domingo, 30 de junho de 2013

Um dia, uma fotografia.

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David Ben-Gurion

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (17).





 


 
 

29-VIII                                                                                                
Regressar

 


Os nossos visitantes já partiram há uns dias e agora já não falta muito para nós mesmos regressarmos. E à medida que se aproximava a data do nosso retorno, fomos tomando o hábito de passar a tarde no jardim arrelvado que nos s para dos vinhedos que se estendem pelas colinas mais próximas. Os pássaros não têm, felizmente, o hábito de se empoleirarem neste enorme abeto azulado, o que nos permite passar horas de lazer tranquilo debaixo da sua sombra. Olho a paisagem que se alarga em direcção ao vale, miramos pela enésima vez os cumes do monte Ventoux diante de nós, sentindo que estas faldas do Luberon são ondulações lentas dum mar de pedras, terra e plantas, vinhas e árvores, riachos invisíveis e bosques onde lebres se escondem, com um ou outro mas (habitação provençal) de permeio. Como nunca gostei de montanhas demasiado altas e vertiginosas, antes aprecio serras de moderada estatura, sem encostas abruptas nem vales muito cavados, sinto-me, nestes arredores de Bonnieux, no meu paraíso terreal de férias.

Olho de novo, antes de partir pela França e Espanha fora, as distâncias que nos separam ainda da costa atlântica, e quedo-me a saborear com avidez esta paisagem que tanto amo, esta paisagem à minha volta, semeada de vinhas e de bosques de plantio natural, com rochedos no intervalo da vegetação, penedos ocres ou brancos. E sinto que esta paisagem tem qualquer coisa de musical, de melodia composta por um oculto artista enamorado da natureza, na sua incrível diversidade e unidade essencial de elementos opostos, de cores e texturas, posta diante dos nossos olhos para êxtase mais íntimo da nossa alma carente de ar livre, de cenários criados por geração espontânea. E é este timbre interior, discreto mas forte, que pulsa ainda nas derradeiras linhas destas horas que passamos aqui. Assim como no meu diário rascunhado ao longo de um mês de férias na sublime região da Provença, pátria de quando em quando recuperada, depois perdida, recordada, vista de novo numa nova visita ritual, até que se transforme de vez em passado que passou deveras, em memória que se vai delindo até dela nada restar, nem uma sílaba dita ou escrita, nem uma ramada de cipreste que o vento afaga, nem um trinar de pássaros que deslizam velozes por cima de nós, enquanto o sol se levanta e põe, ora iluminando, ora enchendo de trevas todos estes cenários, ao mesmo tempo que uma mão vai tentando deixar gravada na pele efémera duma folha palavras de um diário, palavras que desaparecem como as horas em que foram sentidas e escritas…
 
 
 
João Medina

 

sábado, 29 de junho de 2013

Um dia, uma fotografia.

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Hillary Clinton

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (16).






 

 

28-VIII                                                                              
O Museu da Alfazema

 

Visita ao Museu da Alfazema, em Coustellet, a poucos quilómetros daqui, junto à estrada Cavaillon-Apt, no coração do parque natural do Luberon. Foi em 1991 que a família Lancelot, ligada à indústria da perfumaria, decidiu criar este museu tão necessário, sendo a alfazema um dos emblemas desta região; ele explica como se cultiva e se fabricam os perfumes derivados desta tão antiga planta aromática, que esteve desde os romanos ligada à vida na Provença, aventura que este museu sabe explicar de forma simples e atraente a ainda exibindo toda uma colecção de alambiques para extracção das essência da alfazema, depois convertidas em frascos de loção corporal, sabonetes e perfumes. Alguns dos alambiques de cobre vermelho que aqui se exibem são do século XVI, alternando estes objectos com monitores televisivos que mostram aos visitantes como se cultiva a alfazema nos campos, se colhe e se obtém, por fim, o líquido destinando à indústria da perfumaria. Toda uma secção mostra como se fabricam sabonetes, cremes e outros produtos de beleza com base nesta planta ancestral que os romanos associavam à sua higiene diária, assim como à saúde e ao prazer de aromatizar o dia-a-dia. A família Lancelot, a que se deve esta boa ideia museológica, é dona de 300 hectares de terrenos de plantio da alfazema.

