Daniela Arbex, Holocausto Brasileiro.
Vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil.
Lisboa, Guerra & Paz, 2014
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A
loucura, objecto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida
no oceano da
razão; começo a suspeitar que é um continente.
Machado
de Assis, O Alienista, 1882
Em
1972, David Rosenhan, professor na Universidade de Stanford, levou a cabo uma
experiência que, apesar da sua mais do que duvidosa cientificidade, teve um
impacto profundo no modo como a comunidade académica, a intelectualidade e, sobretudo, a opinião
pública, encararam o internamento hospitalar de doentes mentais.
Publicado
na revista Science em 1973, o artigo «On being sane in insane places» procurava mostrar a falibilidade dos diagnósticos
psiquiátricos e das prescrições de internamento – ou, se quisermos, de
«institucionalização». Numa primeira fase, Rosenhan utilizou um conjunto de
pessoas mentalmente sadias (se é que isso existe…), as quais simularam ter alucinações
sonoras. Dando entrada nos hospitais com identidades falsas, diziam «ouvir
vozes» que falavam «vazio» ou «oco». A experiência foi feita junto de doze hospitais
psiquiátricos de cinco estados dos EUA. Eram «pseudopacientes», pessoas sãs que
fingiam a loucura. Dos vários «pseudopacientes» que foram enviados (o próprio
Rosenhan, três psicólogos, um pintor, uma dona de casa, um psiquiatria…),
simulando vagos sintomas de perturbação mental, todos foram internados, e com diagnóstico de esquizofrenia. A um
foi atribuído o diagnóstico de psicose maníaco-depressiva. Todos foram internados, por períodos que foram dos 7 aos 52 dias. A
duração média de internamento situou-se em 19 dias. Um pormenor, relevante: imediatamente
após o internamento, já no interior dos hospitais, os «pseudopacientes»
deixaram de simular quaisquer sintomas de insanidade. Ou seja, bastou o
diagnóstico feito à entrada para justificar a reclusão por períodos que
chegaram aos 52 dias.
Depois,
a experiência foi feita ao contrário. Uma prestigiada instituição hospitalar quis
ser desafiada quanto à fiabilidade da sua despistagem da loucura. Rosenhan avisou
os responsáveis do hospital que iria enviar vários «pseudopacientes» nos próximos
três meses. Das 193 pessoas que se apresentaram à porta do hospital queixando-se
de perturbações mentais, pelo menos 23 foram consideradas suspeitas de estarem
a simular os seus sintomas, recusando-se a respectiva admissão ou sequer o
tratamento. Acontece que Rosenhan… não tinha enviado ninguém. As 193 pessoas
que se tinham dirigido àquele hospital nada tinham a ver com o psicólogo de Stanford,
eram cidadãos que realmente se queixavam de perturbações mentais. Há quem diga que
41 foram tidos como impostores e 42 como suspeitos, quando, na realidade,
nenhum integrava a experiência de Rosenhan.
Num
primeiro tempo, pecou-se por excesso, internando-se todos os pseudopacientes; no segundo, por defeito, tratando-se como
impostores pessoas que até o podiam ser, mas não a mando de David Rosenhan.
O
estudo de Rosenhan, até pelos seus aspectos cénicos e de indiscutível
comicidade, tinha todos os ingredientes para se tornar famoso. Para mais, ia ao
encontro do esprit du temps, caracterizado
pela crítica de Erving Goffman às «instituições totais» (Asylums, de 1961), pelos trabalhos de Michel Foucault, pelos livros
do libertário de origem húngara, Thomas Szasz, autor, entre vários outros, do
célebre The Myth of Mental Illness
(1961). Filmes de culto como Le Roi de
Coeur, de 1966, ou One Flew Over the
Cuckoo’s Nest, que ganhou um Óscar em 1975, reforçavam a crítica à
«institucionalização» como método de tratamento indiscriminado e indiferenciado
das doenças mentais.
