Dacosta
reincidiu. E, quando Dacosta reincide, a terra treme. Melhor se diria que
retornou, pois é sobre os retornados de África que versa o seu último livro. O
Autor diz, a abrir a primeira página, que a expressão «retornados» é
desajustada (p. 9; tb. pp. 16 ou 27), pelo que começamos por nos desentender logo
quanto ao título: Os Retornados Mudaram
Portugal. A expressão «retornados» é desajustada mas, então, usa-se
no título do livro... porquê?
Antes
deste ensaio, Fernando Dacosta publicara um livro chamado Os Retornados Estão a Mudar Portugal,
que averbou o prémio Clube Português de Imprensa. O livro baseava-se numa
reportagem sensacional e piramidal de Fernando Dacosta. Segundo este, sempre modesto, dois
dias depois de a sua reportagem ser publicada, a BBC referia-a no seu
noticiário, «o mesmo fazendo, em cascata, órgãos de comunicação social dos
Estados Unidos ao Japão, da Suécia à Austrália» (p. 19). Depois, a edição em
livro «galardoada com vários prémios, de imediato se esgotou» (p. 20).
Em
1980, portanto, tivemos Os Retornados
Estão a Mudar Portugal. Agora, um novo trabalho: Os Retornados Mudaram Portugal. Nos anos oitenta, os retornados estão a mudar Portugal; em 2013,
concluíram o trabalho, e mudaram Portugal.
Em Portugal, tudo muda, tudo passa... menos Fernando Dacosta.
Com
mais uma pontita de imodéstia, Dacosta diz que o seu livro de 1980 era
um trabalho «pioneiro» e que se encontra «esgotadíssimo» (p. 9). Que Dacosta
está esgotadíssimo, disso ninguém duvida. Já quanto ao seu autoproclamado
pioneirismo, lamentamos desiludi-lo: em 1976 saiu o livro Acusamos a Descolonização. Relatos das Vicissitudes Passadas pelos
Retornados e, igualmente em 1976, António Pires publicou Retornados, Desalojados, Espoliados. Fernando
Dacosta poderá ser pioneiro, até mesmo um grandessíssimo pioneiro, mas, em
matéria de retornados, há pioneiros bem mais pioneiros do que ele.
Nesta recidiva de 2013, Fernando Dacosta
continua igual a si próprio: erros atrás de erros, imprecisões sobre imprecisões. Aparentemente, até sobre ele mesmo se engana. Na
badana da sobrecapa deste novo livro diz que o seu anterior trabalho, Os Retornados Estão a Mudar Portugal,
foi publicado nos «Cadernos de Reportagem» em 1980. Como se vê no site da Biblioteca Nacional,
ou até aqui, na Wikipedia, a data correcta parece ser 1984, não 1980. Aliás, os «Cadernos de Reportagem» só iniciaram
a sua publicação em 1982, sendo o nº 1 da autoria de Guilherme de Melo, Ser Homossexual em Portugal. Já agora, uma imagem:
Cadernos de Reportagem, Setembro-Outubro de 1984
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Pluma versátil, Fernando Dacosta
intitula-se «romancista, dramaturgo, conferencista e jornalista». É por estas e por
outras que, quando precisamos de um canalizador de confiança ou de um bom
bate-chapas, nunca se encontra ninguém.
.
Nas letras portuguesas, e fora delas,
Fernando Dacosta é uma vaca sagrada. Sagrada,
consagrada e amplamente premiada. A peça Um
Jipe em Segunda Mão foi galardoada com os grandes prémios de Teatro RTP,
Associação Portuguesa de Críticos e Casa de Imprensa. A reportagem «Os Retornados Estão a Mudar Portugal» foi buscar o prémio Clube Português de Imprensa. Outro trabalho saído da
sua irrequieta pena, Moçambique, Todo o
Sofrimento do Mundo, arrecadou os prémios Gazeta e Fernando Pessoa de 1991.
Com o romance O Viúvo, que o Autor qualifica
de «metáfora sobre a perda do Império», conquistou o Grande Prémio de
Literatura Círculo de Leitores – Ler. Portugal, de facto, não é um país, é uma
metáfora.
