domingo, 26 de maio de 2013

O retornado.






 
 
Dacosta reincidiu. E, quando Dacosta reincide, a terra treme. Melhor se diria que retornou, pois é sobre os retornados de África que versa o seu último livro. O Autor diz, a abrir a primeira página, que a expressão «retornados» é desajustada (p. 9; tb. pp. 16 ou 27), pelo que começamos por nos desentender logo quanto ao título: Os Retornados Mudaram Portugal. A expressão «retornados» é desajustada mas, então, usa-se no título do livro... porquê?  

         Antes deste ensaio, Fernando Dacosta publicara um livro chamado Os Retornados Estão a Mudar Portugal, que averbou o prémio Clube Português de Imprensa. O livro baseava-se numa reportagem sensacional e piramidal de Fernando Dacosta. Segundo este, sempre modesto, dois dias depois de a sua reportagem ser publicada, a BBC referia-a no seu noticiário, «o mesmo fazendo, em cascata, órgãos de comunicação social dos Estados Unidos ao Japão, da Suécia à Austrália» (p. 19). Depois, a edição em livro «galardoada com vários prémios, de imediato se esgotou» (p. 20).

Em 1980, portanto, tivemos Os Retornados Estão a Mudar Portugal. Agora, um novo trabalho: Os Retornados Mudaram Portugal. Nos anos oitenta, os retornados estão a mudar Portugal; em 2013, concluíram o trabalho, e mudaram Portugal. Em Portugal, tudo muda, tudo passa... menos Fernando Dacosta.

Com mais uma pontita de imodéstia, Dacosta diz que o seu livro de 1980 era um trabalho «pioneiro» e que se encontra «esgotadíssimo» (p. 9). Que Dacosta está esgotadíssimo, disso ninguém duvida. Já quanto ao seu autoproclamado pioneirismo, lamentamos desiludi-lo: em 1976 saiu o livro Acusamos a Descolonização. Relatos das Vicissitudes Passadas pelos Retornados e, igualmente em 1976, António Pires publicou Retornados, Desalojados, Espoliados. Fernando Dacosta poderá ser pioneiro, até mesmo um grandessíssimo pioneiro, mas, em matéria de retornados, há pioneiros bem mais pioneiros do que ele.    

         Nesta recidiva de 2013, Fernando Dacosta continua igual a si próprio: erros atrás de erros, imprecisões sobre imprecisões.  Aparentemente, até sobre ele mesmo se engana. Na badana da sobrecapa deste novo livro diz que o seu anterior trabalho, Os Retornados Estão a Mudar Portugal, foi publicado nos «Cadernos de Reportagem» em 1980. Como se vê no site da Biblioteca Nacional, ou até aqui, na Wikipedia, a data correcta parece ser 1984, não 1980.  Aliás, os «Cadernos de Reportagem» só iniciaram a sua publicação em 1982, sendo o nº 1 da autoria de Guilherme de Melo, Ser Homossexual em Portugal. Já agora, uma imagem:
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Cadernos de Reportagem, Setembro-Outubro de 1984




  
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         Pluma versátil, Fernando Dacosta intitula-se «romancista, dramaturgo, conferencista e jornalista». É por estas e por outras que, quando precisamos de um canalizador de confiança ou de um bom bate-chapas, nunca se encontra ninguém.  
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         Nas letras portuguesas, e fora delas, Fernando Dacosta é uma vaca  sagrada. Sagrada, consagrada e amplamente premiada. A peça Um Jipe em Segunda Mão foi galardoada com os grandes prémios de Teatro RTP, Associação Portuguesa de Críticos e Casa de Imprensa. A reportagem «Os Retornados Estão a Mudar Portugal» foi buscar o prémio Clube Português de Imprensa. Outro trabalho saído da sua irrequieta pena, Moçambique, Todo o Sofrimento do Mundo, arrecadou os prémios Gazeta e Fernando Pessoa de 1991. Com o romance O Viúvo, que o Autor qualifica de «metáfora sobre a perda do Império», conquistou o Grande Prémio de Literatura Círculo de Leitores – Ler. Portugal, de facto, não é um país, é uma metáfora.