O
trabalho de Rosenhan foi objecto de severas críticas quanto à sua
cientificidade e rigor. Mas pode ter demonstrado, como poucos, que a
psiquiatria não é imune a «pré-conceitos», às predisposições que ditaram, num
primeiro momento, o internamento de todos os falsos loucos e, num segundo
momento, a desconfiança perante as 193 pessoas que se apresentaram à porta de
uma instituição hospitalar prestigiada, queixando-se dos fantasmas que lhes
trespassavam a mente, perto do coração selvagem. De todas as disciplinas médicas, a psiquiatria é,
porventura, aquela que mais sofre o influxo de pré-compreensões e ideologias,
seja num sentido punitivo e carcerário, seja no sentido da «des-institucionalização»
libertadora. Nada disto põe em causa o seu estatuto ou implica uma crítica a
uma alegada ausência de objectividade. Trata-se, tão-só, de constatar que, como
todas as outras disciplinas, mas talvez mais do que elas, a psiquiatria tem uma
objectividade situada no tempo.
Acontece,
tão-só, que essa objectividade lida com várias subjectividades, com as subjectividades
múltiplas e diversas de milhares e milhares de pessoas, a que chamamos «pacientes».
E o grande problema é quando se abstrai da subjectividade íntima de cada um na
busca de uma receita objectiva que se aplique a todos, indiscriminadamente.
Todos os pseudopacientes de Rosenhan foram internados. Nem um escapou.
Recentemente
editada entre nós, a reportagem-choque de Daniela Arbex, uma das mais premiadas
jornalistas brasileiras, conta a história de vida e morte do Hospício Colônia, o
maior do Brasil. Fundado em 1903, na cidade mineira de Barbacena, albergou
milhares de reclusos até aos inícios dos anos oitenta, e até mais recentemente. Mais de 60.000 pessoas
perderam ali a vida. No entanto, esta estatística não é, por muito estranho que
pareça, o mais importante na história do Colônia. Sessenta mil pessoas, em si
mesmo, é algo que nada nos diz. Como diria Estaline, é só um número, para mais redondo. Muitos poderão ter morrido
ali porque era esse o seu destino, por causas várias que levam à hora da nossa morte, mesmo
quando temos os melhores cuidados, mesmos nos hospitais mais sofisticados. Muitos dos mortos do Colônia podem ter morrido porque sim, a única razão válida para desaparecer da vida. Uma estatística não faz um genocídio. Daí a
importância do livro de Daniela Arbex, que dá carne a uma história e vida a uma estatística – a uma
estatística de morte. Mais do que os números, os protagonistas do livro são as pessoas que ali viveram. As
mulheres que ali engravidavam e que, querendo proteger as suas crias,
espalhavam fezes no ventre, para dissimular a gravidez e proteger os
nascituros. Em vão. As crianças, pouco depois de nascerem, eram retiradas às
suas mães – e o livro contém histórias de reencontros e desencontros, de filhos
que conheceram as mães, algumas vezes depois de estas terem morrido. Também há
reencontros felizes, e até casamentos de antigos internados no Colônia.
Neste
livro há vilões, cujos nomes a autora resguarda, pois o seu propósito maior era
contar a tragicidade dos internados e a heroicidade dos que primeiro
denunciaram o horror que ali viram. Chegando em trens de doidos, como lhes chamou Guimarães Rosa, foram milhares de homens, mulheres e crianças,
desnudados ao frio da serra da Mantiqueira, sem comida nem medicação, alvo de
tratamentos por electrochoques (tantos que, às vezes, a rede eléctrica de
Barbacena ia abaixo). Quando morriam, o que acontecia com sinistra frequência,
eram enterrados no Cemitério da Paz, cuja terra está hoje saturada pela
presença de 60 mil corpos sepultos. Noutros casos, vendiam os cadáveres para aulas de
anatomia. As faculdades de medicina disputavam entre si os mortos do Colônia, mas, durante décadas, poucos médicos se viram no hospital de Barbacena.
