Viajei de chapa,
os transportes semi-colectivos de passageiros, as Toyota Hiace, da cidade de
Maputo para o bairro do Fomento, na Matola, uma distância de cerca de dez
quilómetros. A entrada no chapa, na baixa de Maputo, foi mais ou menos
uma disputa pela sobrevivência em que nos atropelávamos uns aos outros. Dentro
do chapa, pouco depois, a música em bits africanos soava a altos
berros, a ponto de terminar os cerca de trinta minutos do percurso com dores
nos ouvidos. Num transporte previsto para quinze passageiros magros e baixos,
estavam vinte, mais o motorista e o cobrador. Por isso, algumas pessoas iam
penduradas umas nas outras. Num dos locais de anda-e-pára do trânsito, a
Praça dos Trabalhadores (antiga Praça Mac-Mahon), fomos vitimados por um
autocarro a gasóleo, ao lado, e por um carro a gasolina em mau estado, à
frente, entre outros, que por momentos nos fizeram pairar num balão de fumos
tóxicos. Ao menos a poluição sonora passou a ter companhia atmosférica. Com a
densidade do que se ia passando no interior do veículo, nem deu para prestar
atenção ao estilo de condução ou aos riscos da estrada, a outra parte do
episódio. Mas bastou ir observando o semblante de muitos dos meus companheiros
do chapa para entender que eles, como muitas pessoas comuns, vivem
resignados aos incómodos da sobrevivência, abandonados que estão aos instintos
primários de uns quantos que se exibem na vida pública e que, em certos
contextos, a controlam, impondo-se de modo grosseiro sobre um povo em geral
pacífico. Portanto, a curta viagem que descrevo poderá valer como retrato das
relações de poder em diversas situações. Neste e certamente noutros países
africanos, com os mesmos recursos materiais o quotidiano das gentes comuns
poderia ser muitíssimo mais suportável, saudável, delicado, polido. Bastava que
melhorassem certas atitudes e comportamentos que condicionam diversas das
pequenas e grandes relações de poder ou equilíbrios sociais. E para isso não
vislumbro outra fórmula que não seja a censura, a crítica, a rejeição de muitas
e muitas atitudes e comportamentos que também – ou sobretudo – fazem a pobreza
em África. Se eles existem um pouco por todo o lado, nesta África assumem uma
dimensão muito prejudicial porque não se limitam à periferia da vida social,
mas por vezes pairam no seu âmago. Em face disto, uma fórmula maior de rejeição
de África e dos africanos resulta da incapacidade de criticar de modo bem mais
incisivo e persistente o que prejudica o quotidiano. A cultura da vitimização
dos africanos, alimentada dentro e sobretudo fora do continente, muito colada
aos sentidos interpretativos que habitualmente se atribuem a fenómenos como a
escravatura, a colonização ou o racismo, foi e vai matando há várias décadas a
função decisiva e insubstituível da crítica social. É como se as elites
intelectuais e académicas se tivessem desprendido do quotidiano da gente
comum, escapando-lhes sistematicamente os detalhes onde moram pequenos diabos
que transformam em infernos simples mas importantes actividades do dia-a-dia.
NOTA: em
vésperas do regresso a Portugal termina esta série de dezasseis textos.
Agradeço a António Araújo ter incentivado a que os escrevesse com toda a
liberdade e sem limites de extensão. Agradeço ainda aos que foram e vão lendo
estes textos.
Gabriel Mithá Ribeiro
Eu é que agradeço, Gabriel!
ResponderEliminarUm forte abraço,
António
Forte abraço, António. Foi o meu baptismo na blogosfera.
EliminarGabriel
obrigado e tudo de bom para si. Fernando de Sousa
ResponderEliminarCaro Fernando de Sousa
EliminarObrigado e retribuo os votos,
Gabriel Mithá Ribeiro
Obrigado pelos textos. Foi um prazer lê-los.
ResponderEliminarObrigado.
ResponderEliminarAbraço,
Gabriel Mithá Ribeiro
Uma excelente série de artigos, com análises muito penetrantes e perspicazes dos actuais problemas de Moçambique, feitas com rigor sociológico, mas sem pedantismo acadêmico. Obrigado Gabriel. E, como diz lá o provérbio, os cães ladram e a caravana passa.
ResponderEliminarObrigado.
EliminarAbraço, agora de Portugal,
Gabriel Mithá Ribeiro
Vivi lá.
ResponderEliminarFoi um prazer recordar bons e velhos tempos.
Publique aqui ou onde quiser e puder mais e mais fotos para ajudar a recordar.
Caro F.A.
ResponderEliminarObrigado.
Abraço,
Gabriel Mithá Ribeiro
Gostei muito de o ler.
ResponderEliminarHelena Ferro de Gouveia