Matola, sul de Moçambique.
Fotografia de Gabriel Mithá Ribeiro.
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As atitudes face às boleias permitem medir a
abertura (a boleia não era habitual no tempo colonial) e o ocaso do ciclo
revolucionário (anos oitenta) em Moçambique, bem como os estragos que o tempo
vai deixando nas relações de confiança entre as pessoas. Nesses anos, o normal
era dar-se boleia como se a independência e a revolução socialista tivessem
tornado imoral que os veículos com lugares disponíveis deixassem nas estradas
quem necessitava. Desses dias, recordo um vizinho dos arredores de Maputo que
excedia em muito a lotação do seu automóvel de cinco lugares quando ia e vinha
diariamente da cidade. Dava boleia até poder. Certa vez apercebeu-se de que
mais um que estendeu o polegar ficou na estrada. Talvez por razões de
consciência retardada, só imobilizou a viatura largos metros à frente. A pessoa
correu em direcção ao carro, mas ficou na estrada com rosto atónito por ter
levado uma reprimenda moralizadora: O senhor não vê que o carro está cheio! Muito
mudou entretanto. Hoje as viaturas passam e não param ao sinal dos raros
atrevidos solicitadores, mesmo carrinhas que circulam por povoações isoladas
atravessadas pelas estradas nacionais onde escasseiam meios de deslocação.
Viajei por estes dias de 2013 numa carrinha de caixa aberta entre as cidades de
Maputo e da Beira apenas acompanhado pelo condutor. Este nunca parou para dar
boleia, apesar de ter espaço de sobra no veículo. Durante a viagem, não via
como associar aquelas pessoas à criminalidade, tema que por ora me interessa.
Apenas na portagem do Save o motorista acedeu ao pedido de dois militares
armados que pretendiam atravessar para a margem norte do rio que marca a
entrada na zona centro do país. Pouco depois, o meu parceiro de estrada contou
que há tempos, numa das povoações junto à estrada nacional onde circulávamos,
deu boleia a um indivíduo que, passados cerca de cem quilómetros, começou a
bater na cabine do veículo e a exigir que parassem. Logo, logo acusou o
motorista de lhe ter retirado uma pasta que alegou ter trazido consigo. O
condutor negou o que quer que fosse. Por seu lado, o passageiro refinou a
exigência: que regressassem ao ponto de partida para verificar se se tinha
esquecido da pasta no local onde apanhou a boleia ou em casa. Considerava seu
direito certificar-se se o condutor da carrinha falava a verdade. O relato
prosseguiu: A situação complicou-se, ficou mal. Assim que vi a polícia na
estrada parei e deixei ficar o ‘gajo’… Moral da história: sacrificou-se uma
atitude altruísta que beneficiava a vida social, sem exigências de maior a quem
a praticava. Se calhar a criminalidade não explica quase nada. São apenas
comportamentos cívicos que dificilmente criticamos por termos desaprendido a
arte de lidar com maior frontalidade com realidades problemáticas que envolvem pobres.
Tanto pior ainda se forem pobres e africanos. Estes, como todos
os necessitados pelo mundo fora, não ganham quase nada e perdem muito com
discursos simpáticos fabricantes de ilusões. Os maiores problemas sociais,
muitas vezes, germinam de atitudes e comportamentos rotineiros, mas
censuráveis. Nossos e dos outros. Dos ricos e dos pobres. Sei que este texto
ficará atravessado por Sentimentos de um(a) Ocidental, como titulou
Maria Filomena Mónica. No meu caso, por adopção. Nunca deixarei de ser
deste lado do equador.
Gabriel Mithá Ribeiro
Afinal de contas, o/a autor/a é Gabriel ou Gabriela, ou ambos?
ResponderEliminarAmigo, não sou «Cravo e Canela». Sou «Cem anos de solidão».
EliminarCom os melhores cumprimentos,
Gabriel Mithá Ribeiro
Conviria retificar a assinatura do artigo.
EliminarJá está rectificado, muito obrigado. E as minhas desculpas ao amigo Gabriel Mithá Ribeiro.
EliminarAntónio Araújo
No tempo colonial não era habitual os brancos darem boleia?Já vi muitos ex-guerrilheiros da UPA dizerem o contrário.Até achavam os brancos bananas por serem tão burros...porque viajavam milhares de kms de borla e a tratar da futura saúde, sem discriminações de idade e sexo aos colonos que apanhassem...mas prontos a intelectualidade só vê defeitos no que era Ultramar.Agora claro aquilo é só virtudes...
ResponderEliminarCara/o Lusitânea
EliminarConsidero nesse aspecto a minha experiência vivida, mulata dos arredores de Lourenço Marques/Maputo, e a boleia é apenas o pretexto empírico para transmitir uma ideia que não é necessariamente contraditória com o que refere sobre Angola. Veja o artigo até ao fim. Quanto ao mais, leia os artigos anteriores desta série, a começar pelo primeiro. Não espero que se tome o título pelo conteúdo, mas por algum motivo sou autor de um livro recente com o título «O colonialismo nunca existiu!» com páginas com muita «intelectualidade».
Com os melhores cumprimentos,
Gabriel Mithá Ribeiro
Caro Gabriel
ResponderEliminarPense em escrever algo sobre a romanização de Portugal.Se calhar também nunca existiu...nem existiram escravos, nem longos periodos de evolução.Só os bons dos africanos queriam passar da idade da pedra e do canibalismo às modernas discriminações positivas...