Cemitério da Paz, Minas Gerais
Imagem de Roberto Fulgêncio/Tribuna de Minas
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O comércio da morte, assim lhe chamavam, iniciou-se, ao
que parece, na década de sessenta, na mesma década em que plateias inteiras deliravam
de riso com a comédia Le Roi de Coeur, em versão King of Hearts.
Enquanto Rosehan desenvolvia a sua experiência com «pseudopacientes», nesse preciso instante, a
Universidade Federal de Juiz de Fora adquiria 62 cadáveres de internados no
Colônia, para fins pedagógicos. Entre 1969 e 1980, dezassete faculdades de medicina
do Brasil adquiriram quase dois mil cadáveres do Colônia. No mundo humano, comércio carnal sempre
houve. Este, porém, tinha um detalhe que diz tudo: nenhum dos familiares
autorizou a venda dos corpos.
No historial do Colônia, de resto, há
poucos familiares de internados. Desde logo, porque estes, antes de serem
enclausurados, já nem família tinham: eram os párias de uma sociedade de fundas
clivagens – sociais, rácicas e sexuais. Diz-se que 70% dos internados não
tinham diagnóstico de doença mental. O número pode impressionar, mas devemos
lembrar-nos que 100% dos «pseudopacientes» de Rosenhan foram internados. O que importa, uma vez mais, está para lá da estatística. Retenhamos a sociologia dos internados: epilépticos, alcoólicos, negros, pobres, homossexuais e prostitutas, esposas rejeitadas, meninas estupradas. Muitos, nem nome tinham, sendo chamados «Ignorados de Tal». No sector feminino, 80% das internadas eram consideradas indigentes. Bebiam água de esgoto, comiam ratos para sobreviver. No ar, os abutres planavam, esperando a pior oportunidade. A partir de finais da década de 50, os anos dourados que Bethânia canta, os reclusos passaram a dormir sobre montes de palha, pois assim se aumentava o espaço para mais e mais gente.
Pelo
meio, episódios desconcertantes, como o daquele homem que esteve internado 34
anos, permanecendo calado durante 21 anos. Até ao dia em que, ao ver a banda passar, o falso mudo
soltou a voz: − Por que você não disse
que falava?, perguntou um funcionário. – Uai, nunca ninguém perguntou., respondeu o homem, Antônio Gomes da
Silva, que ademais passou a vida a assinar documentos com o polegar quando se
descobriu, em 2003, que sabia escrever o seu nome, e com todas as letras. Vinte e um anos calado. Há
também os que tiverem de aprender a viver depois de libertados dali. Como Sónia
Maria Costa, que ainda hoje coloca frequentemente dois vestidos sobre o seu
corpo, porque passou a vida nua. Outros nem para tomar banho querem largar os
sapatos que só recentemente conhecerem. Dormem calçados. Sobrevivem hoje 200
antigos internados no Colônia. Daniel Arbex entrevistou todos os que conseguiu,
num trabalho notável de recolha testemunhal.
