Há uns dias falou-se aqui no Malomil do
Leão de Wannsee e, logo depois, dos leões do Congresso dos Deputados, em
Madrid. Suscitaram estes, como se disse, uma controvérsia assaz desastrada. Em
2012, o Canal História iniciou uma campanha publicitária para que fossem
devolvidos os testículos a um dos leões da câmara baixa do parlamento espanhol.
A campanha teve tal sucesso que foi até galardoada com um prémio no Festival
Iberoamericano de la Comunicación Publicitaria.
Porém, a Wikipedia, sempre bem
informada, informa-nos que aquela campanha não tinha razão de ser, porquanto os
leões representam Hipómenes e Atalanta, um herói e uma heroína da mitologia
grega. Daí que um deles, Hipómenes, tenha testículos, ao passo que Atalanta os
não tem. Talqualmente no quadro de Guido Reni, que, a poucos metros dali, se
exibe no Museu do Prado, pintado por bandas de 1618 ou mesmo 1619. Talqualmente
como na Fonte de Cibeles, onde, a poucos metros dali, também existe um par de
leões, ambos mitológicos. Remontam estes, porém, a tempos mais recuados,
datando do século XVIII e sendo obra do escultor francês Roberto Michel.
Guido Reni, Hipómenes e Atalanta, 1618-1619
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Quando, em meados do século XIX,
construíram o edifício das Cortes, seguindo projecto do arquitecto valenciano Narciso Pascual y Colomer, nem sequer pensaram em colocar lá quaisquer animais, excepto humanos.
Uns candeeiros de rua, bastante amaneirados mas que logo foram considerados
pouco dignos e até impróprios para abrilhantar a entrada do parlamento das orgulhosas
Espanhas.
O Congresso dos Deputados, na sua traça original
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Então, encomendaram ao escultor
Ponciano Ponzano y Gascón que fizesse um par de leões para aquele local.
Simplesmente, como escasseava o dinheiro, a escultura foi feita em gesso pintado
a imitar o bronze. Inaugurada em 1851, cedo a obra começou a acusar sinais de
desgaste e degradação. Pediram a Ponciano que fizesse novas estátuas, em
materiais mais nobres e duradouros, mas o artista pediu um orçamento de tal
forma elevado que entregaram a empreitada a José Bellver y Collazos. Um erro.
Na verdade, a parelha de leões
apresentada por José Bellver era tímida, atarracada, motivando o protesto geral
e a sua rápida trasladação para os Jardines de Monforte, em Valência, onde
actualmente continuam a exibir a sua (fraca) raça, muito cabisbaixos.
Os leões de José Belver, em Valência
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De novo foram ter com Ponciano. Mas,
desta vez, deram-lhe condições de trabalho, mormente no que tange às matérias-primas.
É que, entrementes, mais precisamente em Março de 1860, o exército espanhol
tivera retumbante vitória no Norte de África, esmigalhando o inimigo na batalha de Wad-Ras. O inimigo possuía canhões, e deles se fizeram leões, fundidos em
1865 na Real Fábrica de Artilharia de Sevilha (ver a história aqui). Houve quem protestasse por se decorar
a entrada de um parlamento com base em material bélico, mau presságio para uma
terra que queria paz e concórdia, ainda que nunca a tivesse. Alguns deputados,
que os há sempre mais exaltados, quiseram mesmo destruir os leões de Ponciano,
mas prevaleceu a opinião contrária e os animais lá se encontram no centro de
Madrid, restaurados que foram em 1985.
O desenho original da obra a efectuar em Sevilha
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São conhecidos pelos nomes de «Daoiz» e
«Velarde», os dois heróis do levantamento de 2 de Maio de 1808 contra as tropas
francesas. Talvez seja daí, da sua identificação com Luis Daoíz Torres e com
Pedro Velarde y Santillán, que venha a tese descabida que ambos os felinos são
machos, sendo um desastradamente castrado. Castrados eram, isso sim, os
sacerdotes que, na Grécia antiga, veneravam Cibeles ou, melhor dizendo, o seu
consorte, Attis.