A Provença é um conjunto de imagens, hábitos, sabores e perfumes, e nesta panóplia tradicional de culturas, ao lado das cigarras e dos santons – bonecos de barro cozido colorido, vestidos com roupas de acordo com os mesteres que exercem na vida quotidiana, usados para decorarem os presépios de Natal –, está a alfazema que este museu tão apropriadamente honra com o seu sentido pedagógico e é propagandístico, já que a última sala deste museu é se destina à venda dos mil e um produtos derivados desta fainas aromáticas que a alfazema possibilita. E não deixa de ser curioso pensar-se que para se obter um litro de óleo desta planta são precisos cem quilos de flores.
 
 
João Medina
 
 
 

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Um dia, uma fotografia.

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Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (15).

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27-VIII                                                                              
Monsieur Edmond Julien

 

O dono da casa que aluguei nos arredores de Bonnieux é um típico camponês provençal de pele tisnada, sotaque cerrado, um homem alto e seco de carnes, além de “apolítico” com um fundo muito rústico na sua antipatia pelos homens da política, as autoridades e os padres. Chama-se Edmond Julien, trabalha de manhã à noite, erguendo-se de madrugada para limpar as vinhas e fazer as regas necessárias dos seus campos. Para ele os políticos são todos, de esquerda como de direita, uma vil raça maldita, uma banda de sanguessugas que exploram o trabalho dos homens do campo, de modo que não leva a sério François Hollande e tutti quanti. Monsieur Julien começa a trabalhar a meio da noite, com o seu tractor nos seus muitos vinhedos espalhados em torno de Bonnieux, tendo ainda dois jeeps da marca Land Rover, usando roupa modesta mas com alguma elegância. De quando em vez, ao passar pelo nosso gîte, deixa em cima do muro do nosso terraço do castanheiro um cesto com uvas de mesa, enormes aubergines (beringelas) provençais e tomates “russos”, como ele lhes chama. Creio que esta sua generosidade cifrada em ofertas de vinho terá alguma coisa a ver com o facto de eu lhe ter oferecido, no dia da nossa chegada, uma garrafa de bom Porto e ainda uma de moscatel de Setúbal.

Por vezes, o Sr. Julien vem trocar dois dedos de conversa connosco, mas fica sempre do lado exterior do muro, partindo logo em grande velocidade para as suas incessantes fainas agrícolas. Outras vezes, deixa no cesto uma garrafa do rosé feito com uvas que ele vende à cooperativa de Bonnieux. Uma vez, ficou quase ofendido quando lhe disse que tínhamos comprado numa loja de vinhos em Lourmarin uma garrafa de branco local: que não, dizia, que o bom vinho era o nosso, o de Bonnieux, das suas vinhas, insistia ele.

No dia seguinte passou pela nossa vivenda para nos convidar para um goûter na casa dele, do outro lado da aldeia. Como a expressão goûter fosse ambígua e a hora combinada era ao fim da tarde, ficámos sem saber muito bem se Monsieur Julien nos convidava para um jantar ou apenas  para um lanche. No dia seguinte, após uma complicada navegação sem GPS, através das estradas apertadas e labirínticas nas vizinhanças de Bonnieux, chegámos à sua casa, uma típica habitação provençal, rodeada de dois poços, oliveiras e ciprestes, no meio dum vinhedo a perder de vista pelas encostas abaixo do Luberon. Quem nos serviu, na varanda exterior da casa, protegida do sol por um alpendre de telha e madeira, foi a filha do Sr. Julien, professora no liceu de Avignon, uma mulher ainda nova, quase sem sotaque provençal, o que talvez se devesse às suas constantes visitas a Inglaterra. A nossa merenda consistiu em copos de rosé e sanduíches de tapenade [1] e outros acepipes da Provença. A conversa correu com a afabilidade nativa desta gente, e, por volta das oito, ainda o sol não se tinha posto, já estávamos de regresso à nossa casinha do castanheiro. Mas como tal goûter nos tinha aberto o apetite, optámos por jantar no nosso terraço, refeição acompanhada do branco de Lourmarin, enquanto a estação da France Culture nos ia transmitindo um concerto de piano de Mozart.
 
