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Camões, por Júlio Pomar
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CAMÕES EM CONSTÂNCIA?
O SONETO "EL VASO RELUZIENTE Y CRISTALINO"
El
vaso reluziente y cristalino,
De ángeles agua clara y olorosa,
De blanca seda ornado y fresca rosa,
Ligado con cabellos de oro fino,
Bien claro parecía el don divino
Labrado por la mano artificiosa
De aquella blanca Ninfa graciosa
Más que el rubio luzero matutino.
Nel vaso vuestro cuerpo se afigura,
Raxado de los blancos miembros bellos,
Y en el agua vuestra ánima pura;
La seda es la blancura, y los cabellos
Son las prisiones y la ligadura
Con que mi libertad fue asida dellos.
Tradução
literal:
O vaso reluzente e cristalino,
De anjos água clara e olorosa,
De branca seda ornado e fresca rosa,
Ligado com cabelos de ouro fino,
Bem claro parecia o dom divino
Lavrado pela mão artificiosa
Daquela branca Ninfa graciosa
Mais que o ruivo luzeiro matutino.
No vaso vosso corpo se afigura,
Rachado pelos brancos membros belos,
E na água a vossa alma pura;
A seda é a brancura, e os cabelos
São as cadeias e a ligadura
Com que minha liberdade foi presa neles.
O soneto acima foi publicado pela primeira vez na Terceira Parte das Rimas,
edição de D. António Álvares da Cunha, 1688 e, com poucas variantes, tem sido
incluído em todas as principais edições da lírica de Camões, a partir da do
Visconde de Juromenha (1861). Não figura no "cânone mínimo"
estabelecido por Leodegário A. de Azevedo Filho (Lírica de Camões, 1.
História, metodologia, corpus, Lisboa, INCM, 1985, pp. 215 e 292), por não
preencher nenhum dos requisitos de autenticidade exigidos por este camonista.
Tal facto não significa, como reitera uma e outra vez o saudoso erudito brasileiro,
que a composição necessariamente não pertença a Camões, pois o seu método de
aferição é essencialmente dinâmico e o cânone dele resultante tem caráter
meramente afirmativo, estando aberto à inclusão de outras obras, à medida que a
descoberta de manuscritos quinhentistas hoje desconhecidos ou inacessíveis
lhes venha conferir autenticidade. Esta composição, pelo menos, jamais foi
atribuída especificamente a outro autor.
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O próprio Juromenha declarou duvidar muito que fosse de Camões (Vol. II, p.
488). Mas, como vimos, não foi rejeitada por nenhum editor moderno, à exceção
de Azevedo Filho.
O objetivo deste ensaio não é nem afirmar nem negar a sua autenticidade, mas
simplesmente buscar interpretá-la sob um novo prisma, segundo o qual,
aceitando-se, por hipótese, certos pressupostos de natureza biográfica,
poder-se-á admitir a probabilidade da autoria camoniana. Fazemo-lo tendo em
mente estas observações de Maria de Lurdes Saraiva (Luís de Camões, Lírica
Completa I, Lisboa, INCM, 1980, pp. 13-14):
Muitos passos da obra de Camões que hoje nos parecem herméticos e
incompreensíveis, tornar-se-iam transparentes se conseguíssemos
encontrar a chave adequada. É a este esforço de decifração que teremos de
aplicar-nos e de que não podemos demitir-nos. Os eruditos e estudiosos têm-se
limitado quase exclusivamente a analisar particularidades
estilísticas e os aspectos linguísticos da obra do Poeta, desinteressando-se
quase por completo da mensagem biográfica nela contida.
Em algumas edições modernas, tem-se considerado que, no soneto em exame, o
Poeta compara a amada a um precioso vaso cristalino, contendo um líquido
perfumado, adornado de seda e fios de ouro. Em nosso entender, é esta uma
interpretração iludida, sugerida por uma leitura não alerta para a natureza
críptica da composição. Aquela comparação encerra uma imagem indigente do ponto
de vista poético, dificilmente admissível num gênio com a sensibilidade de
Camões, se foi ele o autor. Além do que não é suficiente para
explicar todas as partes do poema, em especial o segundo quarteto, cujo sentido
fica no ar. Se assim não fosse, Wilhelm Storck não o teria intitulado Adivinhando,
em sua tradução para o alemão, acrescentando que ela deixava ao leitor muito
por adivinhar. Nem Juromenha teria afirmado ser necessário possuir a chave da
charada para que o enigma fosse resolvido (Cf. Cleonice Serôa da Motta
Berardinelli, Sonetos de Camões. 'Corpus' dos Sonetos Camonianos, Braga,
Barbosa & Xavier, 1980, p. 567). Estes eruditos sabiam que havia algo mais
consistente sob a enganosa aparência do "falar trocado", um dos
ingredientes mais prestigiosos do arsenal poético do "discreto",
novamente nas palavras de M. de L. Saraiva (op. cit., p. 13). Apenas não
chegaram a perceber o que era, talvez por não disporem, em seu tempo, de todos
os dados hoje ao nosso alcance. A maioria dos editores nem se animou a aventar
suposições.
