Perdidas, perdidas, não estão estas
memórias de Leonoreta Leitão. São, aliás, relativamente recentes, tendo sido
publicadas em 2015, pelas preciosas Edições Colibri. No entanto, como não é –
nem foi – um livro muito falado, crê-se que será interessante dar breve nota
destas «Memórias de uma professora do Estado Novo à Democracia».
Era
Uma Vez Uma Boina, assim se chama o título. E, na boina, uma estrela
vermelha. No interior, logo nas primeiras páginas, uma fotografia da autora
abraçada a Vasco Gonçalves (ou vice-versa). A orientação ideológica da
Professora Leonoreta, bem como a sua militância política ou sindical, não são
escamoteadas, longe disso.
Mas talvez mais interessante seja o seu
percurso. Nos dias que correm, já reformada, participa nas sessões do
Departamento dos Professores Aposentados do Sindicato dos Professores da Grande
Lisboa. E assiste, por vezes, às quintas-feiras culturais no Vitória, Centro do
Partido Comunista na Avenida da Liberdade. Pelo menos, é o que consta do introito,
pois não sabemos se tudo isto ainda se passa, ou é já passado. Moradora em
Alvalade, Leonoreta Leitão frequenta o cinema City-Alvalade, seguindo
religiosamente as «apreciações garantidas de João Lopes». Com a amiga Melinda,
viu o filme Ida. Na companhia da
Margarida, assistiu ao A Imigante e,
com a Sofia, visionou Os Maias. Nas
horas vagas, lê – Maria Teresa Horta, Pérez-Reverte, António Goucha Soares.
Leonoreta Leitão, nascida em Leiria em
1929m, diz ter tido uma «infância privilegiada». A casa dos avós paternos tinha
dezoito divisões. Para serventia do casarão, uma cozinheira e uma criada de
fora. E uma lavadeira e uma costureira. Estava aquela casa na Rua do Comércio,
pois na Rua do Comércio estavam os Armazéns Leitão, portentoso estabelecimento comercial
da cidade de Leiria, firma fundada em 1854 pelo bisavô de Leonoreta.
Na biblioteca paterna, um mundo
interminável, desde Mensagem de Pessoa
ao Kamasutra, de autor desconhecido.
Tinha o pai de Leonoreta legítimas aspirações literárias, que concretizou
parcialmente em obras como Ginástica de
Humildade.
Em 1940, com muitos portugueses, a
família Leitão, de Leiria, veio até Lisboa. Ver a Exposição do Mundo Português.
Os pais explicaram à jovem menina que a exposição tratava das descobertas
marítimas dos lusitanos, mas advertiram-na que «aquelas terras pertenciam a
quem lá vivia». Tinha Leonoreta 8 anos quando seu pai, formado em Direito, foi
nomeado Juiz dos Desastres no Trabalho, em Vimioso. De lá, escrevia à família
um encantador «Jornal do Pai Só». Mais tarde, seria Chefe das Finanças em
Alcobaça.
Acácio
Leitão era amigo pessoal de António Ferro, tendo arranjado emprego no
Secretariado da Propaganda Nacional, onde escrevia teatro radiofónico. Peças
teatrais como «Os noivos que viajam». A noiva era a própria mãe de Leonoreta e
o noivo, na peça de Acácio, era vocalmente protagonizado por Curado Ribeiro.
Graças
ao dinheiro que se pai lhe dava, Acácio Leitão pôde ser um mecenas do seu
tempo, oferecendo a Almada Negreiros uma estadia de um ano em Paris e subsidiando
uma ópera de Ruy Coelho. Falecido em 1945 – era Leonoreta aluna do Luceu Filipa
de Lencastre, em Lisboa – a sua morte ceifou uma carreira promissora no campo
das letras e das artes. Viúva, a mãe trabalhava no Secretariado Nacional de
Informação 8SNI) e, de manhã, vendia bolos para fora. Sem que saibamos porquê,
a morte do pai Acácio diminuiu o desafogo financeiro da família, obrigada a
viver numa parte de casa, na Rua das Picoas, onde sofreram «as maiores
humilhações» da proprietária, diz Leonoreta. Mudaram-se para a Rua D. João V e,
entrementes, a irmã de Leonoreta desistira dos estudos de Escultura,
dedicando-se a tempo inteiro às tarefas de dona de casa, mãe de filhos, e
mulher de esposo.