 
João Medina









[1] Condimento provençal feito de azeitonas pretas, alcaparras e anchovas  marinadas em azeite.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Um dia, uma fotografia.

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Muhammad Ali

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (14).






René Char


 



27-VIII                                                                              
Cérest sem René Char

 

 

Fomos até Cérest, aldeola numa encosta do Vaucluse, pátria de René Char, mas não encontrei nada que evocasse o famoso poeta hermético das Folhas de Hypnos, o amigo íntimo de Camus, o resistente que chefiou um maquis em luta armada contra os ocupantes nazis. Nada, nem uma placa, nem um a rua com o seu nome, nem um qualquer monumento que assinalasse a origem dele neste obscuro recanto provençal, aliás pouco atraente. Em termos de Guia Michelin, até se podia dizer que esta terra não “vale um desvio”: uma igrejola medíocre, dois ou três cafés banais com esplanadas semelhantes a todos os demais neste país, um quiosque de jornais, umas ruelas sem nada de curioso, árvores também comuns, em suma, um pequeno nada trivial que não merecia uma visita e, sobretudo, não honra o nome do grande poeta surrealista e hermético aqui nascido em 1907. É verdade que não sou um leitor entusiasta dos poemas de Char, até porque sempre lhe preferi outros bardos como Aragon, Verlaine, Baudelaire, Apollinaire, Queneau e até Victor Hugo, este sobretudo como figura de intelectual oitocentista exilado nas ilhas normandas para protestar contra a ditadura de Napoleão o Pequeno. Também é certo que, admirando muito a enigmática poesia de Celan ou até de Trakl, já não me fascinam os hermetismos concisos do antigo surrealista Char. Por fim, sendo toda a Provença um tesouro de pequenas maravilhas sob a forma de aldeias, paisagens, fontes e recantos arborizados, esta aldeola de Cérest faz-me a impressão duma espécie de Reboleira meridional. Conviria também alegar que, para mim, a literatura da provençal é sobretudo feita de romancistas como Daudet, Pagnol, Giono e poucos mais, o que deixa o poeta de Fureur et Mystère à margem das minhas leituras mais favoritas.
 
 
João Medina
 
 
 

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Um dia, uma fotografia.

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Andy Warhol

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (13).







 

 

25-VIII                                                                                     
O alfarrabista de Apt

 

Todos os alfarrabistas que conheci, tanto na América do Norte, como em França, no Brasil e até em Portugal, são seres neuróticos, como se ter telha fosse a condição técnica indispensável para lidar com livros velhos. O alfarrabista de Apt, por exemplo, com livros interessantes a um euro cada, postos às três pancadas numa padiola desconjuntada à frente da porta da sua loja, muito enigmaticamente chamada, Les Soleils de Philippe, é um exemplo dessa incurável tendência para a veneta de quem vende livro em segunda mão. Lá dentro, as obras oscilam entre 5 e 8 euros, o que, dada a careira região em que estamos, não se pode considerar caro. Nas estantes, em contrapartida, os livros sobem de qualidade e de preço, estando até arrumados por temas muito franceses (História da Revolução Francesa, Napoleão, De Gaulle e Pétain, Literatura provençal, História romana, etc.).

