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Márcio Sousa marcou os
golos que deram o último título a Portugal. Mas aos 27 anos nunca chegou a
jogar na Liga.
Por:Leonardo Ralha
Foi no espaço deixado
vago entre um central e um lateral espanhol que Márcio Sousa encontrou a bola,
colocada com peso e medida por João Coimbra. Deixou-a bater uma vez no relvado,
à entrada da grande área, e chutou com o pé esquerdo, fora do alcance do
guarda-redes. Mais de oito mil pessoas gritaram aos 22 minutos de jogo nas
bancadas do Estádio do Fontelo, em Viseu, que recebia a final do Europeu de
sub-17 de 2003. Sofreriam no início da segunda parte, quando o adversário
empatou, mas o pé esquerdo do pequeno médio dos juvenis do FC Porto voltou a
ser decisivo cinco minutos depois, num livre a que Adán, agora o terceiro
guarda-redes do Real Madrid, não conseguiu chegar.
Quando Márcio foi
substituído, aos 77 minutos, entrou para o seu lugar João Moutinho, um médio
igualmente pequeno que despontava no Sporting e era a habitual opção do
selecionador António Violante para refrescar o meio-campo na segunda parte.
"Estávamos todos à espera que o árbitro desse o apito final. Quando
aconteceu, foi uma explosão de alegria", recorda à Domingo, sentado num banco de jardim a poucos metros do
relvado em que ergueu a taça de campeão europeu a 17 de maio de 2003, sem poder
imaginar que essa seria a última vez que Portugal venceria um título de futebol
e, sobretudo, sem saber que vivia o ponto mais alto da carreira aos 17 anos.
Uma década mais tarde, o
jogador a quem chamavam ‘Maradona' na adolescência, devido ao tamanho, ao peso
e à habilidade com a bola, é um dos poucos campeões de 2003 que não chegaram a
estrear-se na Liga. "Nos piores momentos relembro o que fiz no Europeu e
no FC Porto e penso: ‘Já fui feliz nesses momentos e quero voltar a
sê-lo'", explica, convencido de que vai a tempo de demonstrar aquilo que
não conseguiu quando integrava a equipa B dos azuis-e-brancos e foi convocado por
José Mourinho para dois jogos. "Estás cheio de medinho. Se estás aqui, por
alguma coisa é. Portanto, descontrai", disse-lhe o futuro ‘Special One'.
Mas tinha à frente Deco, Alenitchev, Maniche e Costinha, e mais tarde chegariam
os jovens brasileiros Diego e Anderson.
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CORAÇÃO EM TONDELA
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Terminada a ligação
contratual ao FC Porto, que o foi buscar ao Vitória de Guimarães aos 14 anos,
tal como o extremo Vieirinha - um dos titulares no título europeu celebrado em
Viseu, num onze em que Miguel Veloso e Paulo Machado eram outras figuras -,
Márcio não permaneceu em nenhum clube mais do que um ano, até que em 2010
chegou a acordo com o Tondela. Essencial na subida à II Liga na época passada,
não perdeu um único jogo em 2012/2013 e tem contribuído para um campeonato tranquilo.
A recompensa, ao que a Domingo apurou, é um salário
próximo dos dois mil euros mensais, em linha com o que recebia quando estava
nas camadas jovens do FC Porto.
"Toda a gente me
dizia que ele era problemático, que não gostava de trabalhar, que criava
dificuldades ao treinador se não jogasse", diz Vítor Paneira, que assumiu
o comando do Tondela há dois anos e logo se dedicou a fazer "trabalho
extra" com um jogador que "foi passando ao lado da carreira, muito
por culpa própria". O ex-médio-direito do Benfica vê-o agora como alguém
"que limpou a imagem de futebolista que não gostava muito de trabalhar e
que não era muito de jogar para a equipa".
O jogador, promovido a
capitão do Tondela, que se encontra na fase final de uma época cansativa -
quatro dias após empatar 1-1 com o Sporting B, recebeu e venceu o Atlético por
2-1, na quarta-feira -, reconhece a importância de tais conversas. "Tenho
um presidente que considero um segundo pai e um treinador que merece tudo. Ele
disse-me olhos nos olhos: ‘Tu só não vais estar na Liga se não quiseres, pois
estás preparado.'"
Não é por isso espantoso
que, embora adepto portista, Márcio sublinhe a ligação ao Tondela. "Posso
dizer que é o clube de que mais gosto até agora. Deu-me a oportunidade de
mostrar o meu futebol e de ter outra vez a esperança de chegar lá acima. É um
clube que vou guardar no coração, sem dúvida nenhuma."
