hélène, as
suas memórias póstumas. Os seus inimigos viam-no como o opressor. Até o Papa
foi preso durante 5 anos, dois dos quais em França. O mesmo Papa, Pio VII, que
presidira em Paris à lendária Coroação de Bonaparte em 1804 e que assistira
impávido enquanto o próprio imperador se coroou e coroou Josefina, relegando o
Pontífice Romano para a posição de espectador – depois de ter feito o longo e
histórico caminho desde Roma.
Terá
parecido um admirável mundo novo. Fronteiras e impérios ancestrais caíam, reinos
novos eram criados, dinastias multi-seculares eram depostas ou fugiam e reis
novos, familiares de Napoleão, eram postos em tronos tão distintos como o de
Nápoles, o de Espanha, o de Itália, o da Holanda ou o da Suécia.
Foi
esse mundo novo, com leis novas e um ar de uma certa modernidade burguesa que o
Congresso de Viena tentou aplacar, restaurando fronteiras, reis e papa aos seus
tronos e um certo modo de vida pré-revolucionário.
Apesar
dos esforços, o mundo pós-napoleónico é, em grande medida, o resultado de
Napoleão. Grande normalizador da França revolucionária, Napoleão foi a
transição entre o mundo radical de Robespierre e o liberalismo que ainda tomava
forma. O regresso do absolutismo imposto por Viena foi efémero. A marca de
Napoleão estava para ficar.
*
* *
No
exacto momento da morte do mítico ex-imperador, o nosso menos mítico Rei D.
João VI estava, também ele, no meio do Atlântico Sul, certamente não muito
longe, em milhas náuticas, de Santa Helena.
Nove
dias antes, a 26 de Abril de 1821, e no meio de um caos com paralelo na partida
de Lisboa em 1807, a corte portuguesa – ou cerca de 4000 almas dela – levantara
finalmente âncora no Rio de Janeiro e voltava a Lisboa, depois de 13 anos
cariocas.
O
contraste entre os dois soberanos dificilmente poderia ser mais gritante. Se
Napoleão fizera mover fronteiras e dinastias pela sua bravura e liderança, D.
João viveu a sua regência e o seu reinado como uma constante vítima das
circunstâncias que outros lhe impunham. Mesmo considerando que a fuga para o
Brasil foi um golpe de alguma mestria, quando comparada com a submissão e queda
das restantes dinastias europeias, não deixou de ser uma fuga.
Em
1821, D. João VI regressava para tentar salvar o que restava num reino que se
dava desafiantes ares liberais, consequência da Revolta Liberal que começara no
Porto em Agosto de 1820 e se estendera pelo país, exigindo ao Rei a adopção de
uma constituição baseada no modelo espanhol. Os ventos liberais tinham chegado
também ao Brasil, com as notícias do que se passava em Lisboa.
A
26 de Fevereiro uma sublevação militar no Rio de Janeiro tinha forçado o
Príncipe Real, D. Pedro, a jurar a constituição nascente em nome do seu augusto
pai. No mesmo dia, o Rei encenou uma demonstração de aquiescência para acalmar
os ânimos, desfilando em coche pelas ruas do Rio e ouvindo, no teatro, vivas à
constituição que não jurara e também não renegara2. D. João fora,
uma vez mais, forçado a uma atitude, mais um eco de um reinado inteiro.
Acceptation provisoire de la constitution de Lisbonne: à Rio de Janeiro, en 1821; gravura de Jean-Baptiste Debret
A
consciência de que o regresso do Rei e da Família Real era inadiável em face
dos acontecimentos em Lisboa – onde decorriam Cortes à revelia do Rei –, fez
com que crescesse a hostilidade numa terra que, após uma década de franco
desenvolvimento pela presença da corte, estava inconformada com deixar de ser o
centro do império, para voltar a ser uma mera colónia.
Além
de serem tema de intriga militar e política, os argumentos para que os Bragança
não regressassem a Lisboa tinham tomado a forma de panfletos, onde se procurava
– com assinalável sucesso – incendiar a opinião pública.
A
tentativa de rebater os argumentos levou à impressão de respostas às
proposições do autor do panfleto anónimo, que circulara primeiro em francês e em
que a questão fundamental era: “O Rei, e a Família Real de Bragança devem, nas
circunstancias Presentes, voltar a
Portugal, ou ficar no Brazil? Tal
he a questão d'alta Politica, que occupa agora a attenção do Portuguez da
Europa, e d'America, e parece dividir em opinião as melhores cabeças.”3
Com
assinaláveis preocupações democrática e racional de mostrar o argumento e o seu
contrário, a publicação falhou em toda a linha no seu objectivo, que era o de
justificar o regresso do Rei e as vantagens da manutenção da união entre o
Reino de Portugal e Reino do Brasil. Ironicamente, era a defesa do rei
absolutista que invocava as maravilhas do liberalismo.