Não consegui saber o nome deste homem macambúzio e bizarro, parco em palavras, nada interessado em cativar o cliente ou, pelo menos, conhecer os seus gostos, antes mostrando um olímpica indiferença pelos meus interesses manifestados na primeira vez que o visitei. Mas O mais seguro para evitar o contacto com este Dragão de Guttenberg é uma pessoa afoitar-se a levantar as pilhas de livros que se acumulam em cima de mesas extensas nas duas salas da livraria. Hoje, por exemplo, encontrei um estudo raro sobre o Barão Hirsch, promotor da imigração judaica para as Américas, uma pilha de obras de Eliade, uma bela edição ilustrada e encadernada das Lettres de mon Moulin, uma autobiografia de Jean Marais e até uma raridade, uma antologia dos oradores girondinos, esta por 10 euros. Numa passagem da sala de entrada para a interior da baiúca, há umas prateleiras que também me parecem, promissoras, com Saint-Just, Robespierre, a guilhotina e toda a procissão da Revolução Francesa, em fila. No entanto, renuncio a subir a um pequeno escadote, porque intuo que o alfarrabista taciturno não gosta de auxiliar quem busca livros em locais inacessíveis. Recolho, en passant, um estudo de Benassar sobre o Século de Oiro espanhol, os oradores girondinos e outros títulos que me interessam, como o referido barão Hirsch. E levo-os ao dono da loja, que me faz a soma sem um comentário e me apresenta o total escrito a lápis. [1] Pago, digo adeus e saio dali com a ideia. Uma vez mais confirmada, desde Baltimore a Apt, de que, de facto, os alfarrabistas são todos da mesma família genética e espiritual, uma espécie de doidos condenados a vivem no meio de obras envelhecidas, papel amarelado e lombadas gastas.
 
 
João Medina





[1] Veja-se uma história semelhante passada com uma alfarrabista norte-americana. em Providence, relatada no nosso livro  A minha América, 2012, pp. 378-80.

 

terça-feira, 25 de junho de 2013

Um dia, uma fotografia.

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Porfirio Rubirosa

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (12).








         24-VIII                                                                                                      
         Chuvisco

 

Hoje, quando folheava no terraço, junto ao nosso castanheiro protector, o César de Jacques Madaule comprado ontem em Isle-sur-la-Sorgue, começou a cair um chuvisco tímido, o que, nestes dias de canícula de Agosto, tem um sabor especial e gratificante. Guardando o livro para evitar que ele se molhasse, fiquei alguns instantes sentado, a receber esta chuva miúda de verão, agradecido a estas inesperadas gotas que vêm suavizar o ardor das tardes abrasadoras. No fundo, intuindo talvez, quem sabe?, que vai ser cada vez mais difícil, no Portugalito à beira da bancarrota, vir até aqui prestar o meu preito de apaixonado pela Provença, esta chuvinha enche-me de júbilo, como se ela  fosse intencional, por ser, esta mesma região que amo a pedir-me desculpa por estes últimos dias de calor excessivo.

 
 
 João Medina

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Um dia, uma fotografia.

. . 7. 7
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Fotografia de Werner Bischof

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (11).








23-VIII                                                                                         
Isle-sur-la-Sorgue

 

Esta, sim, é uma das mais míticas aldeias provençais, celebrizada ainda por nela terem vivido algumas das grandes figuras da cultura francesa, tal como René Char, sendo uma das encruzilhadas que não cesso de visitar quando volto ao Midi. O seu nome é desde logo feliz, já que ela consiste, antes de mais, numa verdadeira ilha aldeã de verdura, abraçada por dois canais do rio Sorgue, que a envolve de frescura, de modo que em poucos locais desta região abençoada sabe tão bem flainar, passando por pequenas pontes, ao lado de várias rodas de alcatruzes de madeira – que agora são uma dezena e meia – que fazem circular estas águas oriundas da fonte de Vaucluse, a poucos quilómetros daqui, umas das águas-vivas mais atraentes da terra, com plátanos que a protegem de sombras os que nas suas lojas de antiguidades buscam os seus tesouros escondidos. Para mim, Isle é antes de mais uma terra com um alfarrabista que me apraz visitar, já que encontro sempre livros que me deslumbram sem me deixarem a bolsa vazia. Ainda anteontem aqui achei uma luxuosa edição da Odisseia em francês publicada pela Hatier, com apresentação de Erich Lessing e diversos estudos preciosos de Michel Gall e de Henrich Schliemann sobre Ítaca e ainda um erudito introdução ao mundo das imagens odisseicas por Hellmuth Sochtermann. É um verdadeiro regalo folhear este livro enorme, colorido e inteligente, dando do herói das mil astúcias um retrato ao mesmo tempo visual, marítimo e terrestre, com esse perpétuo Mediterrâneo obstinadamente atravessado pelo marido de Penélope no seu desejo de regressar ao lar.
 