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ANOS PERDIDOS
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Na final disputada no
Fontelo, cujo relvado Márcio voltou a pisar para ser fotografado para a Domingo, um dos companheiros de equipa era Paulo
Machado, que se dedicava a "arrumar a casa enquanto ele construía o
ataque", marcando um adversário tão perigoso quanto Jurado, na altura a
estrela da Espanha, "ainda mais do que o David Silva". Na passagem a
sénior teve algumas oportunidades no FC Porto, mas foi sucessivamente
emprestado a outros clubes, um dos quais o Saint-Étienne, o que levou à sua
contratação pelo também francês Toulouse, de onde passou nesta temporada para
os gregos do Olympiacos.
"Sabia que não
chegava a lado nenhum sem trabalhar sempre a mil, que é o que continuo a fazer.
Quanto ao Márcio, pensei que chegasse lá acima rapidamente, pela forma como
jogava e por tudo aquilo que as pessoas diziam dele", diz o futebolista,
que assistiu a alguns jogos do ex-colega, porque o seu irmão integrou o plantel
do Tondela.
Certo é que Márcio não
teve a transição para sénior que esperava. O primeiro empréstimo foi ao
Sporting da Covilhã, onde viu a diferença entre um grande e um clube do
Interior, embora tenha sido tratado "da melhor forma possível". O
pior foram os adversários: "Na II Divisão B há centrais de alguma idade,
que não aguentam o ritmo de jogo e acham que se deve marcar a perna de quem
chega e depois logo se vê."
Seguiu-se novo
empréstimo, desta vez ao Vizela, equipa da mesma divisão, mas geograficamente
mais confortável para um natural de Guimarães. Não correu bem. "Foi uma
experiência um bocado má... Havia jogadores com nome e carreira, pelo que não
foi fácil integrar-me. Não guardo rancor de ninguém. Culpo-me a mim próprio por
a época não ter corrido de feição", recorda o campeão europeu, que admite
ter-se "desleixado completamente".
Rio Maior deveria ter
sido o clube em que ficaria a treinar enquanto o empresário arranjava um clube,
mas não apareceu nenhum interessado e acabou por ficar. "Foi um ano que
não quero voltar a repetir. Vi que estava a bater no fundo e tive de levantar a
cabeça e começar a batalhar", diz quem teve então como treinador Paulo
Torres, o ex-lateral-esquerdo do Sporting que foi campeão mundial de sub-20 em
1991, relegando para segundo plano o brasileiro Roberto Carlos.
Márcio Sousa garante que
o próprio treinador se encarregou de lhe "abrir os olhos".
"Disse-me: ‘Tens de sair daqui. Não podias ter caído aqui,
entendes?'", conta o médio, que teve um ‘encontro imediato' quando António
Violante, atual responsável da seleção feminina, se deslocou à cidade
ribatejana. "Ouvi alguém a chamar, voltei--me e era ele. ‘Então o que é
que estás a fazer? Tens é de jogar na primeira divisão!', disse-lhe. ‘Não há
quem acredite em mim...', respondeu-me, ao que eu rematei: ‘Comigo, até no
Milan jogavas, mas estás desgraçado, porque eu não estou a treinar nenhuma
equipa'", relata o homem que lhe deu a titularidade no Europeu de 2003.
Não foi no clube do
ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, mas sim no Nelas que encontrou
o balneário seguinte, iniciando uma época que terminou no Penafiel, com muitos
jogos a titular e a subida à II Liga. No entanto, um novo treinador não o quis
no plantel, pelo que ainda fez um ano no Esmoriz, mais uma vez no terceiro
escalão do futebol nacional, antes do Tondela.
Residir em Viseu, a
mesma cidade em que foi o mais decisivo de um conjunto que deu quatro nomes à
última convocatória da Seleção A não é algo que o perturbe, tanto mais que
admite gostar do Fontelo. "Às vezes, até venho aqui dar uma volta para
espairecer a cabeça. É um sítio que nunca irei esquecer, passe o tempo que
passe. Tenho aqui uma história para contar aos meus filhos e netos, se Deus
quiser", desabafa quem ainda não tem descendência, mas garante nada ter a
ver com o estereótipo dos futebolistas com vidas consideradas ‘incompatíveis
com a profissão'.
"Nunca fui pessoa
de sair à noite, mas as pessoas fazem logo essa ideia", garante à Domingo. É, aliás, também essa a convicção do seu
treinador. "No fundo, é um bom miúdo. É tranquilo e não se mete em grandes
confusões. O telemóvel deve ser a coisa mais importante da vida dele. Está
sempre na mão", diz, entre risos, Vítor Paneira.