Seguiu as passadas de dois pioneiros, o
fotógrafo Luiz Alfredo e o jornalista José Franco, que em 1961 fizeram explodir
a reportagem «Sucursal do Inferno» nas páginas da revista O Cruzeiro (as imagens de Luiz Alfredo foram republicadas em 2008 no livro Colônia, editado pelo Governo de Minas, e foi a visão daquelas fotografias que despertou o instinto jornalístico de Daniela Arbex). Na época, fez comoção em várias consciências, mas a
ditadura militar encarregar-se-ia de silenciar a denúncia. Que tudo isto tinha uma indiscutível dimensão política e atormentava
os espíritos prova-o o facto, singelo mas sintomático, de quase todos os
denunciantes terem tido problemas. Ronaldo Simões Coelho, cicerone de Foucault em Minas, um dos primeiros
médicos a denunciar as atrocidades do Colônia, perdeu o emprego na Fundação
Hospitalar do Estado de Minas Gerais. Francisco Paes Barreto, que em 1966 começou a denunciar os crimes do Colônia, tendo publicado em 1972 o texto «Críticas do hospital psiquiátrico», foi alvo, por causa desse artigo, de um inquérito do Conselho Regional de Medicina. Esta sindicândica, note-se, teve lugar recentemente, em 1979. O psiquiatra Antônio Soares Simone foi
processado por vários hospitais e o Conselho Regional de Medicina chegou a
ponderar retirar-lhe o diploma. Que crime cometera? Foi um dos acolheu no
Brasil o psiquiatra italiano Franco Basaglia, famoso pioneiro da luta pela
des-institucionalização, um homem que, após visitar o Colônia, disse em
conferência de imprensa: «Estive hoje num campo de concentração nazista. Em
lugar nenhum do mundo presenciei uma tragédia como esta.»
Terá sido esta a primeira vez que o
Colônia foi comparado a um campo de concentração nazi. É nessa linha que se
inscreve o título do livro de Daniel Arbex, uma opção deliberada e intencional,
que a autora justifica na entrevista que a seguir publicamos.
Fotografias de Luiz Alfredo, da revista O Cruzeiro, 1961
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Comecemos pelo título – Holocausto Brasileiro –, mas também pelo conteúdo. Além do título,
o livro traça frequentemente um paralelismo entre a tragédia que, durante
décadas, teve lugar no hospício do Colônia, em Minas Gerais, e os crimes do
nazismo. Compara-se, inclusivamente, os «trens de doidos» de que fala Guimarães
Rosa, e que rumavam a Barbacena, aos comboios da morte que se dirigiam a
Auschwitz. Mesmo tendo em conta a dimensão da barbárie de Minas, será legítimo
compará-la ao Holocausto nazi e aos seus 6 milhões de vítimas? Em que medida,
ou até que ponto, é legítimo estabelecer essa aproximação e usar o conceito de
genocídio para descrever esta tragédia?
Daniela Arbex − Não há outro título
possível para o que ocorreu no Colônia. Mesmo em número muito menor, o que
houve no hospital foi um extermínio. Assim como aconteceu com os judeus, os
pacientes eram deixados em Barbacena para morrer. Lá, suas cabeças eram
raspadas, eram uniformizados e tinham a sua humanidade confiscada.
.
Em Estação
Carandiru, o médico e escritor Drauzio Varella por duas vezes cita uma
frase do calão dos reclusos daquele presídio paulista, que dizia o seguinte:
«Numa cadeia, ninguém conhece a moradia da verdade». Neste seu livro, mais do
que procurar a moradia da verdade, a
Daniela pretendeu recolher os testemunhos dos sobreviventes. Noutras
entrevistas, aliás, já disse que considera ser esse o mérito ou a novidade
principal desta obra. De facto, a moradia
da verdade de Barbacena, objectivada nas fotografias de Luiz Alfredo ou no
documentário Em nome da razão (1979), de Helvécio Ratton, já era conhecida. O
que não era conhecida era a verdade
contada por quem a viveu. É esse o propósito e o sentido da sua obra?
Sim. O sentido do
livro é dar voz aos socialmente mudos. E quando eles, finalmente, puderam
falar, nós chorámos.
.
A verdade, a verdade real dos factos, surge
aqui, neste livro, muito mais pela sucessão reiterada de depoimentos
coincidentes do que pelo cruzamento de informações, mesmo tendo em conta que,
além de testemunhos, a Daniela consultou arquivos que, segundo parece, hoje
estão mais «blindados» do que no tempo da sua pesquisa. A pergunta, no fundo, é
a seguinte: mais do que procurar uma verdade de tipo «judiciário», procurou a
«verdade das vítimas»? Mais do que julgar objectivamente, como num tribunal,
procurou contar uma verdade subjectiva, feita de memória sofrida; será isso?