 
João Medina
 
 
  

domingo, 23 de junho de 2013

Um dia, uma fotografia.

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Anna Magnani

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (10).





 
 
 
 
 




22-VIII                                                                       
O gato de Bonnieux

 

Devemos ainda ao casal de primos Susana e José, um hábito que tomaram desde que aqui se instalaram para uma breve estadia na nossa vivenda campestre, o de irem depois do jantar visitar Bonnieux, cuja vida se transfigura desde que o sol se põe, com os cafés e restaurantes pejados de gente nas esplanadas, a saborearem a frescura da noite provençal ou a visitarem as inúmeras pequenas lojas abertas, em especial as galerias de arte que aqui proliferam. Desconhecíamos este charme nocturno de Bonnieux, com o lazer de passar pelas ruelas estreitas e empinadas, vendo ao longe, nas faldas do Luberon ou nas do monte Ventoux, as luzinhas trémulas das aldeias que nos rodeiam, a começar com a tão próxima Lacoste, tão branca e tão bela de dia como à noite, nada conforme com a lenda sadiana que o seu nome envolve.

Numa dessas passeatas nocturnas por Bonnieux, passámos pelo rebordo dumas janela fechada, onde um bonito gato branco, com listas castanhas na cabeça e no dorso, se levantou ao ver-nos passar, como que a pedir carícias. Fiz-lhe várias festas, o que muito lhe agradou, enrolando-se deliciado, a solicitar os meus afagos de amigo dos felinos, facto que ele decerto intuíra. Depois, cerca de uma hora mais tarde, passámos de novo por aquela janela e voltámos a encontrar o mesmo bichano no parapeito da janela cerrada, agora adormecido. Mas logo acordou ao ouvir as nossas vozes, manifestando vontade de receber mais afagos, o que lhe demos. E este gato tão sossegado e amistoso, no seu recanto de janela onde talvez habitasse, ficou-me como a imagem mesmo a hospitalidade desta terra que este ano elegemos para a nossa estadia mensal. E, por coincidência, ontem mesmo mandei para Portugal dois postais ilustrados de Bonnieux onde apareciam gatos, como se estes fizessem parte da imagem própria desta aldeia, ao lado das suas igrejinhas e pracetas com abetos do Líbano.

O que nos fez lembrar o sucedido com outro gato, desta vez no momento em que tomávamos posse do nosso apartamento acabado de alugar, em Aix, em 1970, uma vez que, ao entrarmos nessa nossa nova habitação, arrastando malas e sacos, apareceu um gato preto que se introduziu de rompante nela. Em vão tentámos enxotar este gato preto de pelo farto, aliás bastante carinhoso e que dava mostras evidentes de ter vivido ali como animal doméstico antes de o apartamento vagar e nós chegarmos. O problema é que o bichano tinha o péssimo hábito de, a meio da noite, dar saltos para abrir a maçaneta da porta de entrada, mostrando assim que queria sair, não havendo maneira de o dissuadir ou sossegar, a não ser deixá-lo partir, indo ao rés-do-chão para lhe abrir a porta do prédio. O problema é que, de madrugada, conseguia subir ao nosso primeiro andar, miando a pedir que lhe abríssemos a porta. Como a situação se tornasse insuportável, decidimos, com grande desgosto dos nossos três filhos, levá-lo para o bairro vizinho do nosso, do outro lado do rio Arc, atirando-o delicadamente para o quintal duma vivenda de luxo que nos pareceu muito apta a receber o gato de costumes inoportunos e tão extravagantes.
 