         Livros publicados? Mais de vinte. Máscaras de Salazar? Vai na 27ª edição, com milhares e milhares de exemplares vendidos. Portugal, insistimos, não é um país, é uma metáfora.  

         E agora, que nos traz Dacosta neste seu regresso das trevas? «Uma história trágico-aérea-marítima sem limites».

         Além de uma tragicomédia aéreo-marítima sem limites, Fernando traz-nos ainda a Humildade, a grande virtude dos verdadeiramente grandes, daqueles que não precisam de elogios, próprios ou alheios. Porém, na badana da capa deste seu novo livro, como manda a boa publicidade, citam-se críticos e ensaístas de renome. Da Suécia, entra em campo o avançado-centro Henrik Nilsson, nas páginas do Svenska Dagbladet («Fernando Dacosta tem sido um dos mais significativos intérpretes do universo do chamado Estado Novo»). Na Suíça, o jovem Patrick Durrer submeteu tese de licenciatura à Universidade de Zurique. Título da dissertação: Fernando Dacosta – Um Navegante pelo Cosmos Português. Aí se escreve: «Fernando Dacosta escreveu textos de importância primordial para a moderna literatura portuguesa». No El País, opina Javier García: «Indispensável para conhecer a história recente de Portugal». Entre nós, a prestigiada crítica Ana Paula Lemos, nas páginas do Correio da Manhã, classificou-o como «um dos mais brilhantes escritores portugueses». Como estes mesmos elogios são publicados nas badanas de todos os livros de Fernando Dacosta, e repetidos até na publicidade online, estranha-se que, desta vez, não se tenha convocado a opinião de Celso de Oliveira, no World Literature Today, da Universidade de Oklahoma. Diz-nos o Celso: «Não há de semelhante na moderna literatura portuguesa». Sem dúvida, Celso, sem dúvida. Mas a melhor de todas é a tirada de Patrick Durrer: «O mundo dacostiano alcança uma complexidade, uma riqueza e uma dimensão invulgares».    

         Penetremos então no complexo mundo dacostiano, ainda que apenas levemente. Umas breves notas.  

Na página 43, diz Dacosta que as «oposições revelaram-se imperialistas até muito tarde». E cita nomes, de Norton de Matos a Cunha Leal, passando por Henrique Galvão, João Soares e António de Spínola. Considerar Spínola um oposicionista ao Estado Novo daria pretexto para uma boa e longa conversa, mas o melhor vem já a seguir: «Fernando Pessoa seria uma excepção ao escrever no semanário O Jornal um artigo no qual (…) afirmava que…». É extraordinário. Não sabíamos que o autor de Mensagem tinha sido articulista do semanário O Jornal e, portanto, colega de Dacosta. Imagine-se os dois fernandos a trabalharem juntos, na redacção fumarenta, sob a batuta de Joaquim Letria ou de José Carlos de Vasconcelos. Dacosta e Pessoa, lado a lado, trocando ideias, naquela lufa-lufa do fecho da edição, em discussões inflamadas, brigas épicas, a dupla de lusitanos génios à compita! Possivelmente, Fernando Dacosta queria referir-se a outro periódico, O Jornal, diário lisboeta fundado em 1915 e dirigido por Boavida Portugal (cf. Mário Matos e Lemos, Jornais Diários Portugueses do Século XX. Um Dicionário, s.d., p. 375). Aí, sim, colaborou Fernando Pessoa. Mas esse era um diário, não um semanário.    