ZZZZResgatar a verdade é uma obsessão para
mim. Por isso, as fotos estão no livro. Junto com cada depoimento, há também
documentos. Procurei publicar histórias que, de alguma forma, eu pudesse
comprovar. Ouvi muito mais do que consegui escrevi, mas priorizei os casos com
início, meio e fim. Além disso, há o arquivo poderoso da memória dos
sobreviventes, nunca antes acessados.
.
.
De certo modo, em articulação com a pergunta
anterior. Em entrevistas que tem concedido (por ex., ao jornal Público, de 9/5/2014), a questão da
responsabilidade é, ou parece ser, para si, relativamente secundária. Pelo
menos, nesta fase. Para a Daniela, mais do que apurar culpados a preocupação
maior foi tornar conhecida a história das vítimas do Colônia. Mas isso será
suficiente para lhes fazer justiça? Dizer que a culpa é colectiva, de toda a
sociedade, não significa diluir as responsabilidades individuais que também
existiram? Por exemplo, a responsabilidade de quem demitiu os que primeiro
denunciaram a situação passada em Barbacena…
Não penso dessa forma.
Fazer justiça é dar voz aos injustiçados, tornar visível os invisíveis, lembrar
os esquecidos. Esse foi o papel que me propus cumprir. Se meu livro levar à
individualização da culpa será importante, porém não há nada mais forte do que
tornar essa história conhecida.
.
.Não existe o risco de, como sucedeu com
denúncias anteriores, depois de passado o tremendo impacto que esta obra teve e
está a ter, tudo voltar ao esquecimento? Existem acções de indemnização
pendentes na justiça, intentadas por parte dos familiares das vítimas, mas a
Daniela refere que os documentos estão hoje muito mais inacessíveis, foram de
algum modo «blindados» pelas autoridades. Ainda há o perigo de a amnésia
triunfar sobre a justiça?
Jamais. Holocausto Brasileiro é um livro que
grita todos os dias, cujo eco está indo cada vez mais longe. O livro eterniza
essa dramática história. A maior jornalista do Brasil, Eliane Brum, lembra que
depois da internet já não é mais possível morrer. «A única forma de morrer (ou
de ser esquecido) é estar fora da linguagem – ou nunca ter falado», ela diz.
ZZZZNo prefácio, Eliane Brum afirma que 70% dos internados no Colônia não tinham diagnóstico de doença mental, eram epilépticos, alcoólicos, prostituas, meninas grávidas estupradas pelos seus patrões, mulheres de quem os maridos se queriam ver livres. Aquela estatística, de 70%, é impressionante. Como se apurou esse número?
É uma estimativa
sustentada pelo levantamento do diretor do hospital por mais de dez anos. Os
casos do livro confirmam isso. A maioria dos que foram levados para lá tinham a
sanidade em seu favor.
ZZZZLigando à questão anterior, da estatística apresentada por Eliane Brum no prefácio e, depois, pela Daniela, no livro. Escreve que, mesmo nos anos 70, a taxa de institucionalização era elevadíssima: a cada duas consultas e meia, uma pessoa era hospitalizada. Trata-se de algo que só ocorreu em Minas Gerais ou marcou todo o Brasil? E essas pessoas, na década de 70 do século XX, eram internadas com diagnóstico de doença mental, ou não necessariamente?
Esse dado é oficial e
faz parte dos arquivos públicos de Minas. Não posso falar de outros estados,
porque não pesquisei seus números, mas diante de uma cultura eugenista, que
tinha como hábito a limpeza social, segregar o diferente era uma prática comum
no Brasil.
.