João Medina


sábado, 22 de junho de 2013

Um dia, uma fotografia.

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Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (9).










21-VIII
Aix revisitada

 

Na companhia da Susana e do marido José, que vieram passar uns curtos dias connosco, voltamos uma vez mais a Aix para uma jornada inteira na minha cidade predilecta, com passeio de comboio eléctrico pela cidade, flainando com necessária lentidão o Cours Mirabeau, a praceta do Tribunal e as ruas e lojas que se estendem em volta do centro histórico. Pedi ao José que me fotografasse sentado no rebordo do tanque dos Quatro Golfinhos, explicando-lhe que este obelisco desempenha na minha mitologia íntima o mesmo que a estação de Perpignan ocupava na de Salvador Dalí, ou seja, são ambos o umbigo do mundo, de modo que aqueles quarteto de golfinhos constituem, na pedra branca em que foram delicadamente cinzelados, uma espécie de bússola benevolente no meu caminho de infalível retorno a Ítaca. Engenheiro químico, portanto pouco sensível a estas extravagâncias literárias, o Zé não entende muito bem o que quero dizer com esta explicação, mas faz duas ou três fotos minhas no centro da praceta, prestando a devida homenagem de gratidão aqueles cetáceos que considero ligados a uma errância que só terminou em 1974. Mas dispenso-me de lhe dizer que aqueles quatro golfinhos de minha tão pessoal estimação derramam os seus jorros aquáticos num Mar essencial regido pelos quatro pontos cardeais, sendo eles os meus guias e garantia de que a nau invisível que me transporta pelos mares do Exílio me havia de conduzir ao meu porto.

A passeata até Aix permitiu-me voltar a Lourmarin, visitada também com a devido encanto pelos nossos dois convidados, assim como a aldeia de Cucuron, que sempre considerei a mais típica vinheta de Alphonse Daudet desta Provença que ele celebrou com encantadora sensibilidade e imaginação nas historietas das Cartas do meu Moinho. Todavia, não estou certo de que este livro mencione especialmente Cucuron, até porque, em obras como esta colecção de estórias provençais, o leitor recorrente acaba por misturar com os ambientes descritos pelo autor um ou outro cenário que ele mesmo decidiu adicionar arbitrariamente à memória que guardou da leitura do livro. Quando releio o conto das “Três missas baixas” que o reverendo Balaguère celebrou a correr porque tinha à sua espera, em casa, depois de celebrado o seu ofício religioso, uma ceia magnífica de carnes e vinhos papais, imagino sempre que a aldeia onde fica o castelo de Triquelage, em cuja capela o abade, vítima da sua gula, despachara o seu ofício para mais depressa ir saborear a ceia de Natal que o espera, lugarejo aliás não nomeado por Daudet, seria mesmo este. De modo que não se pode dizer que a aldeia em que se passa esta história de danação dum padre que perdeu o paraíso por ter atropelado o seu ofício das missas natalícias, fosse precisamente esta Cucuron das telhas cor de rosa, empoleirada num rochedo do Luberon, a terra das oliveiras e da boa cozinha, onde um bom cura pode perder o paraíso, espicaçado pelo Demo, por ter tido gula na noite de Natal.

Como são turistas conscienciosos, Susana e o marido levam-nos ainda, no carro deles, a visitar outros locais míticos do Luberon, como a cubista Gordes ou Rossillon, a aldeia das areias vermelhas. E com esta visita, creio ter cumprido o meu dever de turista anual da Provença, visitada e revisitada tantas vezes, o que me dispensa de aqui voltar nos próximos anos que se adivinham difíceis e pouco propícios a viagens dos pobres Lusíadas coitados!...
 