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GOLEADOS NO MUNDIAL
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Na memória de António
Violante há lugar cativo para o papel do pequeno médio no bom ambiente no
Europeu. "Dava-se muito bem com o Miguel Veloso. De vez em quando dava com
eles no final dos treinos a verem quem era mais preciso no passe longo",
recorda quem voltou a apostar em ‘Maradona' no Mundial de sub-17, disputado na
Finlândia, no verão de 2003.
Portugal não repetiu o
triunfo e foi afastado pela Espanha, com um pesado 5-2 nos quartos de final. Já
na fase de grupos, o Brasil aplicara 5-0 aos campeões europeus, que estiveram a
vencer os Camarões pela mesma marca, mas consentiram o 5-5. "A nossa
equipa afundou mesmo", admite Violante, que nos anos seguintes se
apercebeu das dificuldades que Márcio Sousa enfrentaria. "Se do ponto de
vista técnico não estivesse acima dos restantes teria dificuldades, pois é
pequeno e não é muito rápido. Mas lia muito bem o jogo, tinha uma precisão de
passe incrível e rematava muito bem. E tinha uma imaginação incrível",
lembra o treinador.
Tais qualidades não
foram esquecidas pelos colegas que com ele cantaram o hino há dez anos no
relvado do Fontelo. "Tinha e tem muita qualidade. Lembro-me que éramos
muito chegados. Bons tempos... Era muito brincalhão e gozão", recorda
Manuel Curto, um dos avançados de Portugal, que não teve a chance de chegar à
equipa principal do Benfica - apesar de ser um dos goleadores do Mundial de
2003, com os mesmos cinco golos de Cesc Fàbregas, do Barcelona - e que,
transformado em médio-defensivo, joga agora no Taraz, um clube do Cazaquistão.
Mais perto encontra-se o
outro avançado português no Euro'2003, Carlos Saleiro, que integra o plantel da
Académica de Coimbra depois de uma época na Suíça. Recordando Márcio como
"um dos ‘palhaços' da equipa", pois contagiava os colegas com a sua
boa disposição, o homem também conhecido por ser o primeiro bebé-proveta
português não poupa elogios ao colega: "Tinha muita influência no nosso
jogo. Era o número 10, com um pé esquerdo fabuloso. Fazia jogar a equipa e
tinha muita influência nas bolas paradas." Emprestado quatro vezes pelo
Sporting antes de lhe ser dada a hipótese de integrar o plantel principal,
Saleiro acredita que o médio "ainda vai a tempo de atingir o seu objetivo
de jogar ao mais nível em Portugal".
Vítor Paneira vai mais
longe. "Parece-me que ele nunca tinha traçado muitos objetivos na sua
vida. Sabia que tinha um pé esquerdo fabuloso e sentia que iria lá chegar sem
precisar de muito mais", afirma o treinador, que estabelece uma meta
realista para o jogador, considerando "muito difícil" que ainda vá
chegar a um clube grande. "Ele andou a ‘pastar' muitos anos, percebe? Mas
acredito que vá chegar à Liga. De certeza absoluta e vai fazer a
diferença", diz.
Paulo Machado eleva
ainda mais a fasquia: "O Márcio tem lugar em praticamente todas as equipas
da Liga. Faltou-lhe alguém que o ajudasse nos momentos certos, alguém que lhe
mantivesse os pés bem assentes na terra, mas agora é um jogador maduro. Passou
por muito e está de certeza mais forte. Basta uma oportunidade e todos vão
começar a perguntar: ‘Onde é que andou este rapaz estes anos todos?'"
Para o capitão do
Tondela já não é tempo de desculpas. Nem a altura (1,69 metros). "O
Moutinho é do meu tamanho e não deixa de ser o jogador que é", observa
Márcio, garantindo que não sente mágoa por ver o ex-colega a jogar no FC Porto.
"Fico contente por ele, tal como por todos os meus colegas que estão a
jogar noutro patamar. A única amargura é comigo mesmo, pois podia estar
ali." Embora nada impeça a vida de recomeçar aos 27 anos.
esta peça diz tanto parecendo dizer tão pouco. dos derrotados não reza a história. é uma pena que assim seja, porque a vida não se faz só de vitórias. aliás, acredito que na maioria dos casos se fassa essencialmente de derrotas.
ResponderEliminara história dos derrotados é a história que me interessa. a história dos coitados que não cumpriram o seu suposto destino. e o que é nos sobra depois do fracasso? a amargura, o vazio, as memórias do tempo em que ainda acreditávamos em nós e do tempo em que os outros acreditavam em nós. sobram as ruínas de uma vida que já não existe. resta saber se alguma vez existiu.