Livros publicados? Mais de vinte. Máscaras de Salazar? Vai na 27ª edição, com
milhares e milhares de exemplares vendidos. Portugal, insistimos, não é um
país, é uma metáfora.
E agora, que nos traz Dacosta neste seu
regresso das trevas? «Uma história trágico-aérea-marítima sem limites».
Além de uma tragicomédia aéreo-marítima sem limites, Fernando traz-nos ainda a Humildade, a grande virtude dos verdadeiramente
grandes, daqueles que não precisam de elogios, próprios ou alheios. Porém, na
badana da capa deste seu novo livro, como manda a boa publicidade, citam-se críticos
e ensaístas de renome. Da Suécia, entra em campo o avançado-centro Henrik Nilsson, nas
páginas do Svenska Dagbladet
(«Fernando Dacosta tem sido um dos mais significativos intérpretes do universo
do chamado Estado Novo»). Na Suíça, o jovem Patrick Durrer submeteu tese de
licenciatura à Universidade de Zurique. Título da dissertação: Fernando Dacosta – Um Navegante pelo Cosmos
Português. Aí se escreve: «Fernando Dacosta escreveu textos de importância
primordial para a moderna literatura portuguesa». No El País, opina Javier García: «Indispensável para conhecer a
história recente de Portugal». Entre nós, a prestigiada crítica Ana Paula
Lemos, nas páginas do Correio da Manhã,
classificou-o como «um dos mais brilhantes escritores portugueses». Como estes
mesmos elogios são publicados nas badanas de todos os livros de Fernando Dacosta, e repetidos até na publicidade online, estranha-se que, desta vez, não se
tenha convocado a opinião de Celso de Oliveira, no World Literature Today, da Universidade de Oklahoma. Diz-nos o
Celso: «Não há de semelhante na moderna literatura portuguesa». Sem dúvida,
Celso, sem dúvida. Mas a melhor de todas é a tirada de Patrick Durrer: «O mundo
dacostiano alcança uma complexidade, uma riqueza e uma dimensão invulgares».
Penetremos então no complexo mundo
dacostiano, ainda que apenas levemente. Umas
breves notas.
Na
página 43, diz Dacosta que as «oposições revelaram-se imperialistas até muito
tarde». E cita nomes, de Norton de Matos a Cunha Leal, passando por Henrique
Galvão, João Soares e António de Spínola. Considerar Spínola um oposicionista
ao Estado Novo daria pretexto para uma boa e longa conversa, mas o melhor vem já
a seguir: «Fernando Pessoa seria uma excepção ao escrever no semanário O Jornal um artigo no qual (…) afirmava
que…». É extraordinário. Não sabíamos que o autor de Mensagem tinha sido articulista do semanário O Jornal e, portanto, colega de Dacosta. Imagine-se os dois fernandos
a trabalharem juntos, na redacção fumarenta, sob a batuta de Joaquim Letria ou de José
Carlos de Vasconcelos. Dacosta e Pessoa, lado a lado, trocando ideias, naquela
lufa-lufa do fecho da edição, em discussões inflamadas, brigas épicas, a dupla de
lusitanos génios à compita! Possivelmente, Fernando Dacosta queria referir-se a outro
periódico, O Jornal, diário lisboeta
fundado em 1915 e dirigido por Boavida Portugal (cf. Mário Matos e Lemos, Jornais Diários Portugueses do Século XX. Um
Dicionário, s.d., p. 375). Aí, sim, colaborou Fernando Pessoa. Mas esse era
um diário, não um semanário.