         Passemos à página 49, que também é das boas. Nela, numa só folha, Fernando Dacosta comete a proeza de conseguir fazer a dobradinha das calinadas históricas. É obra. Merece prémio. Diz que o Partido Socialista foi fundado na Suíça e afirma que Baltasar Rebelo de Sousa foi o último governador-geral de Moçambique, nomeado em 1973. O PS foi fundado em Bad Münstereifel, pacata localidade sita no distrito de Euskirchen, Renânia do Norte-Vestefália, na Alemanha. Até à fronteira com a Suíça são apenas uns 556 quilómetros de calinada da parte de Fernando Dacosta. Cinco a seis horas de automóvel, por auto-estrada, e a andar bem. A questão não é só geográfica; afirmar que o PS foi fundado na Suíça, confundindo-o possivelmente com a ASP (criada em 1964…), é obliterar por completo, entre outras coisas, o papel crucial que os sociais-democratas alemães tiveram na génese do partido liderado por Soares. Quanto a Baltasar Rebelo de Sousa como último governador de Moçambique, importa tão-só referir que cessou funções em 1970, sendo substituído por Eduardo de Arantes e Oliveira. Dizer que Baltasar Rebelo de Sousa foi o último governador-geral de Moçambique é esquecer que, depois disso, viria a ocupar as pastas da Saúde e Assistência, das Corporações e Previdência e, finalmente, do Ultramar. Em suma, é não saber nada do que foram os tempos do marcelismo. Dacosta diz que Baltasar Rebelo de Sousa foi nomeado em 1973 para o cargo de governador-geral de Moçambique e cita mesmo trechos do discurso de posse… A nomeação teve lugar, santo Deus, em 1968! E foi feita por Oliveira Salazar, Marcello Caetano ainda não era sequer Presidente do Conselho (cf. Marcelo Rebelo de Sousa, Baltazar Rebelo de Sousa. Fotobiografia, Lisboa, 1999, pp. 181ss). Nessa infeliz página 49 há ainda imprecisões grosseiras, uma das quais inculca no leitor a ideia errónea de que o golpe das Caldas teve lugar em 1973, quando ocorreu no ano seguinte. Mas nada é de estranhar em quem situa a célebre vigília da Capela do Rato em 1971 (p. 48), quando ela teve lugar na passagem do ano de 1972 para 1973…

         Não se julgue que se está, maldosamente, a esquadrinhar à lupa uma obra monumental, com meia dúzia de erros, que todos cometemos. Estamos a respigar as escassas referências históricas de um livrinho de oitenta páginas, com abundantes transcrições de entrevistas a cidadãos anónimos que regressaram de África.  Além das incongruências históricas, há omissões – e graves. Apresenta-se Mário Soares como um precursor das independências africanas (p. 45) e não se dedica uma linha, uma palavra sequer, à posição do PCP, essa sim pioneira, tomada no seu V Congresso, no ano de 1957.

         Depois, quando dá voz aos entrevistados, Dacosta não critica nem contradita, não questiona ou impugna. Fica para ali sentado, de olhar brando e mortiço, a tirar notas… o que, por exemplo, o leva a aceitar com tranquila bonomia confidências que, supostamente, Kaúlza de Arriaga lhe terá feito a uma mesa de café na pastelaria Mexicana. Assim, passa a ficar registado como facto histórico, sem contraditório, que o fim do Império português foi obra de americanos e russos, mas com «interferências dos chineses, da Internacional Socialista e do Clube de Bildeberg» (!). Foram eles, chinas e socialistas, à mistura com os tenebrosos do Bildeberg, que, numa vasta conspiração internacional, «decidiram acelerar as coisas através de Lisboa, por ser mais eficaz e barato». Sendo mais eficaz e barato, é estranho que a Trilateral, a Mossad ou a Maçonaria  não tenham também alinhado na jogada. Mas o Clube de Bildeberg entrou – e, graças a ele, numa madrugada de Abril, floriram os cravos. Dacosta não se interroga, não questiona, um minuto sequer, a tese do envolvimento do Clube de Bildeberg no fim do regime? Aceita sem pestanejar aquilo que Kaulza de Arriaga lhe terá dito na soalheira esplanada da Mexicana?  Outra preciosidade vinda da conversa com Kaulza: Marcello Caetano não só planeou um golpe contra Américo Thomaz como o fez em conluio com… a PIDE. Por acaso, na altura já nem se chamava PIDE, mas DGS; e acreditar que a polícia política se aliara com Marcello Caetano para derrubar o Presidente Thomaz é, no mínimo, caricato.  