Fotografia de J. Laurent
1860
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Os leões, na versão actual, já sem os candeeiros em frente
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1890
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Os leões de Madrid assistiram impávidos
a muita História, desde a Guerra Civil até ao frustrado golpe do 23-F,
passando, mais recentemente, pela coroação de Felipe VI. Num lugar qualquer,
que já nem sei onde fica, vi imagens das Cortes durante os tempos de morrer em Madrid (se calhar, foi nesse
célebre livro), mas não me recordo se mostravam os leões da Plaza de las
Cortes. O que sei é que estes, com o passar dos anos, são um ícone da capital
espanhola, figurando em inúmeros desenhos e cartoons,
e até no logótipo das Cortes do país vizinho. São ainda palco de muitas
manifestações e actos de protesto.
Logótipo do Congresso dos Deputados
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Abril de 1914
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O
que me interessava ver era se os leões de Cibeles (os de Madrid e, já agora, os da Cidade do México, réplica inaugurada pelo grande Tierno Galván em 1980, e os de Pequim, imagine-se!), também têm o
porte dos seus colegas do Congresso, ou seja, se também formam um casal de
heróis da mitologia grega, condenados pela fúria de Zeus a serem felinos para
todo o sempre. É mera curiosidade, pois a questão da presença ou ausência de
testículos não tem grande relevo. Dos leões da Ponte das Correntes, em
Budapeste, diz-se que não têm língua – o que, segundo dizem, não é verdade.
Mas, sobre Budapeste e as suas estátuas, falar-se-á em breve, se não for muita maçada
para quem tem a paciência de ler estas patetices com o calor que está fazendo.
António Araújo
Suponho que já conhece "Lions" de Hans Blumenberg (li em tradução francesa). Uma jovem romancista alemã escreveu um romance recentemente "Blumenberg e os leões", mas não o li nem vi mais do que algumas recensões críticas.
ResponderEliminarCordialmente
a) Alcipe (masculino)
Não, não conhecia - nem imagina quão grato lhe fico! Pelo que vi, a tradução que existe é francesa, de Les Belles Lettres. Agora, por acaso, estou concentrado em leopardos, com a leitura de «Leopard», de Desmond Morris. Muitíssimo obrigado!
EliminarCordialmente,
António Araújo
"Talvez seja daí, da sua identificação com Luis Daoíz Torres e com Pedro Velarde y Santillán, que venha a tese descabida que ambos os felinos são machos, sendo um desastradamente castrado."
ResponderEliminarO facto de que ambos têm abundante juba não é indicativo de que ambos são machos?
Aí, pelo pouco que sei, creio que devemos ter presente a origem mitológica das figuras, ou seja, o facto de Zeus ter transformado em leões Atalanata e Hipómenes, pelo que sempore foram representados como leões e não como uma leoa e um leão. Mas, confesso, existem variantes e «nuances» nos relatos mitológicos cujos contornmos não conheç o em profundidade.
EliminarCordialmente,
António Araújo.
O leão do marquês tem também uma história assim tão interessante como dos seus pares espanhol e alemão?
ResponderEliminarAí está uma excelente pergunta! Vou tentar debruçar-me sobre ele em breve. Por agora, ando entretido com os leões de Budapeste. Há um livro sobre as estátuas de Budapeste que - acredite - não fala dos leões da Ponte das Correntes... Em contrapartida, mas em húngaro, há um livrinho maravilhoso sobre a presença de figuras de animais na cidade. O título é bastante magiar: «Budapest Székesfováros Állat-És Növénykertje»...
EliminarCordialmente,
António Araújo
Curiosa esta bizantinice em plena sillyseason num Portugal castrado.
ResponderEliminarCuidado com os leões de Budapeste...
SB
A Biblioteca Pública de Nova York tem dois imponentes leões de mármore, deitados, ladeando a entrada. Constituem a obra mais importante do escultor Edward Clark Potter (1857-1923), esculpidas pelos irmãos Piccirilli. Os leões eram chamados originalmente Leo Astor e Leo Lenox, por causa das duas bibliotecas privadas que formaram o núcleo do acervo. O prefeito Fiorello La Guardia substituiu-os por qualidades que os novaiorquinos demonstraram atravessando a Grande Depressão – Paciência (do lado esquerdo ou sul) e Fortaleza (do lado direito ou norte) – e estes nomes pegaram.
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