domingo, 2 de junho de 2013

Moçambique: notas de campo (6).






 


 
Matola, sul de Moçambique.
Fotografia de Gabriel Mithá Ribeiro.
 

 
As atitudes face às boleias permitem medir a abertura (a boleia não era habitual no tempo colonial) e o ocaso do ciclo revolucionário (anos oitenta) em Moçambique, bem como os estragos que o tempo vai deixando nas relações de confiança entre as pessoas. Nesses anos, o normal era dar-se boleia como se a independência e a revolução socialista tivessem tornado imoral que os veículos com lugares disponíveis deixassem nas estradas quem necessitava. Desses dias, recordo um vizinho dos arredores de Maputo que excedia em muito a lotação do seu automóvel de cinco lugares quando ia e vinha diariamente da cidade. Dava boleia até poder. Certa vez apercebeu-se de que mais um que estendeu o polegar ficou na estrada. Talvez por razões de consciência retardada, só imobilizou a viatura largos metros à frente. A pessoa correu em direcção ao carro, mas ficou na estrada com rosto atónito por ter levado uma reprimenda moralizadora: O senhor não vê que o carro está cheio! Muito mudou entretanto. Hoje as viaturas passam e não param ao sinal dos raros atrevidos solicitadores, mesmo carrinhas que circulam por povoações isoladas atravessadas pelas estradas nacionais onde escasseiam meios de deslocação. Viajei por estes dias de 2013 numa carrinha de caixa aberta entre as cidades de Maputo e da Beira apenas acompanhado pelo condutor. Este nunca parou para dar boleia, apesar de ter espaço de sobra no veículo. Durante a viagem, não via como associar aquelas pessoas à criminalidade, tema que por ora me interessa. Apenas na portagem do Save o motorista acedeu ao pedido de dois militares armados que pretendiam atravessar para a margem norte do rio que marca a entrada na zona centro do país. Pouco depois, o meu parceiro de estrada contou que há tempos, numa das povoações junto à estrada nacional onde circulávamos, deu boleia a um indivíduo que, passados cerca de cem quilómetros, começou a bater na cabine do veículo e a exigir que parassem. Logo, logo acusou o motorista de lhe ter retirado uma pasta que alegou ter trazido consigo. O condutor negou o que quer que fosse. Por seu lado, o passageiro refinou a exigência: que regressassem ao ponto de partida para verificar se se tinha esquecido da pasta no local onde apanhou a boleia ou em casa. Considerava seu direito certificar-se se o condutor da carrinha falava a verdade. O relato prosseguiu: A situação complicou-se, ficou mal. Assim que vi a polícia na estrada parei e deixei ficar o ‘gajo’… Moral da história: sacrificou-se uma atitude altruísta que beneficiava a vida social, sem exigências de maior a quem a praticava. Se calhar a criminalidade não explica quase nada. São apenas comportamentos cívicos que dificilmente criticamos por termos desaprendido a arte de lidar com maior frontalidade com realidades problemáticas que envolvem pobres. Tanto pior ainda se forem pobres e africanos. Estes, como todos os necessitados pelo mundo fora, não ganham quase nada e perdem muito com discursos simpáticos fabricantes de ilusões. Os maiores problemas sociais, muitas vezes, germinam de atitudes e comportamentos rotineiros, mas censuráveis. Nossos e dos outros. Dos ricos e dos pobres. Sei que este texto ficará atravessado por Sentimentos de um(a) Ocidental, como titulou Maria Filomena Mónica. No meu caso, por adopção. Nunca deixarei de ser deste lado do equador.
 
 
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 
 

7 comentários:

  1. Afinal de contas, o/a autor/a é Gabriel ou Gabriela, ou ambos?

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    1. Amigo, não sou «Cravo e Canela». Sou «Cem anos de solidão».
      Com os melhores cumprimentos,
      Gabriel Mithá Ribeiro

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    2. Conviria retificar a assinatura do artigo.

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    3. Já está rectificado, muito obrigado. E as minhas desculpas ao amigo Gabriel Mithá Ribeiro.
      António Araújo

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  2. No tempo colonial não era habitual os brancos darem boleia?Já vi muitos ex-guerrilheiros da UPA dizerem o contrário.Até achavam os brancos bananas por serem tão burros...porque viajavam milhares de kms de borla e a tratar da futura saúde, sem discriminações de idade e sexo aos colonos que apanhassem...mas prontos a intelectualidade só vê defeitos no que era Ultramar.Agora claro aquilo é só virtudes...

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    1. Cara/o Lusitânea
      Considero nesse aspecto a minha experiência vivida, mulata dos arredores de Lourenço Marques/Maputo, e a boleia é apenas o pretexto empírico para transmitir uma ideia que não é necessariamente contraditória com o que refere sobre Angola. Veja o artigo até ao fim. Quanto ao mais, leia os artigos anteriores desta série, a começar pelo primeiro. Não espero que se tome o título pelo conteúdo, mas por algum motivo sou autor de um livro recente com o título «O colonialismo nunca existiu!» com páginas com muita «intelectualidade».
      Com os melhores cumprimentos,
      Gabriel Mithá Ribeiro

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  3. Caro Gabriel
    Pense em escrever algo sobre a romanização de Portugal.Se calhar também nunca existiu...nem existiram escravos, nem longos periodos de evolução.Só os bons dos africanos queriam passar da idade da pedra e do canibalismo às modernas discriminações positivas...

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