Fazendo lembrar O Alienista, de Machado de Assis, o internamento era tão massivo
que parecia ocorrer indiscriminadamente, pois só assim, julgo, se pode alcançar
uma taxa tão elevada de hospitalização. No entanto, parece que as coisas não
ocorriam assim tão indiscriminadamente ou, melhor dizendo, havia discriminação
e selectividade social. O hospício culminava um processo de exclusão que já
vinha de trás – os internados são os pobres, os negros, os marginalizados, os sem
nome, a quem chamavam «Ignorados de Tal» – e que se prolonga depois,
prosseguindo após o internamento. Mesmo no interior do Barbacena existia
classismo e discriminação, com os que podiam pagar beneficiando de refeições
melhoradas, como refere no livro. Esse padrão discriminatório, que certamente
terá sido mais intenso nos primeiros tempos, manteve-se até ao fim do hospício
de Barbacena? E o facto de existir quem pudesse pagar rancho melhorado não
mostra que, afinal, o hospício não albergava apenas miseráveis e excluídos? No
fundo, pedia-lhe que nos desse uma visão geral do padrão social de
internamento, um retrato-robô do recluso e como tudo isso foi evoluindo ao
longo das várias décadas de existência do Colônia.
Há dados que
confirmam o grande número de indigentes do Colônia, aqueles que não podiam
pagar. E como acontece até hoje no Brasil, os que podem pagar são também
aqueles que recebem tratamento melhor. A situação no Colônia era gravíssima até
o final da década de 70, quando um grande movimento de denúncia e de reforma
psiquiátrica começou a derrubar aqueles muros. Mas o hospital existe ainda
hoje, com uma nova proposta. Tornou-se um hospital geral, com várias
especialidades, inclusive a psiquiatria. Restam hoje 200 sobreviventes daquele
período de dor. Boa parte deles deve morrer lá, em função da completa perda de
vínculos familiares e de não terem qualquer possibilidade de autocuidado.
Relativamente à justiça e ao apuramento de
responsabilidades, algo que para mim não se encontra muito claro é o
envolvimento da Igreja Católica. O hospital existia desde 1903, segundo diz,
«com o apoio da Igreja Católica». Mas quando passou a ser uma instituição do
Estado? E, mesmo depois disso, a Igreja continuou presente ali? De que forma?
O hospital foi criado
em 1903 pelo Estado e em todo esse período continuou sendo mantido pelo Estado,
como é até hoje. Mas a igreja católica sempre esteve presente, «oferecendo
assistência» aos doentes. Significa que os religiosos viram tudo e nada
fizeram.
O hospício já não existe, pelo menos com as
bárbaras características descritas no seu livro. Como é hoje o Colônia e o
«corredor da loucura» de Minas Gerais? Pode dizer-se que terminou o «holocausto
brasileiro»?
O hospital tornou-se,
curiosamente e contraditoriamente, importante para uma população estimada em
700 mil pessoas da região que contam com os serviços oferecidos ali para se
tratarem pelo Sistema Único de Saúde. Entretanto, o holocausto ainda não
acabou. O país ainda mantém instituições que segregam, isolam, punem e torturam
seus confinados. Basta acessar as cadeias, alguns hospitais psiquiátricos que
ainda teimam em manter os velhos modelos. Basta olhar para o lado e perceber o
extermínio dos moradores de rua, os massacres dos pobres, a violência urbana.
Silvio Savat, menino de Barbacena, fotografado em 1979 por Napoleão Coelho.
Sobreviveu, residindo hoje em Belo Horizonte
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O seu envolvimento com a história de Barbacena foi, como se
pressente em cada linha de Holocausto
Brasileiro, emocionalmente muito forte. Considera-se também, num certo
sentido, uma reclusa do Colônia? E vai continuar ligada à
denúncia desta tragédia ou tem outros projectos em mente, em áreas novas?