As
proposições do folheto original acabaram provadas: a independência do Brasil seria
o resultado “d’hum passo tão impolitico” como o regresso a Lisboa, num momento
em que Portugal “não póde absolutamente passar sem o Brazil”, enquanto “o
Brazil pelo contrario não tira a menor
vantagem da sua União com Portugal”.
O
apelo do anónimo autor era a que D. João VI fundasse no Brasil o império
florescente que inevitavelmente perderia se voltasse a Portugal. Em
retrospectiva, não deixavam de ter razão quando afirmavam que o Rei regressar a
Lisboa o colocaria “em poder dos Rebeldes” e que o atraso no regresso
provavelmente atrasaria “o vôo revolucionario dos Portuguezes da Europa”.
O
plano inicial, de que o Príncipe D. Pedro regressaria a Lisboa para tratar dos
revoltosos, teve de ser abandonado depois da sublevação de 26 de Fevereiro. D.
João VI decidiu regressar ele próprio, deixando D. Pedro como regente do Reino
do Brasil. Numa sucessão vertiginosa de
acontecimentos, preparou-se o regresso do Rei e a eleição dos representantes
nas Cortes.
Le Moniteur universel,
jornal oficial do Reino de França, daria conta aos leitores, em Julho, das
cenas pouco ortodoxas vividas no Rio de Janeiro no final de Abril – as
exigências feitas ao Rei que partia e de como o “demónio da anarquia” andava
por ali. Naquilo que aos portugueses do século XXI parecerá um invertido dejá vu, relatava que “os ex-directores
do banco, cujas malversações quase haviam causado a ruína daquele
estabelecimento, tiveram todos os seus bens confiscados”4.
O
Le Constitutionel detalhava os
acontecimentos: “A partida do rei deu lugar a algumas cenas muito
desagradáveis, quando o povo quis fazer desembarcar uma quantidade de bens e
outras coisas preciosas destinadas ao uso da Família Real na Europa; mas a tropa fez um
ataque vivo e inesperado sobre o povo reunido na bolsa, e algumas pessoas
perderam a vida. Tal é o espírito de descontentamento manifestado pelo povo no
Rio de Janeiro e noutras partes do Brasil, que esperamos eventos deploráveis.”5
Le Moniteur universel, 21 Julho 1821
Sala da biblioteca do convento de Nossa Senhora das Necessidades adaptada a Sala das Cortes Constituintes. Desenho a traço de tinta castanha atribuído a Domingos Sequeira. (cf. Côrte-Real, Manuel, Palácio das Necessidades, 2021)
No
meio de protestos e de tentativas de o impedir de embarcar o tesouro, o Rei
partiu para Lisboa sem glória. Saíra de Lisboa empurrado para a colónia pelas
tropas de Napoleão e saía do Brasil elevado a Reino empurrado para a capital
europeia pelos ventos liberais que o mesmo Napoleão inspirara.
Em
23 de Junho, a Gazeta do Rio de Janeiro,
tinha uma brevíssima nota que dava conta de que chegara um navio de Santa
Helena com notícias da morte de Napoleão Bonaparte, o arqui-inimigo de Portugal,
mas também cunhado do Príncipe Regente D. Pedro.
A
Princesa Real (e futura Imperatriz do Brasil) D. Leopoldina era irmã da segunda
mulher de Napoleão, a ex-Imperatriz dos Franceses Maria Luísa. Filhas, ambas,
do último Imperador do Sacro Império, despromovido a Imperador da Áustria. Tudo
por obra e graça de Napoleão, que com aquela união elevara a um patamar mais
elevado a humilhação dos Habsburgo.
Não
por acaso, por alturas do casamento, em 1810, Maria Carolina da Áustria, avó da
noiva e Rainha de Nápoles destronada pelo noivo, terá reclamado: “é a última coisa que faltava às minhas
misérias, tornar-me Avó do Diabo”6.
O
regresso de D. João VI a Lisboa, há 200 anos, mostra como, mesmo depois de
cinco anos exilado e preso e então já morto, o diabo continuava a determinar a vida da Europa e da América...
(Continua...)
*
* *
1 Le Constitutionel,
11 Julho 1821.
2 Relação dos successos do dia 26 de Fevereiro
de 1821 na corte do Rio de Janeiro. - Bahia : na typ. da Viuva Serva, e
Carvalho, 1821.
3 Exame analytico-critico da solução
da questão: o rei e a família real de Bragança devem nas circunstâncias
presentes, voltar a Portugal ou ficar no Brasil? -
Bahia: Typ. da viúva Serva e Carvalho, 1821.
4 Le
Moniteur universel, 20 Julho 1821.
5 Le
Constitutionel, 15 Julho 1821.
6 Citada em Waltraud, Maeirhofer, Maria Carolina, Queen of Naples: The Devil’s Grandmother, 2009.
Ademar Vala Marques
Abril 2021