         Como Dacosta não critica as fontes em que se baseia, permite-se aceitar e divulgar, por exemplo, que cerca de 85% das adolescentes retornadas, desde que tivessem filhos aos 16-18 anos, se dedicavam à prostituição. Exactamente isso, sem mais nem menos: «cerca de 85 por cento das adolescentes retornadas que têm um filho aos 16, 17 ou 18 anos são prostitutas» (p. 65). Prosseguindo a estatística: «quase 90 por cento do vencimento das mães jovens solteiras provém dessa actividade». A fonte? A «Ajuda Cristã Internacional». Que entidade será essa, aí só Dacosta poderá responder. Será o «Apoio Cristão Internacional», de que Dacosta fala na página 75? Muito provavelmente. Temos, então, a Ajuda Cristã Internacional, na página 65, e o Apoio Cristão Internacional, na página 75. Admitindo que é deste último que se trata, haveria que indicar onde, quando e como o Apoio Cristão Internacional alcançou aquela estatística. Dacosta indica o local, o documento, o depoimento onde surgiram os 85% de prostitutas? Não. É esse um dos seus maiores encantos: nunca há uma indicação da fonte. Assim, tudo o que Fernando Dacosta afirme torna-se impermeável, à prova de bala, insusceptível de verificação. Isto, sim, é trabalhar com classe e estilo. 85% de prostitutas? É uma revelação da «Ajuda Cristã Internacional». Nem lhe ocorreu, como jornalista tão premiado, que essa estatística seria, quando muito, uma estimativa por alto, extraída no terreno, para mais enviesada e exagerada, até devido à natureza religiosa da organização que a terá avançado, visando condenar o fenómeno da gravidez adolescente? Não perguntou à fonte onde baseava uma estatística tão esmagadora? Nada disso importa a Fernando Dacosta. O que lhe interessa, verdadeira e exclusivamente, é alinhavar frases bem torneadas, como esta, a propósito do fascínio exercido pelas quentíssimas retornadas junto dos pacóvios metropolitanos: «O equador que lhes cinge os corpos fez-se para muitos um apelo irresistível».    

         Por conseguinte, caro leitor, se a sua progenitora é retornada de África, se o meu amigo nasceu sendo a mãezinha uma rapariga ainda moça, com um equador irresistível, tem 85% de probabilidades de ser um filho de prostituta. Isto, claro, sem ofensa. Quem o diz? Di-lo Dacosta, na pág. 65 deste seu novo livro de maravilhas e encantamentos. Aguarda-se novo prémio.

         De acordo com a sua biografia, Fernando Dacosta nasceu no Caxito, em Angola, a 100 quilómetros de Luanda. De saúde frágil, veio depois para Folgosa, onde teve uma experiência de quase-morte, ao tomar banho num rio. Viu a luz Dacosta na Fazenda Tentativa. Há nomes que são presságios: Fazenda Tentativa. Na verdade, após décadas de carreira, com 20 livros publicados e premiados, a isso se resume a obra de Fernando Dacosta: fazendo a tentativa.
 
 
 
António Araújo  


 
 
 

7 comentários:

  1. Respostas
    1. Excelente. Magnifíco. Colossal. Lindo. Um prazer. Oh Araújo, com todo o respeito. Este é o "meu" Malomil.

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  2. como diria Lobão:
    o malomil é um puta show

    já agora a referência para o destravado:
    http://youtu.be/sezYgT3PQIc

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  3. Parece que o Dacosta se safava melhor se tivesse dado a autoria da entrega de tudo o que tinha preto e não era nosso ao PCP...
    Quanto à % de raparigas retornadas que deram em putas não sei, mas que os paneleiros se deram cá muito bem isso tenho a certeza...

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  4. Retorna ao rio Costa, que vais ver que o povo gosta! lol, uma pequena gracinha, pois é o que está a dar!

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  5. Boa tarde, gente. Não será verdade, mas muito pior do que os "enganos factuais" é a prosa delicodoce de Fernando Dacosta. "O equador que lhes cinge os corpos fez-se para muitos um apelo irresistível(...)? Isto é um caso de Polícia. Adeus.

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