Em nossa opinião, o soneto pode estar relacionado com o problemático
"desterro ribatejano" do Poeta, em torno de 1550, presumivelmente na
antiga Punhete, chamada Constância a partir de 1836, vila situada na
confluência dos rios Tejo e Zêzere. Não é nosso intuito tomar partido na
polêmica que cerca esta tradição, por muitos, a partir de Adriano Burguete (Luís
de Camões em Constância, Lisboa, Vol. I, 1942; Vol. II, 1947), defendida
ardorosamente com argumentos indiretos, mas até agora, ao que nos consta, sem
suficiente confirmação documental, ainda que com consagração oficial, como a
construção da Casa-Memória de Camões sobre as ruínas da que o teria acolhido e
a criação, ao seu pé, do Jardim Horto de Camões. Reportamo-nos, a este respeito,
a obras de estudiosos que, com mais isenção, têm-se dedicado a essa
investigação de maneira desapaixonada, como Maria Clara Pereira da Costa (Da
Investigação Histórica sobre a Casa de Camões em Constância, Lisboa, 1977)
e José Hermano Saraiva (Vida Ignorada de Camões, 2.ª ed., Mem Martins,
Publicações Europa-América, s.d., pp. 240-254).
Admitindo, por hipótese, que a tradição seja procedente, e independentemente do
facto de a eventual residência do Poeta no Ribatejo ter sido como verdadeiro
prisioneiro ou simples degredado acolhido na casa de amigos poderosos,
deduzimos que o soneto, pelo ambiente e pelo assunto, possa estar associado a
esse perído e tenha o significado que passamos a expor. Esclarecemos que, na
identificação de outras obras camonianas, adotamos, quando couber, a numeração
tradicional.
Embora Camões, em algumas obras, tenha empregado o termo "vaso" para
designar "recipiente" ou "receptáculo" (p. ex., Lus.,
IX, 17, 8; Écloga VI, v. 225; Ode V, v. 16; Canção X, v. 245; Sonetos "No
mundo poucos anos e cansados", v. 11 e "Já claro vejo bem, já bem
conheço", v. 7), no soneto em questão tem ele o sentido de
"artéria" ou "veia", conduto pelo qual circula um líquido
(significado comum aos idiomas espanhol e português) e, figurativamente, um
curso de água, um rio afinal, reluzente ao sol, de água cristalina, clara e
cheirosa. E que rio será este? Sem dúvida, como procuraremos demonstrar, o
Tejo, o grande inspirador de Camões e morada das suas musas, as Tágides. Por
sinal, na Écloga "Agora, já que o Tejo nos rodeia", incluída entre as
obras de Camões na edição de Juromenha, excluída pelos editores seguintes, mas
resgatada do olvido para o acervo camoniano, como poema de autoria
problemática, por M. de L. Saraiva (op. cit., III, pp. 576-585),
recuperação também defendida por J. H. Saraiva (op. cit., p. 151),
aparece um símile equivalente, com a palavra "veia": "o Tejo nos
rodeia, / neste penedo, donde mansamente / murmurando se quebra a branda
veia". O mesmo ocorre em duas elegias da área camoniana contestada:
"Entre rústicas serras e fragosas", v. 54 ("que encrespam da
corrente a branca veia") e "Belisa, único bem desta alma
triste", v. 63 ("mas do meu choro nunca enxuga a veia"). Donde
se depreende que, mesmo que tais obras não sejam de Camões, a imagem era assaz
frequente na poesia de sua época.
