quinta-feira, 16 de março de 2017

Memórias Perdidas - 13

 
 
 

 
E cá estamos de novo com a cansativa série «Memórias Perdidas». Desta feita, Voltar a Viver, de Edgard Santos Mattos, editado pela Guimarães em 1976.
O autor escreveu estas suas memórias ao perfazer 50 anos. Uma vida que, para quem ler o livro, parece ter-se resumido – o que não é pouco – ao gozo do cosmopolitismo, patente nas mil e uma aventuras romântico-sexuais do travesso Edgard com mulheres das mais diversas nacionalidades. Mas também nos inúmeros títulos estrangeiros que o dr. Santos Mattos cita, porque os leu: literatura clássica mas também livros sobre política ou ensaios de circunstância, a propósito dos mais variados temas. Ao terminar o livro, fica-se com a sensação que o autor é enciclopédico nos campos feminino e literário, tendo de permeio uma carreira burocrática de pouco realce em instituições internacionais. Segundo parece, Marcello Caetano gostava dele, tinha apreço não pelas suas qualidades como jurista – foi um aluno mediano – mas pelos seus dotes humanos, de orador e palestrante em reuniões no estrangeiro.
Quanto ao mais, o relato de infância e juventude de um menino-família, que, devido ao divórcio dos pais, teve de mudar-se de uma moradia luxuosa para um hotel modesto. Como é evidente, narrativas da iniciação sexual com criadas e, mais tarde, com prostitutas. O estilo roça o brejeiro, quando não pior. Mas há uma tremenda autenticidade neste depoimento, nomeadamente quando Edgard Mattos refere a crueza da sentença judicial que, salomonicamente, o confiou – e à sua irmã – à guarda dos avós paternos, com a garantia de que estes iriam internar os netos em colégios de elite. «Éramos dali em diante órfãos de pais vivos». E assim lá foi o pequeno Edgard para o Colégio Vasco da Gama, considerado o melhor no seu tempo. Muitas histórias de jogos de futebol e aventuras sexuais precoces, à noite, nas camaratas. Sevícias sobre um colega efeminado, a quem chamavam Terezinha. Dali à boémia foi um passo – e a virgindade perdida num prostíbulo da Rua da Atalia, ao Bairro Alto. Depois dessa experiência, Edgard mergulhou forte e feio na vida nocturna lisboeta, sendo frequentador assíduos dos cabarets da capital. Por vezes, as noites corriam mal, como sucedeu com uma refrega que, no Clube dos Makavenkos, Edgard teve com um proxeneta. Para se resguardar de convívios interclassistas, o seu grupo decidiu criar uma tertúlia, a Academia Eufórica do Mais Um. Condição de admissão: cada novo sócio teria de pagar um almoço a todos os confrades. Como se vê, um clube exclusivo, mas não muito.     
Particularmente interessantes são as memórias do tempo da 2ª Guerra, falando o autor dos «estrategas de café» que, todas as noites, debruçados sobre mapas, à frente de uma bica ou de uma cerveja, definiam como deveria ser o avanço ou recuo das tropas do Eixo contra os Aliados, e vice-versa, numa espécie de ameno Sporting-Benfica em versão militarista só permitido pela neutralidade que o país vivia. No dia da vitória, uma coluna de manifestantes desceu o Chiado, com os «esquerdistas» (sic) a darem vivas à Rússia. No Rossio, a polícia carregou sobre a multidão, onde se encontrava o jovem Edgard, que deu um encontrão num empregado da Pastelaria Suíça e se  escapuliu a correr para a Praça da Figueira.
O pós-guerra foi um tempo eufórico, segundo nos conta Edgard, que na altura frequentava uma boîte instalada nas furnas lagostineiras da estrada do Guincho, onde uma noite assevera ter dançado com… Agatha Christie – e quem somos nós para duvidar de Edgard? Acrediatmos que conheceu bem Juan Carlos, nas pândegas que teve com o jovem príncipe, na recordação das violências cometidas por dois grupos boémios: um, o dos Mascarenhas, capitaneado pelo marquês de Fronteira; outro, ligado à forcadagem, liderado por Salvação Barreto. Dizia-se que quando entravam num dancing ou numa boîte pagavam antecipadamente uns valentes contos de réis, pois sabiam que a mobília e os adereços iriam acabar desfeitos em pedaços.
O livro tem este registo algo previsível, com o autor a confessar, comovido, o orgulho que tinha nos seus quatro filhos. «O meu casamento (…) foi um êxito quanto ao objectivo principal do matrimónio: o da procriação». Pelo meio, mais histórias de pancadrias com chulos (no Café Luso, por exemplo), que terminavam com Edgard sendo levado em braços rumo à sua casa de quinze divisões na Avenida da Liberdade (rectius, a casa era da sua avó). Mais tarde, casou – mas não assentou. Acabaria por separar-se da mãe dos seus quatro filhos, já que à época, por força da Concordata de 1940, o divórcio era proscrito. Um pormenor curiosíssimo, contado a destempo: Edgard foi colega, na Faculdade de Direito, do filho de Dino Grandi, um dos próceres do fascismo italiano que tivera a ousadia de erguer a voz contra Mussolini e, por isso, acabara exilado numa casa em Alfama. Todavia, e ao contrário do que propalavam as más-línguas, Grandi não vivia na miséria; pelo contrário, o filho fazia-se deslocar num esbelto carro de sport até à Faculdade de Direito. Além de refugiados de renome, uma arquitecta neozelandesa que teimava em usar bikini nas ocidentais praias lusitanas. Acabou por vencer a querela com variados cabos-de-mar, secundada pelo grupo banhista de Edgard, que na Praia Grande utilizava sempre e apenas, para ir ao mar, o que o autor designa por «uma trousse em vez de calção de comprimento de perna regulamentado».
Madrid, o destino seguinte. E, naturalmente, o mítico cabaré Pasapoga. «Dividindo o tempo entre burguesas e meretrizes éramos uns animais desavergonhados!». Pois eram. Depois disso, o mundo, em missões diplomáticas na Suíça e noutros lugares. O autor desfia os nomes dos seus empregados de mesa favoritos: o Hugo, do Hotel Polana, em Lourenço Marques; o Rodrigues, do Hotel Mundial, antigo serviçal de Gulbenkian; o inesquecível Baptista, do restaurante La Perle du Lac, em Genebra. A Suíça será o seu destino de eleição, pelas mais variadas razões. «Eu julgava que o meu interesse pelo strip-tease tinha desaparecido com as minhas viagens de jovem a Paris mas em Genebra, no Bataclan e por causa de uma eurasiana, tornei-me novamente interessado no espectáculo da nudez». Envolvendo-se com uma rapariga em terras helvéticas, Edgard Santos Mattos deixa cair o véu, desnudando a sua personalidade. A páginas tantas, fala do «atractivo sexual que o homem de sociedade ou o intelectual sente irresistivelmente por uma mulher de inferior condição social». Como se não bastasse, acrescenta: «todos nós conhecemos casos em que a atracção entre um homem e uma mulher se manifesta de níveis sociais diferentes se manifesta, de forma intensa, por vezes, incontrolável».
Voltar a Viver, memórias de um homem incontrolável. Publicadas em 1976, a visão do mundo de um «homem de sociedade», com pretensões intelectuais mas que não perdia o sentido das distâncias de classe, ou falta dela.
 
António Araújo
 
 
 
 

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