 
João Medina
 
 

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (8).


 





        





         17-VIII                                                                                
         O castanheiro e o abeto

 

As nossas jornadas estivais nesta casa de campo nos arredores de Bonnieux dividem-se entre os nossos quartos e as longas estadias preguiçosas no terraço virado para o monte Ventoux e o vale do Calavon. Logo de manhã, antes das 8 h, as colinas distantes da montanha são azuladas mas, ao entardecer, vão mudando para tons rosáceos e avermelhados do estio provençal, terminando violetas antes do sol se pôr. O terraço, à sombra do grande castanheiro que nos protege dos ardores do sol é, sem dúvida, o centro dos nossas lazeres, tanto durante e dia como ao anoitecer. A sua som sombra acolhedora, é o âmago do nosso quotidiano de visitantes e turistas, com a vantagem de, no nosso repouso aqui, vermos os seus frutos amarelecerem dia a dia e caírem depois para o chão, ora no terraço, ora no poiso térreo inferior da casa, ali onde o nosso automóvel abóbora à espera das nossas passeatas pelos arredores.

Não paro de olhar e admirar esta árvore frondosa que ritma e marca o nosso dia-a-dia, assim como acolhe as sucessivas revoadas de aves que o habitam em cada fase da jornada. E calculo como será a sua colheita de castanhas este Verão, ficando, segundo creio, pelo meio milhar, ainda que o Sr. Julien, proprietário deste gîte e desta vinhas e pomares em redor, nos garante que este ano foi catastrófica uma doença que deu nas árvores, sobretudo nos castanheiros, que mostram, de facto, as folhas com tendência para secarem de modo demasiado precoce. E acrescenta que, antigamente, estas pragas se combatiam com DDT, mas desde que este foi proibido, agora é deixar que as maleitas façam das árvores o que bem lhes aprouver. Como sou ignaro em tudo o que diz respeito ao mundo rural, não sei que lhe dizer, limitando-me a assistir desolado à galopante secura que devasta a folhagem deste belo castanheiro que, desde os primeiros aqui passados, me encheu duma ternura de que dei conta no começo deste diário. Ele é, o castanheiro doente, o nosso protector, o patrono da nossa breve permanência nesta terra, e decerto não me esquecerei de levar umas quantas castanhas suas para as plantar no Monte Estoril. E lá vamos continuando a tomar as nossas refeições diurnas debaixo da sombra deste nosso guarda-sol adoentado, fazendo votos pelo seu triunfo sobre o desconhecido fungo que o aflige.

Mas uma outra árvore de grande porte merece também a minha tenção especial, um abeto azulado de enorme estatura, bem visível do lado direito do terraço, antes de começarem os compactos vinhedos mais abaixo no campo que nos envolve. Calculo que este abeto terá uns quinze metros de altura, estendendo para o céu perpetuamente limpo as suas ramadas verde-azuladas, muito direitas e preciosamente desenhadas pela sua genética vegetal, num conjunto de rara simetria e elegância que não me canso de admirar, em tudo diferente da confusa ondulação anárquica e bon enfant do nosso castanheiro tutelar. Nas árvores, como no mundo da ética ou na estética dos seres que habitam a terra, há estilos opostos, e este abeto azul e este castanheiro castanho roído por um fungo parecem-me situar-se em mundos antagónicos, cada qual obedecendo a naturezas próprias e decerto contraditórias entre elas. Seja com o for, olhar para este abeto enche-me duma secreta satisfação íntima, no fundo tão forte como admirar um poema excepcional ou observar uma boa pintura.