Os epítetos "cristalino" e "claro" são aplicados inúmeras
vezes, algumas delas simultaneamente, por Camões ao Tejo: Écloga I, vv. 136,
138, 159 e 366; Écloga II, v. 54; Écloga III, vv. 129 e 141; Ode VI, v. 893;
Elegia III, chamada muitas vezes elegia do desterro, v. 63; Elegia VIII,
v. 102; Soneto "Moradoras gentis e delicadas", v. 2; Soneto
"Cuanto tiempo ha que lloro un día triste", vv. 3-4; e Lus.,
III, 42, 4 e 55, 8. Esses mesmos qualificativos são empregados em relação ao
Tejo por Garcilaso de la Vega, na Écloga III, vv. 65 e 197. Sabemos quanto
Camões admirou o poeta castelhano e deixou-se influenciar por suas obras.
Várias da éclogas camonianas são calcadas ou parcialmente inspiradas nas de
Garcilaso, imitando-o a cada passo, como reconhece até Manuel de Faria e Sousa,
tão incondicional admirador do êmulo lusitano (Rimas Varias de Luis de
Camoens, Segunda Parte, T. V, Lisboa, Imprenta Craesbeeckiana, 1688, p.
160).
Cleonice Barardinelli (loc. cit.) comenta que agua de ángeles era
um perfume muito em moda na época, e cita Moraes, segundo o qual seria
"distil. de várias hervas aromáticas". Mas a definição completa de
Moraes (pelo menos na 10ª edição do Grande Diccionário da Língua Portuguesa
é: "Água-de-ângeles, s.f. Líquido de perfume muito suave que se usava
antigamente e provinha da distilação da água potável [grifo nosso] com o
âmbar, o almíscar, a algália e outras drogas odoríferas". Ora, este soneto
está escrito em espanhol e, de acordo com o Diccionario de la Real Academia
Española, agua de ángeles é "agua perfumada con el aroma de
flores de varias clases", o que soa bastante diferente. De qualquer forma,
o importante a salientar, nos dois casos, é que se trata de um perfume à base
de água, como a água-de-rosas, e não à base de álcool, como a água de Colônia
ou a água-de-cheiro. O que o Poeta deseja declarar é que a água do rio é
perfumada pelas flores do terreno adjacente. Aliás, referindo-se ao Tejo em
outras composições, Camões fala das flores que lhe enfeitam as margens:
"brancas rosas" (Écloga I, v. 17), "flores brancas e
vermelhas" (id., v. 129), "brancas flores" (Écloga III, v. 5) e
"frescas rosas" (Soneto "Levantai, minhas Tágides, a
frente", v. 3).
O sentido da palavra seda apresenta-se-nos um pouco mais complexo. No
soneto "Alà em Monte Rey, em Bal de Laça" (ou "Leça"),
alegadamente escrito em língua galega, incluído na Terceira Parte das Rimas
(cit.) mas atribuído a Diogo Bernardes no Índice do Cancioneiro do Padre
Pedro Ribeiro, o verso 5 fala de seda lassa, isto é, seda frouxa ou
fios de seda não torcidos, que a pastora Biolante vai tirando de um copo
(feixe, estriga, meada) à beira dum rio. A cena passa-se numa aldeia da Galiza,
pouco distante de fronteira trasmontana. J. H. Saraiva (op. cit., p.
140) interpreta essa seda lassa como sendo os cabelos que a jovem está
penteando.
Não sabemos se deste antecedente ̶ que, a ser de Camões, pensa-se
que estaria entre seus primeiros experimentos poéticos ̶ deva-se concluir que,
no soneto que estamos procurando decifrar, sendo óbvio que não se trata de
cabelos, o Poeta se refira a fios de seda natural ou a casulos de bômbix,
possivelmente a secarem ao sol. Seria preciso demonstrar a existência de
criação do bicho-da-seda em Punhete no século XVI, de que não conseguimos
encontrar notícia certa, embora o seu cultivo já estivesse então estendido por
quase todo o território português, mas com maior implantação no Norte
(Trás-os-Montes).
No inventário feito, no início do século XVII, dos bens deixados por D.
Madalena de Lafetá a seu filho D. Francisco de Sande, 4.º Senhor de Punhete, e
no testamento deste, que instituiu o Morgado de Punhete em 1620, há referências
a "um pomar na ribeira da Moreira", a um "pomar na
moreira", à "Amoreira" (no inventário) e à "quinta da
Amoreira" ou "quinta da Moreira", vinculada às casas da Vila de
Punhete como cabeça do Morgado (no testamento) (Cf. Pereira da Costa, op.
cit., pp. 188-190, 200 e 202). Não há, nestes documentos, nenhuma menção
explícita ao cultivo do bicho-da-seda, mas, como se sabe, a folha da amoreira
usa-se para alimentar as criações de sirgo. Entretanto, a árvore era também
cultivada pelos seus frutos, pois tratava-se da amoreira negra ou preta (Morus
nigra, L.), amoreira dos frutos (Cf. João Ignacio Teixeira de Menezes
Pimentel, Sericultura Portuguesa, Lisboa, 1902, pp. 10-11). O topônimo
Amoreira ainda persiste nas proximidades de Constância.
