E
cá estamos de novo com a cansativa série «Memórias Perdidas». Desta feita, Voltar a Viver, de Edgard Santos Mattos,
editado pela Guimarães em 1976.
O
autor escreveu estas suas memórias ao perfazer 50 anos. Uma vida que, para quem
ler o livro, parece ter-se resumido – o que não é pouco – ao gozo do
cosmopolitismo, patente nas mil e uma aventuras romântico-sexuais do travesso
Edgard com mulheres das mais diversas nacionalidades. Mas também nos inúmeros
títulos estrangeiros que o dr. Santos Mattos cita, porque os leu: literatura
clássica mas também livros sobre política ou ensaios de circunstância, a
propósito dos mais variados temas. Ao terminar o livro, fica-se com a sensação
que o autor é enciclopédico nos campos feminino e literário, tendo de permeio
uma carreira burocrática de pouco realce em instituições internacionais.
Segundo parece, Marcello Caetano gostava dele, tinha apreço não pelas suas qualidades
como jurista – foi um aluno mediano – mas pelos seus dotes humanos, de orador e
palestrante em reuniões no estrangeiro.
Quanto
ao mais, o relato de infância e juventude de um menino-família, que, devido ao
divórcio dos pais, teve de mudar-se de uma moradia luxuosa para um hotel
modesto. Como é evidente, narrativas da iniciação sexual com criadas e, mais
tarde, com prostitutas. O estilo roça o brejeiro, quando não pior. Mas há uma
tremenda autenticidade neste depoimento, nomeadamente quando Edgard Mattos
refere a crueza da sentença judicial que, salomonicamente, o confiou – e à sua
irmã – à guarda dos avós paternos, com a garantia de que estes iriam internar
os netos em colégios de elite. «Éramos dali em diante órfãos de pais vivos». E
assim lá foi o pequeno Edgard para o Colégio Vasco da Gama, considerado o
melhor no seu tempo. Muitas histórias de jogos de futebol e aventuras sexuais
precoces, à noite, nas camaratas. Sevícias sobre um colega efeminado, a quem
chamavam Terezinha. Dali à boémia foi
um passo – e a virgindade perdida num prostíbulo da Rua da Atalia, ao Bairro
Alto. Depois dessa experiência, Edgard mergulhou forte e feio na vida nocturna
lisboeta, sendo frequentador assíduos dos cabarets
da capital. Por vezes, as noites corriam mal, como sucedeu com uma refrega que,
no Clube dos Makavenkos, Edgard teve com um proxeneta. Para se resguardar de
convívios interclassistas, o seu grupo decidiu criar uma tertúlia, a Academia Eufórica do Mais Um. Condição
de admissão: cada novo sócio teria de pagar um almoço a todos os confrades.
Como se vê, um clube exclusivo, mas não muito.
Particularmente
interessantes são as memórias do tempo da 2ª Guerra, falando o autor dos
«estrategas de café» que, todas as noites, debruçados sobre mapas, à frente de
uma bica ou de uma cerveja, definiam como deveria ser o avanço ou recuo das
tropas do Eixo contra os Aliados, e vice-versa, numa espécie de ameno
Sporting-Benfica em versão militarista só permitido pela neutralidade que o
país vivia. No dia da vitória, uma coluna de manifestantes desceu o Chiado, com
os «esquerdistas» (sic) a darem vivas à Rússia. No Rossio, a polícia carregou
sobre a multidão, onde se encontrava o jovem Edgard, que deu um encontrão num
empregado da Pastelaria Suíça e se
escapuliu a correr para a Praça da Figueira.
O
pós-guerra foi um tempo eufórico, segundo nos conta Edgard, que na altura
frequentava uma boîte instalada nas furnas lagostineiras da estrada do
Guincho, onde uma noite assevera ter dançado com… Agatha Christie – e quem
somos nós para duvidar de Edgard? Acrediatmos que conheceu bem Juan Carlos, nas
pândegas que teve com o jovem príncipe, na recordação das violências cometidas
por dois grupos boémios: um, o dos Mascarenhas, capitaneado pelo marquês de
Fronteira; outro, ligado à forcadagem, liderado por Salvação Barreto. Dizia-se
que quando entravam num dancing ou
numa boîte pagavam antecipadamente
uns valentes contos de réis, pois sabiam que a mobília e os adereços iriam
acabar desfeitos em pedaços.
O
livro tem este registo algo previsível, com o autor a confessar, comovido, o
orgulho que tinha nos seus quatro filhos. «O meu casamento (…) foi um êxito
quanto ao objectivo principal do matrimónio: o da procriação». Pelo meio, mais
histórias de pancadrias com chulos (no Café Luso, por exemplo), que terminavam
com Edgard sendo levado em braços rumo à sua casa de quinze divisões na Avenida
da Liberdade (rectius, a casa era da
sua avó). Mais tarde, casou – mas não assentou. Acabaria por separar-se da mãe
dos seus quatro filhos, já que à época, por força da Concordata de 1940, o
divórcio era proscrito. Um pormenor curiosíssimo, contado a destempo: Edgard
foi colega, na Faculdade de Direito, do filho de Dino Grandi, um dos próceres
do fascismo italiano que tivera a ousadia de erguer a voz contra Mussolini e,
por isso, acabara exilado numa casa em Alfama. Todavia, e ao contrário do que
propalavam as más-línguas, Grandi não vivia na miséria; pelo contrário, o filho
fazia-se deslocar num esbelto carro de sport
até à Faculdade de Direito. Além de refugiados de renome, uma arquitecta
neozelandesa que teimava em usar bikini
nas ocidentais praias lusitanas. Acabou por vencer a querela com variados
cabos-de-mar, secundada pelo grupo banhista de Edgard, que na Praia Grande
utilizava sempre e apenas, para ir ao mar, o que o autor designa por «uma trousse em vez de calção de comprimento
de perna regulamentado».
Madrid,
o destino seguinte. E, naturalmente, o mítico cabaré Pasapoga. «Dividindo o tempo entre burguesas e meretrizes éramos
uns animais desavergonhados!». Pois eram. Depois disso, o mundo, em missões
diplomáticas na Suíça e noutros lugares. O autor desfia os nomes dos seus empregados de mesa favoritos: o Hugo, do Hotel Polana, em Lourenço Marques; o Rodrigues, do Hotel Mundial, antigo serviçal de Gulbenkian; o inesquecível Baptista, do restaurante La Perle du Lac, em Genebra. A Suíça será o seu destino de eleição, pelas mais variadas razões. «Eu julgava que o meu interesse pelo strip-tease tinha desaparecido com as
minhas viagens de jovem a Paris mas em Genebra, no Bataclan e por causa de uma eurasiana, tornei-me novamente
interessado no espectáculo da nudez». Envolvendo-se com uma rapariga em terras
helvéticas, Edgard Santos Mattos deixa cair o véu, desnudando a sua
personalidade. A páginas tantas, fala do «atractivo sexual que o homem de
sociedade ou o intelectual sente irresistivelmente por uma mulher de inferior
condição social». Como se não bastasse, acrescenta: «todos nós conhecemos casos
em que a atracção entre um homem e uma mulher se manifesta de níveis sociais
diferentes se manifesta, de forma intensa, por vezes, incontrolável».
Voltar a Viver,
memórias de um homem incontrolável. Publicadas em 1976, a visão do mundo de um
«homem de sociedade», com pretensões intelectuais mas que não perdia o sentido
das distâncias de classe, ou falta dela.
António
Araújo
Antigamente é que era bom. Para os anencéfalos.
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