Reclusa, não, mas
emocionalmente afetada sim. Foi uma viagem dolorosa ao passado, ao pior e ao
melhor do ser humano. Só me senti liberta, quando pude dividir com meu país e
agora com o mundo todo o horror que se passou dentro daquele lugar. E a herança
do Colônia na minha vida é especial. Tive o privilégio de conhecer Mercês,
Marlene, Sônia, Cabo, Elzinha, Tânia, João Bôsco, Geralda, Débora, Jairo, Ronaldo Simões, Francisco Paes, Helvécio
Ratton, Luiz Alfredo, Hiram Firmino... Foi maravilhoso estar com cada um. Saio desta obra
fortalecida como ser humano, certa de que o papel do jornalista é revelar,
fazer sentir, transformar. Quanto ao meu projeto futuro, estou-me dedicando de
corpo e alma ao meu novo livro que trata de histórias vividas na ditadura
brasileira. Meu compromisso na vida é este: falar de gente e das
extraordinárias histórias que cada um de nós tem para contar. Basta que alguém
se disponha a ouvi-las.
Entrevista a Daniela Arbex e texto de António Araújo
Mais uma vez obrigado, António. É o Malomil.
ResponderEliminarGabriel Mithá Ribeiro
Obrigado, Gabriel. Que exagero, fruto de amizade...
EliminarUm abraço,
António
Do melhor que já li.
ResponderEliminarObrigado.
JL
Muito obrigado pelas suas palavras.
EliminarCordialmente,
António Araújo
Bom dia caro Antonio Araujo,
ResponderEliminarObrigado pelo texto. Vou lê-lo com mais vagar. Os blogues deviam ser principalmente isto que v. esta a fazer. Parabéns e obrigado.
joão viegas
Caro João,
EliminarEstou a falar com o João Viegas que vive em Paris? Com quem editei um livro do Padre António Vieira sobre a Serra de Ibiapaba?
Um abraço, com saudades
António Araújo
Ola,
EliminarSou esse mesmo. Felicidades e mais uma vez parabéns pelo blogue, que esta uma categoria. Se passar pela cidade luz, não deixe de apitar !
joão viegas
Vamos ver.
ResponderEliminarPara ser internado nao era preciso algum tipo de informe psiquiatrico ou médico?
Entao...
O livro, a dada altura, refere que o internamento poderia ser requisitado por um delegado, pelo que me parece que várias pessoas terão sido internadas sem intervenção de um médico (ou que esta intervenção terá sido meramente formal)
EliminarCordialmente,
António Araújo
Caríssimo A. Araújo
ResponderEliminarExtraordinário!! Tremendo! O meu caro consegue forçar-nos a ler tragédias sem necessitar das letras todas, com a proximidade e a distancia precisamente medidas!! A sua habilidade para enaltecer o essencial face ao ruído e acessório é extraordinária!! Extraordinária porque não se trata de uma questão de forma, à qual não concede habitualmente, nem de sensibilidade, demasiado telúrica, mas da racionalidade dos fenómenos que envolve o pressuposto de que os leitores entendem a categoria da natureza das coisas!!
Uma vez mais, muito obrigado!
Um bem haja, Justiniano
Muito obrigado pelas suas palavras, ainda que as considere exageradas...
EliminarCordialmente,
António Araújo
Tremenda matéria. Obrigado. O que me pergunto é se essa situação não era bastante comum numa época em que a psiquiatria estava muito menos desenvolvida e o respeito aos direitos humanos era uma preocupação muito menor. E nem falo do nazismo. Eu mesmo ouvi relato de uma freira que, no início de sua vida religiosa, foi destinada a um estabelecimento desses (prefiro não dizer onde, mas numa cidade importante), talvez na década de 50 do século passado, e a realidade não era muito diferente da relatada nesse livro.
ResponderEliminarMuito obrigado. O livro refere-se à realidade do século passado no Brasil, precisamente.
EliminarCordialmente,
António Araújo
Impressionante, tantas vidas que eram estorvos de outras vidas, parecia não haver relação médico/doente ou outro cuidador, apenas amontoados de gente.
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