A
Terra Tem Sede, Guerras e paz nos reinos dos rios,
por Erik Orsenna, Temas e Debates, 2023, é um livro fascinante sobre o acesso à
água, um pouco por todo o mundo. Mais fascinante ainda pela sedução da leitura,
Orsenna regala-nos com uma inesperada visão holística, onde não faltam as
dimensões antropológica, sociológica, política, etnológica e ambiental. Há
mesmo algo de romanesco na sua narrativa, os pormenores tecnocientíficos são
expostos com a singeleza de um mestre da escrita (Orsenna tem recebido prémios
literários, como o Goncourt). Lançou-se a esta aventura alegando haver cinco
fortes motivos: o rio é água, é um caminho que viaja, é uma força que só pede
para vir ajudar-nos, é um reino onde não faltam lendas, religiosidade e o
desenvolvimento de civilizações, e é também o Tempo, o tempo que passa e o
tempo que faz. E dirá também que a Terra tem sede. “É essa a principal razão
pela qual a maior parte dos rios deixou de proporcionar água suficiente para
responder ao aumento das necessidades. Recebendo menos das suas fontes –
chuvas, neves ou glaciares – como querem que deem o suficiente a uma população
mundial cada vez mais numerosa, cada vez mais consumidora, quero eu dizer mais
esbanjadora?”
E
começa a sua viagem pelo Danúbio e o Reno, caminha para o próximo oriente e
visita o Tigre, o Eufrates e o Jordão, em plena Ásia o Ganges, o Bramaputra, o
Mekong, os rios Vermelho e Amarelo; segue-se a Austrália, o Darling e o Murray;
atravessa-se o Pacífico e começa-se na América do Norte, o São Lourenço, o
Mississípi e o falecido Colorado, o Panamá que é mais rio do que canal, os rios
opulentos da América do Sul, obrigatoriamente o gigante Amazonas; e depois os
grandes rios africanos, o Senegal, o Níger, o Congo e o Nilo, não faltarão
advertências finais.
A
leitura de tão saltitante, peripatética, viagem irá preocupar-nos: o Garona
está seco, há falhas de gestão aqui e acolá; fez-se triunfar a via rodoviária,
poluente, rios importantes deixaram de ser utilizados como vias de transporte
de mercadorias; iremos ouvir falar de conflitos de água, na partilha/uso,
veremos os efeitos da poluição e o preço da mudança climática, com inundações,
a salinização dos deltas e a degradação da agricultura; a política estará
sempre presente, Saddam Hussein mandou secar o Chatt-El-Arab, culminou num
desastre ecológico e na deslocação de xiitas, seus inimigos; a barragem turca
de IIlsu submergiu habitações trogloditas dos curdos; o Jordão apropriado pelos
israelitas, os palestinianos deixados à míngua; e há depois aquela moldura em
que se mistura a religião e o frenesim industrial, é o caso da Índia e da
China; esta, que em 20% da população mundial apenas dispõe de 6% dos recursos
hídricos do planeta, e que bem ou mal, sendo um dos maiores poluidores recorre
à ciência e à tecnologia na proteção ecológica e ambiental.
O
autor deixa-nos registos tremendos de como o uso da água pode matar povos. Ele
está em Calcutá e alguém lhe diz que como ele vai no dia seguinte para o
Bangladesh que diga às autoridades locais que não podem receber mais ninguém.
Um ministro em Daca, o ministro da Gestão das Águas, leva Orsenna até um enorme
mapa de Bengala. “Uma vez que dentro de algumas horas vai regressar a Calcutá,
confio-lhe uma mensagem para o seu amigo indiano. Se essas pessoas não
tivessem, sem nos dizer uma palavra, construído, em Farakka, uma barragem sobre
o Ganges, não teríamos esta desgraça. Sabe o que é o nosso Bangladesh? Um
delta. E de que é feito um delta? De todos os sedimentos arrastados desde
montante. Quando deixa de receber sedimentos, quando uma barragem impede os sedimentos
de chegar até ele, o delta morre. Compreende? Há outra coisa. Para que serve
também um rio? Para lutar contra o mar. A sua corrente de água doce impede que
a água salgada se sinta demasiado à vontade em nossa casa. Quando uma barragem
reduz o caudal do rio, impede-o de desempenhar o seu papel protetor. Continua a
seguir-me? Quando voltar a ver os seus caros amigos indianos que já não
suportam ver os meus compatriotas entrar-lhes portas dentro, diga-lhes que, se
não tivessem construído essa barragem iniqua, o Bangladesh continuaria a
receber o que lhe é devido, os sedimentos do Ganges, a única coisa que permite
manter-se à tona. E o mar deixaria de invadir-nos. E sabe com que
consequências, além de inundar as nossas aldeias?” E explica-lhe outra consequência
a que o aquecimento global não é alheio.
A
aceleração da China, um cavalo a galope, é uma permanente transmutação. “Não
tem alternativa. Como alimentar tantas pessoas, como oferecer-lhes o que
reclamam, um modo de vida ‘ocidental’, sob pena de revolta? Como desenvolver
suficientemente depressa um tal país antes que envelheça? Como acrescentar
todos os anos à classe média 20 milhões de pretendentes? Como manter este
crescimento louco sem destruir a natureza?” E há a falta de água. A China é
filha do rio Amarelo, Orsenna irá percorrer projetos e realizações.
Sem
nos determos na Austrália, somos surpreendidos quando o autor, na região dos
Grandes Lagos, entre os Estados Unidos e o Canadá, nos informa que contêm um
quarto de todas as reservas de água doce do planeta. Ficaremos a saber que o
Mississípi corre riscos gravíssimos, o futuro de Nova Orleães e até o do
Louisiana está tudo menos garantido. Os efeitos da globalização não são
inócuos. Estamos na América e vamos ouvir falar do Mar Negro, um navio daqui
oriundo, num dia de 2003, lava os seus tanques no Michigan, estava a oferecer à
América um mexilhão com cerca de 2 cm de comprimento e dotado de uma
vertiginosa capacidade de reprodução. Esta espécie de mexilhão acabou com o
fitoplâncton, a cadeia alimentar foi quebrada, os pesqueiros encerraram, as
águas do Michigan aqueceram, haverá consequências no Mississípi.
Falando
das pragas do Níger, não se esquece o autor de referir a desflorestação do
Futa-Djalon, a proliferação dos jacintos de água, o terrorismo dos jihadistas,
a poluição das águas e dos solos devido às fugas permanentes de pipelines, por
exemplo.
Assegura
o leitor que esta narrativa feita de uma viagem por muitos rios e por
muitíssimos problemas que ameaçam a paz e a segurança mundiais, conclui com um
punhado de sugestões: há que encontrar desesperadamente uma outra maneira de
consumir, reciclar mais é determinante, há que aprender a partilhar inventado o
diálogo e a aceitabilidade. E quanto aos rios, é fulcral conhecê-los melhor,
integrá-los na ação global, respeitá-los (não são um vazador de lixo, prever
escassez com adaptação e reaprender a amá-los, eles são um pilar da nossa
identidade, seguramente um dos maiores desafios para o nosso futuro).
De
leitura obrigatória.
Mário Beja Santos