O verso seguinte contém diferentes conotações apropriadas à presente
interpretação. Representa-se-nos uma seara de trigo. Às espigas maduras deste
cereal aplicam-se habitualmente, em poesia, os epítetos dourado, louro, fulvo,
flavo. Na Elegia "Agora, já que o Tejo nos rodeia", atrás citada, o
verso 30 é "nos seus molhos atando o louro trigo". O símile aqui
usado é frequente em Camões.
Na Redondilha "Guardai-me esses olhos belos", o verso 5 da segunda
glosa diz "cabelos de ouro mais fino". Na Ode XIII, o verso 4 é
"soltando seus cabelos d'ouro fino". A referir, também, o incipit
do Soneto "Ondados fios d'ouro reluzente" e os versos 2 e 3 do Soneto
"Dizei, senhora, da beleza ideia": "para fazerdes esse áureo
crino, / onde fostes buscar esse ouro fino?". A alusão ao ouro pode estar
relacionada com a fama do conteúdo aurífero das areias do Tejo, explorada tanto
por Garcilaso quanto por Camões e outros poetas. Camões o faz na Elegia I, vv.
95-96, "ou por colherdes ouro rutilante / das tágicas areias rico
fruto"; na Écloga VIII, v. 50: "Areia de ouro que o rico Tejo
espraia"; na Canção XI, v. 28, "Que o levar as areias do fino
ouro"; no Soneto "Em um batel que, com doce meneio, v. 2, "O
aurífero Tejo devidia"; em Lus., V, 99, 7-8, "Nem as ninfas do
Tejo, que deixassem / As telas de ouro fino e que cantassem".
Este ouro servia para elaborar os fios com que as ninfas do rio teciam suas
telas, o que vem muito a propósito em confronto com o segundo quarteto do
soneto em exame, como veremos. Eis os versos 105-112 da Écloga III de
Garcilaso, na tradução do poeta português José Bento (Garcilaso de la Vega, Antologia
Poética, Lisboa, Assírio & Alvim, 1986, p. 175):
As telas eram feitas e tecidas,
do ouro que o opulento Tejo envia,
apurado após serem escolhidas
num crivo as areias onde o havia,
e de umas verdes algas, reduzidas
a fibra sutil, qual se requeria,
para seguir o estilo delicado
do ouro, em ricos fios estirado.
Esta obra de Garcilaso é também evocada nas Éclogas II, vv. 221-227 e VII, vv. 64-110,
de Camões, e na sua Elegia "Correntes águas frias do Mondego", vv.
22-30.
O segundo quarteto do nosso soneto tem sabor nitidamente garcilasiano, estando
inegavelmente inspirado na referida écloga do grande colega espanhol de Camões,
o que confirma a identificação feita, no quarteto anterior, do vaso como
sendo o rio Tejo. Nele utiliza-se muitas expressões que aparecem na composição
de Garcilaso, como passamos a indicar: cristalino (Tajo, v. 65), cabellos
de oro fino (v. 69), arteficio (v. 117), labrado (v. 118), blanca
(Ninfa=Nise, v. 194) e claro (Tajo, v. 197). Na écloga
de Garcilaso, a ninfa Nise é qualificada de que en hermosura par no tiene,
no verso 56, e de blanca, no verso 193. O autor do soneto designa sua
ninfa blanca e graciosa más que el rubio luzero matutino, isto é,
mais que a estrela-matutina ou estrela d'alva, pelos antigos também chamada
Lúcifer, e que vem a ser o planeta Vênus, deusa da beleza, o que vale dizer uma
beleza sem igual, como afirmava Garcilaso.