Passemos à página 49, que também é das
boas. Nela, numa só folha, Fernando Dacosta comete a proeza de conseguir
fazer a dobradinha das calinadas históricas. É obra. Merece prémio. Diz que o Partido Socialista foi fundado na Suíça e afirma que Baltasar
Rebelo de Sousa foi o último governador-geral de Moçambique, nomeado em 1973. O PS foi fundado em Bad Münstereifel, pacata
localidade sita no distrito de Euskirchen, Renânia do Norte-Vestefália, na
Alemanha. Até à fronteira com a Suíça são apenas uns 556 quilómetros de
calinada da parte de Fernando Dacosta. Cinco a seis horas de automóvel, por
auto-estrada, e a andar bem. A questão não é só geográfica; afirmar que o PS
foi fundado na Suíça, confundindo-o possivelmente com a ASP (criada em 1964…), é
obliterar por completo, entre outras coisas, o papel crucial que os sociais-democratas alemães
tiveram na génese do partido liderado por Soares. Quanto a Baltasar Rebelo de
Sousa como último governador de Moçambique, importa tão-só referir que cessou
funções em 1970, sendo substituído por Eduardo de Arantes e Oliveira. Dizer que
Baltasar Rebelo de Sousa foi o último governador-geral de Moçambique é esquecer
que, depois disso, viria a ocupar as pastas da Saúde e Assistência, das
Corporações e Previdência e, finalmente, do Ultramar. Em suma, é não saber nada do que foram os tempos do
marcelismo. Dacosta diz que Baltasar Rebelo de Sousa foi nomeado em 1973 para o
cargo de governador-geral de Moçambique e cita mesmo trechos do discurso de
posse… A nomeação teve lugar, santo Deus, em 1968! E foi feita por Oliveira Salazar,
Marcello Caetano ainda não era sequer Presidente do Conselho (cf. Marcelo
Rebelo de Sousa, Baltazar Rebelo de
Sousa. Fotobiografia, Lisboa, 1999, pp. 181ss). Nessa infeliz página 49 há
ainda imprecisões grosseiras, uma das quais inculca no leitor a ideia errónea
de que o golpe das Caldas teve lugar em 1973, quando ocorreu no ano seguinte.
Mas nada é de estranhar em quem situa a célebre vigília da Capela do Rato em
1971 (p. 48), quando ela teve lugar na passagem do ano de 1972 para 1973…
Não se julgue que se está, maldosamente,
a esquadrinhar à lupa uma obra monumental, com meia dúzia de erros, que todos
cometemos. Estamos a respigar as escassas referências históricas de um livrinho de oitenta páginas, com abundantes
transcrições de entrevistas a cidadãos anónimos que regressaram de África. Além das incongruências históricas,
há omissões – e graves. Apresenta-se Mário Soares como um precursor das
independências africanas (p. 45) e não se dedica uma linha, uma palavra
sequer, à posição do PCP, essa sim pioneira, tomada no seu V Congresso, no ano
de 1957.
Depois, quando dá voz aos
entrevistados, Dacosta não critica nem contradita, não questiona ou impugna.
Fica para ali sentado, de olhar brando e mortiço, a tirar notas… o que, por
exemplo, o leva a aceitar com tranquila bonomia confidências que, supostamente,
Kaúlza de Arriaga lhe terá feito a uma mesa de café na pastelaria Mexicana.
Assim, passa a ficar registado como facto histórico, sem contraditório, que o fim do Império português
foi obra de americanos e russos, mas com «interferências dos chineses, da
Internacional Socialista e do Clube de Bildeberg» (!). Foram eles, chinas e
socialistas, à mistura com os tenebrosos do Bildeberg, que, numa vasta
conspiração internacional, «decidiram acelerar as coisas através de Lisboa, por
ser mais eficaz e barato». Sendo mais eficaz e barato, é estranho que a
Trilateral, a Mossad ou a Maçonaria não tenham também alinhado
na jogada. Mas o Clube de Bildeberg entrou – e, graças a ele, numa madrugada de
Abril, floriram os cravos. Dacosta não se interroga, não questiona, um minuto
sequer, a tese do envolvimento do Clube de Bildeberg no fim do regime? Aceita
sem pestanejar aquilo que Kaulza de Arriaga lhe terá dito na soalheira esplanada da Mexicana? Outra preciosidade vinda da conversa com
Kaulza: Marcello Caetano não só planeou um golpe contra Américo Thomaz como o
fez em conluio com… a PIDE. Por acaso, na altura já nem se chamava PIDE, mas
DGS; e acreditar que a polícia política se aliara com Marcello Caetano para
derrubar o Presidente Thomaz é, no mínimo, caricato.