Foi
a família Leitão viver depois para a Rua da Bela Vista à Lapa, habitação
melhorada, com azulejos setecentistas e janela para o Tejo. Nas imediações (ou,
melhor, ainda nos tempos em que moravam na Dom João V), uma vizinha, que era
médium, emprestou a Leonoreta Os Subterrâneos
da Liberdade, de Jorge Amado. Em troca, Leonoreta passou-lhe A Mãe, de Gorki, livro que lhe havia
sido dado pelo seu primo Francisco, militante do PCP:
Começa
aqui a fase de mais intensa politização da jovem Leitão, que mais tarde será
professora e sindicalista. O oposicionismo vinha de trás, era genético. Seu
tio, Baltasar de Almeida Teixeira, fora deputado às Constituintes. Viveu até
aos 103 anos na Avenida Almirante Reis e, de vez em quando, Leonoreta ia lá a
casa, ler-lhe o República. Ainda
viveu Baltasar o 25 de Abril e, a 1 de Maio, desfraldou gigantesca bandeira na
sua casa da Almirante Reis. Vidas passadas.
A
mãe de Leonoreta tivera uma infância de «menina rica», frequentando o melhor
colégio de Freiras de Coimbra e tendo uma mademoiselle
em casa, para aprender francês. O seu pai suicidou-se, ficando a mãe de
Leonoreta, subitamente, num estado de alguma pobreza. Tinha então 19 anos,
altura em que se fixou em, Leiria, onde vivia seu irmão Luís, director do Banco
de Portugal. O seu outro irmão, José, fora ao Ultramar, onde redigiu um
relatório sobre as condições desumanas do trabalho indígena em São Tomé. Em
resultado disso, foi passado compulsivamente à reforma, vivendo de explicações.
Mas – e o ponto é curiosíssimo – os coronéis da Censura lembraram-se dele.
Contrataram-no. Leonoreta pedia ao tio que levantasse a censura a algumas
obras. Por vezes, tinha êxito, como no caso de Jorge Amado; noutros, não
conseguia, como aconteceu com as obras de Alves Redol, Orlando Costa ou Urbano
Tavares Rodrigues. Um censor extraordinário, que com a sua sobrinha festejou, a
taças de champanhe, a promissora alvorada do 25 de Abril de 74!
Antes
disso, muito antes, a mãe de Leonoreta fez uma exposição à Câmara Municipal de
Lisboa solicitando uma casa no bairro de Alvalade. Dado o prédio ser corporativamente adstrito ao sector hoteleiro, como vizinhos tinham: dois criados
de café, um tirador de cerveja e um gerente de pastelaria da Baixa. Ah, e um
informador da PIDE… Desde 1956, é por aí, na Rua Alberto Osório de Castro, que
vive Leonoreta Leitão, professora aposentada, de boina basca e estrela de cinco
pontas, a vermelho retinto. Antiga aluna do Colégio Académico e do Liceu Filipa, recorda com saudade os colegas da Faculdade de Letras, e os amigos da época: Matilde Rosa Araújo, David Mourão-Ferreira, Sebastião da Gama, Mário Pinto de Andrade. E as aulas inolvidáveis de Vitorino Nemésio. Frequenta o cinema City, sempre que o crítico
recomenda a fita. Nos intervalos, lê Maria Teresa Horta ou Pérez-Reverte – e escreve.
Estas memórias, por exemplo.
António Araújo
http://www.mediotejo.net/alcanena-leonoreta-leitao-a-professora-que-nao-tinha-medo-de-ensinar/
ResponderEliminarEntretanto Zita Seabra faz a apologia da conversão da Russia pela mensagem de fatima!!!Vai ganhar alguma coisa com esta nova conversão? Acredito que sim.Talvez o céu não possa esoerar.
ResponderEliminarEsperar claro.
ResponderEliminarQue caralho! As coisas que se passam nessa Lisboa.
ResponderEliminaresplêndido comentário...conheci (de perto)alguns personagens citados como os meus saudosos e inesquecíveis Professores Vitorino Nemésio e David Mourão-Ferreira...parabéns!
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