Lembre-se que o episódio narrado pelo vate espanhol decorre "perto do
Tejo" ("cerca del Tajo, en soledad amena", v. 57), verso tão
conhecido que era justamente o que, no poema burlesco quinhentista As Cortes
do Parnaso, de Diogo de Sousa, diz-se que Garcilaso vinha cantando, vindo
Camões logo atrás dele. Por sinal, o próprio Camões, nas Oitavas "Quem
pode ser no mundo tão quieto", escreve, nos versos 207-208: "passara
celebrando o Tejo ufano / o brando e doce Lasso castelhano". O trecho da
écloga que se relaciona com o segundo quarteto do soneto camoniano fala da
ninfa Nise (nome que constitui anagrama de Inês e que J. H. Saraiva considera
também criptônimo de Joana, uma das amadas de Camões e possível motivo de seu
desterro ribatejano ─ op. cit., p. 252), que tece uma fina tela
("don divino", no soneto) com fios de ouro, na qual se retrata o Tejo
no ponto em que banha a cidade de Toledo, quase circundando-a (vv. 193-216),
situação que muito se assemelha à de Constância, edificada num outeiro junto de
onde o rio Zêzere entra no Tejo. Acrescente-se que, na mesma composição,
Garcilaso emprega, muito antes de Camões, para uma ninfa do Tejo, o nome
Dinâmene, o qual, na sua forma paroxítona, viria a tornar-se tão caro ao poeta
português.
Talvez esse constante contraponto com poemas de Garcilaso seja o motivo de este
soneto ter sido escrito em espanhol.
Esta permanente ambiguidade no significado de cada imagem, que vimos apontando,
é perfeitamente normal neste gênero de composição sigilosa, em que a intenção
do autor é justamente confundir o leitor e eludir, mediante aparências falsas e
dúbias, a identificação precisa, que poderia ser comprometedora, das pessoas,
lugares e situações. Não fora Camões "o grande mestre das subtilezas do
falar trocado", nas palavras de J. H. Saraiva (op cit., p. 384)! A
imagem fundamental é a do rio, que nos parece indiscutível. As demais são
accessórias e, para elas, tanto pode valer uma explicação como outra, ou todas
a um tempo, contanto que sejam lógicas e verosímeis.
Analisada a primeira parte do soneto, passemos ao exame dos tercetos, onde se
procede à comparação de uma pessoa ̶ presumivelmente a mulher
amada ̶ a quem o poeta se dirige, com a paisagem antes descrita,
fazendo a analogia de cada uma de suas principais partes ou qualidades (corpo,
membros, alma , tez e cabelos) com os aspectos destacados naquela.
Para bem apreender o símile, é preciso imaginar o autor a contemplar a paisagem
desde uma eminência: poderia ser o outeiro referido no verso 50 da elegia do
desterro ("Constância estende-se pela base e encostas dum alto monte,
banhado pelo Tejo e Zêzere" ̶ A. Burguete, op. cit., Vol. I,
p. 45), a torre de menagem do Palácio dos Sandes ̶ antigo Castelo
de Punhete ̶ ou o balcão do segundo andar da Casa dos Arcos
("o Castelo fica na margem e dentro do Tejo, a poucos metros da foz do Zêzere; e a Casa, a poucos metros do Castelo, debruça-se sobre o Tejo, que a visita pelas
cheias grandes" ̶ A. Burguete, op. cit., Vol. I, p. 10), em
Constância, ambos hoje inexistentes; ou até mesmo, se se preferir, a torre do
Castelo de Almourol, situado numa das extremidades duma ilhota de configuração
alongada no meio do Tejo e longitudinal ao seu eixo, não muito abaixo de
Constância. Dos locais da vila, sua vista abarcaria um amplo panorama da
confluência do Tejo com o Zêzere (ou somente do Tejo, na hipótese Almourol) e
os terrenos convizinhos. Tanto num caso como no outro, ele veria o curso
d'água dividir-se em dois ramos, rachar-se, fender-se (raxado, que, em
espanhol moderno, grafar-se-ia rajado, significa em português
"rachado", "fendido", "partido"): em Constância,
na forquilha formada no encontro das duas correntes; em Almourol, na divisão
das águas do Tejo pela intersecção da ilha. Em Constância, parece que o ponto
ideal de observação seria a torre do Palácio dos Sandes, que ficava "na
margem e dentro do Tejo, a poucos metros da foz do Zêzere" (A. Burguete, ibidem).
O curso do Tejo, a jusante, figuraria o corpo da mulher, mais propriamente o
seu tronco; os dois ramos resultantes dessa separação constituem os membros
inferiores, por melhor dizer, as coxas, às quais tanto se poderia aplicar o
qualificativo blancas como blandas, variante esta que aparece nas
edições de Juromenha e de Teófilo Braga.