Como Dacosta não critica as fontes em
que se baseia, permite-se aceitar e divulgar, por exemplo, que cerca de 85% das adolescentes
retornadas, desde que tivessem filhos aos 16-18 anos, se dedicavam à
prostituição. Exactamente isso, sem mais nem menos: «cerca de 85 por cento das
adolescentes retornadas que têm um filho aos 16, 17 ou 18 anos são prostitutas»
(p. 65). Prosseguindo a estatística: «quase 90 por cento do vencimento das mães
jovens solteiras provém dessa actividade». A fonte? A «Ajuda Cristã Internacional».
Que entidade será essa, aí só Dacosta poderá responder. Será o «Apoio Cristão
Internacional», de que Dacosta fala na página 75? Muito provavelmente. Temos,
então, a Ajuda Cristã Internacional, na página 65, e o Apoio Cristão
Internacional, na página 75. Admitindo que é deste último que se trata, haveria
que indicar onde, quando e como o Apoio Cristão Internacional alcançou aquela
estatística. Dacosta indica o local, o documento, o depoimento onde surgiram os
85% de prostitutas? Não. É esse um dos seus maiores encantos: nunca há uma
indicação da fonte. Assim, tudo o que Fernando Dacosta afirme torna-se
impermeável, à prova de bala, insusceptível de verificação. Isto, sim, é
trabalhar com classe e estilo. 85% de prostitutas? É uma revelação da «Ajuda
Cristã Internacional». Nem lhe ocorreu, como jornalista tão premiado, que essa
estatística seria, quando muito, uma estimativa por alto, extraída no terreno, para
mais enviesada e exagerada, até devido à natureza religiosa da organização que
a terá avançado, visando condenar o fenómeno da gravidez adolescente? Não perguntou à fonte onde baseava uma estatística tão esmagadora? Nada disso importa a Fernando Dacosta. O que lhe interessa, verdadeira
e exclusivamente, é alinhavar frases bem torneadas, como esta, a propósito do
fascínio exercido pelas quentíssimas retornadas junto dos pacóvios metropolitanos:
«O equador que lhes cinge os corpos fez-se para muitos um apelo
irresistível».
Por conseguinte, caro leitor, se a sua progenitora é retornada de África, se o meu amigo nasceu sendo a mãezinha uma rapariga ainda
moça, com um equador irresistível, tem 85% de probabilidades de ser um filho de
prostituta. Isto, claro, sem ofensa. Quem o diz? Di-lo Dacosta, na pág. 65
deste seu novo livro de maravilhas e encantamentos. Aguarda-se novo prémio.
De acordo com a sua biografia, Fernando
Dacosta nasceu no Caxito, em Angola, a 100 quilómetros de Luanda. De saúde frágil, veio depois para Folgosa, onde teve uma experiência de quase-morte, ao tomar banho num rio. Viu a luz Dacosta na Fazenda
Tentativa. Há nomes que são presságios: Fazenda Tentativa. Na verdade, após décadas de
carreira, com 20 livros publicados e premiados, a isso se resume a obra de Fernando Dacosta: fazendo a tentativa.
António Araújo
la mechanceté...
ResponderEliminarExcelente. Magnifíco. Colossal. Lindo. Um prazer. Oh Araújo, com todo o respeito. Este é o "meu" Malomil.
Eliminarcomo diria Lobão:
ResponderEliminaro malomil é um puta show
já agora a referência para o destravado:
http://youtu.be/sezYgT3PQIc
Parece que o Dacosta se safava melhor se tivesse dado a autoria da entrega de tudo o que tinha preto e não era nosso ao PCP...
ResponderEliminarQuanto à % de raparigas retornadas que deram em putas não sei, mas que os paneleiros se deram cá muito bem isso tenho a certeza...
Retorna ao rio Costa, que vais ver que o povo gosta! lol, uma pequena gracinha, pois é o que está a dar!
ResponderEliminarBoa tarde, gente. Não será verdade, mas muito pior do que os "enganos factuais" é a prosa delicodoce de Fernando Dacosta. "O equador que lhes cinge os corpos fez-se para muitos um apelo irresistível(...)? Isto é um caso de Polícia. Adeus.
ResponderEliminarCingir, lindo verbo.
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