E é desta relação misteriosa com as nossas irmãs árvores que gostaria de averbar duas ou três reflexões soltas, tanto mais que raramente nos ocorre reflectir sobre a dialéctica que mantemos com as florestas ou até com esta ou aquela árvore isolada, na nossa rua, no nosso jardim mais próximo ou até numa curva da estrada por onde passamos despreocupadamente e sem fito especial. De facto, uma árvore é ser autónomo com o qual não é fácil manter uma relação pessoal e directa, a não quer que a quiséssemos reproduzir num desenho ou num poema, pois não é fácil dialogar com um ser vegetal onde poisa a nossa atenção ou simpatia especial, seja ela um cipreste ou um pinheiro, uma acácia ou um abeto. Há muitos anos atrás, na nossa casa em Galamares, virada para o palacete de Monserrate, na serra de Sintra, habituei-me a dar uma atenção especial a cada uma das árvores do nosso quintal, como se elas fossem vizinhos que compartiam de algum modo o nosso espaço para além da residência propriamente dita, havendo alguns cedros e, em especial, uns quantos pessegueiros que me mereciam especial estima e atenção, recebendo cada um nome individual, parodicamente tirado da antiguidade clássica – o Epaminondas, a Mnemósine, o Ulisses, o Édipo Rei, o Tirésias...




Faltou-me coragem para ir mais longe do que esta tentação de paródia de relações com as árvores e foi preciso passar algumas semanas em Colónia, a dar aulas no âmbito do programa ERASMUS, para sentir quer faltavam florestas na minha vida, já que aquelas que eu conhecera na minha meninice africana não passavam de cenários a que não dera atenção alguma, imaginando-as tão só povoadas de animais ferozes e bichos ainda mais misteriosos. Agora, junto ao Reno, um colega alemão ajudava-me a conhecer em largas passeatas no automóvel dele, durante horas, alguns recantos da floresta de Eiffel, a dois passos da cidade onde ensinava, percebendo melhor até que ponto a alma germânica guardara este fundo – romântico ou bárbaro? – de cultivar relações vitais com florestas envolventes dos espaços burgueses. Nem mesmo os três anos passados nem Estrasburgo me tinham proporcionado a oportunidade de reencontrar ou adquirir esta amor pelas árvores, solitárias ou em massa, como horizonte indispensável para a respiração das nossas almas.
Desse período alsaciano só recordo uma passeata mais longa pela floresta, sobretudo uma, para visitar um campo de internamento nazi, no Struthof, com viçosos canteiros circundantes ornados de flores admiráveis, havendo no meio deles uma placa de pedra encimada pela inscrição latina Ossa humiliata (ossos humilhados), com uma explicação que me petrificou: aquelas flores tinham sido plantadas pelos guardas hitlerianos daquele campo destinado a encarcerar elementos políticos franceses resistentes, depois encaminhados para outros campos mais temerosos, embora alguns tivessem sido aproveitados por médicos dementes para experiências pseudomédicas. O que valeu a muitos a morte, sendo os seus corpos queimados e as suas cinzas utilizadas então para fertilizarem aquelas hortenses gloriosas que continuavam a ornar agora o antigo campo de concentração alsaciano, num cume da cadeia dos Vosgos.
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Desenho de Rudolf Naess, deportado do KL-Natzweiler
 



 
Miro de novo o meu abeto azulado e sinto que há nele um mistério que escapa ao impossível diálogo que tento fazer com esta paisagem provençal que será minha durante um curto mês de sol e lazer, antes de tornar a Portugal para junto dos jacarandás, pinheiros mansos e plátanos do meu Monte Estoril. Com os seus azulados braços muito direitos erguidos ao céu impassível deste estio passado na Provença, este abeto tem um sentido que me escapa de todo em todo, mistério cerrado sobre o seu ser intimo, antes de mais pela sua presença ocasional nesta paisagem com direcção o monte Ventoux ao fundo, como tudo o mais que nos é emprestado pela natureza e pelo acaso, e que só provisoriamente podemos considerar como significando algo na nossa peregrinação pela vida com destino a nenhures.
 
 
João Medina