A água clara do rio representa a alma pura da mulher. Os casulos brancos de
seda figuram a cútis, e os molhos amarelos de trigo, amarrados em medas,
representam os cabelos louros atados, em que a liberdade do Poeta foi apanhada.
Nos versos 1-3 da redondilha de Camões "Guardai-me esses olhos
belos", já trazida à colação, aparece uma imagem semelhante a esta última:
"De laços de ouro tão belos / pretende Amor fazer molhos / para prender
quem ousa vê-los". Ainda aqui há uma reminiscência de Garcilaso, que, na
canção IV, versos 101-103, diz:
De los cabellos de oro fue tejida
la red que fabricó mi sentimiento,
do mi razón revuelta y enredada, ...
por sua vez já
imitado de antecedentes italianos, como Ariosto, num soneto de suas Rimas:
La rette fu di queste fila d'oro
In che'l mio pensier vago intricò l'ale, ...
A comparação pode ser forçada, especialmente para quem não tenha contemplado a
paisagem, mas é altamente poética. Quão longe estamos da prosaica analogia da
amada com um jarro de flores rachado ou um frasco de perfume de formato
caprichoso, acondicionado em embalagem de luxo, que poderia resultar duma
observação desprevenida!
A menção final à privação da liberdade, enleada nos cabelos da mulher, pode
conter uma alusão aos motivos da estada do Poeta no local: desterro, degredo,
refúgio, prisão? Grande incógnita!
Sobre o aspecto da paisagem actual em relação à do século XVI, há que assinalar
o grande assoreamento sofrido pelo Tejo e a considerável redução do caudal do
Zêzere, em consequência da construção da barragem de Castelo de Bode. Estes
factos podem dificultar sensivelmente a compreensão do observador moderno para
a imagem que o Poeta concebia quatro séculos atrás. Grande alteração devem ter
experimentado também a vegetação circundante e as actividades econômicas da
ribeira. Poderia perfeitamente existir então um trigal na margem oposta do
Tejo, onde via-se, até alguns anos atrás, quando por ali andamos, uma indústria
corticeira. A configuração escarpada das margens do rio em Almourol dificulta a
acomodação de algumas das imagens do símile, razão pela qual nossa preferência
inclina-se para Constância.
Alimentamos a esperança de poder contribuir, com este modesto artigo, para
ajudar a evocação desse panorama ainda hoje tão belo, mas não tanto quanto o
seria quando Camões teria sido possivelmente inspirado a imaginar nele a figura
da mulher amada.
Rubem Amaral Jr.
Clap...Clap...Clap...
ResponderEliminarParabéns ! Um primor de erudição e análise que muito enriquece a quem se deteve no tempo para usufruí-lo. Meus aplausos em onamatopéicas que como linguagem de quadrinhos é o meu chão.
Do modesto sapateiro seu admirador e amigo.
Athos
Obrigado Athos.
EliminarAbraço doRubem
Mais exacto, como você sabe, seria perguntar: "Camões em Punhete?"
ResponderEliminarFoi a dinastia de Bragança que acabou com as Punhetes em Portugal.
É mesmo essa uma das suas maiores glórias, se não a maior. Havia três Punhetes no nosso país. Essa de que fala passou a Vila Nova de Constança, e não Constância, segundo leio no Fialho, Vida Irónica (1892), p. 39. A última, no concelho de Oliveira do Hospital, passou a chamar-se Aldeia Formosa. Para assinalar este feliz acontecimento na história pátria, Fialho escreveu uma crónica que incluiu no dito livro, intitulada: "El-Rei D. Carlos mostra a sua real munificência, extinguindo Punhete". É de ler, que tem graça e é de graça.
Obrigado pelo comentário. De facto, do ponto de vista histórico-cronológico, tem toda razão, mas, por motivo de eufonia, no título preferi poupar o Malomil e seguir a lição pudica de Adriano Burguete. José Hermano Saraiva ironiza sobre o antigo nome da vila no seu livro que cito. Em todo caso, não deixei de registá-lo no texto.
EliminarExcelente artigo sobre um tema fascinante.
ResponderEliminarGostei.
ResponderEliminarSeria interessante explorar também a personagem «Urbano» da «Lusitânia Transformada» de Fernão Álvares do Oriente, que António Cirurgião defende ser Camões. O cenário central da obra publicada em 1608 é... junto a Constância.