No
tempo dos ainda mais velhos
Entrei para a Polícia Judiciária em 15 de Janeiro de 1975 e fui colocado
na sala 1-18, 3ª brigada da 2ª secção (homicídios), onde me mantive até à
aposentação em 30 de Setembro de 2005.
Como os hábitos e as mentalidades não se alteram de um momento para o
outro, ainda senti durante alguns anos a influência do ambiente anterior ao 25
de Abril. A convivência e a amizade que criei com colegas desse tempo (alguns
ainda pertenceram aos quadros da PIC[1]),
principalmente com o Lobão, Duarte Silva e Dr. Santos Carvalho, mas também com
o Estorninho, Manuel de Sousa, Adérito, Batista Correia, Lizardo, Seiça, Pinto
do Rego, Paulino, Dias Brito (mais tarde), Mário Bordaleiro e outros, fez com
que ficasse com uma noção muito aproximada da realidade do que tinha sido a PJ
no anterior regime político.
O Lobão chegou-me a confidenciar que os ordenados na PJ desse tempo eram
tão baixos (tal como os da generalidade da função pública), que ir comer um
frango ao restaurante Bonjardim era uma festa. A partir de finais dos anos
sessenta, altura em que o regime já estava na sua curva descendente, a direção
da PJ começou a “fechar os olhos" às situações de funcionários que tinham
uma segunda atividade remunerada.
Manteve-se durante alguns anos na minha brigada um fogão elétrico com
duas placas que, segundo o Lobão, servia para ele e outros aquecerem as
marmitas com as refeições que traziam de casa[2].
O Lobão também se referia por vezes à falta de abertura de quadros que
permitissem a progressão normal das carreiras. Houve agentes de 2ª classe que
chegaram a esperar 12 anos para serem promovidos a 1ª classe.
Outro sinal do tempo tinha a ver com os agentes chegarem a esperar horas
para despacho, muitas vezes com presos para apresentar, enquanto os inspetores
conversavam com colegas e amigos na pastelaria Açoreana, defronte do edifício
sede. Esta era uma das situações que mais indignava os antigos agentes com quem
trabalhei e convivi, porque demonstrava o desprezo que aqueles senhores tinham
por eles. Claro que, como em tudo na vida, não há regra sem exceção.
Havia um enorme fosso entre inspetores e agentes que foi eliminado com o
25 de Abril. A convivência com os agentes, antes impensável, passou a ser
normal.
Os inspetores, atuais coordenadores, eram delegados do Ministério
Público em comissão de serviço. Para além de outras atribuições: emitiam
mandados de captura e ou validavam as detenções, propondo ao subdiretor, juiz
em comissão de serviço (tal como o diretor), a manutenção da prisão preventiva
ou a aplicação de medidas de segurança. Também eram os inspetores que deduziam
a acusação nas comarcas onde havia PJ (Lisboa, Porto e Coimbra) e propunham ao
subdiretor: remeter os autos para tribunal, mandá-los arquivar ou aguardar a
produção de melhor prova.
O governo de Marcelo Caetano criou com o DL 2/72 de 10 de Maio os Juízos
de Instrução Criminal, que retiraram competências ao diretor e subdiretores da
PJ.
O DL 82/72 de 11 de Março alterou a designação de chefes-de-brigada para
subinspetores e as habilitações mínimas para concorrer à PJ passaram a ser o
curso geral dos liceus ou habilitação comparada.
*
O coordenador Duarte Silva, há muitos anos aposentado, contou-me que
concorreu à PJ em 1958 (ano em que foi inaugurada a sede na Rua Gomes Freire).
Para as candidaturas serem aceites os candidatos tinham de ter o “nada a opor”
da PIDE.
Foi chamado para uma entrevista individual que consistia numa espécie de
teste psicotécnico. A entrevista foi conduzida pelo chefe de brigada Hernâni
Roque de Almeida, introdutor destes métodos de
avaliação e um dos quadros mais brilhantes de sempre da PJ. Quando se sentou
defronte da sua secretária, o chefe Roque pediu-lhe para descrever em pormenor
a envolvente do espaço que tinha percorrido desde a entrada do edifício até
chegar ao seu gabinete (note-se que o candidato nunca tinha entrado na sede da
PJ).
A seguir perguntou-lhe:
- Passou por algum indivíduo que estava de
pé junto da porta de acesso ao átrio?
- Pareceu-me ser o porteiro - respondeu o
candidato.
Depois de pedir para o descrever, perguntou-lhe:
- Notou-lhe alguma anomalia?
- Tinha um sinal na cara[3].
A seguir realizou-se uma prova escrita na Faculdade de Medicina de
Lisboa, situada no Campo dos Mártires da Pátria, que deu origem à exclusão de
uma parte significativa dos candidatos.
Os sobreviventes foram então fazer a prova oral, que era normalmente
realizada pelo diretor, na altura o Dr. Lopes Moreira, mas como este se
encontrava fora do país em serviço, a tarefa coube a um diretor-adjunto do
Porto.
Quando o diretor regressou decidiu entrevistar individualmente os
candidatos aprovados.
Logo no início da entrevista, ao verificar o dossier do Duarte Silva, disse:
- Então você é de Lisboa?
- Sou sim, senhor diretor.
- Mau mau, mau mau, mau mau…
- Então…
- Eu nunca conheci ninguém de Lisboa que
prestasse. A sua sorte foi ter tido uma boa prestação nas provas que realizou.
Você sabe que durante um ano está provisório. À mais
pequena coisa – apontou para a porta – rua!
Apesar do seu esforço, o chefe Roque não conseguiu evitar as “cunhas”,
que eram e continuaram a ser uma instituição nacional. Era certo e sabido que
os novos diretores traziam consigo pessoas da sua zona de influência
“emocional”. Se fossem transmontanos, como era o caso do Dr. Lopes Moreira, era
notória a entrada anormal de funcionários daquela região. Se fosse beirão, a
mesma coisa. E por aí fora …
O Duarte Silva iniciou a sua carreira no Torel, como agente estagiário
(na altura designava-se “agente auxiliar”), onde se manteve por pouco tempo,
porque já estava em curso a transferência para a nova sede.
Nessa altura, para concorrer à PJ eram necessárias como habilitações
mínimas o 1º ciclo liceal, ou equiparado.
*
Uma das situações que mais marcava o ambiente interno na PJ tinha a ver
com o facto de uma percentagem significativa dos agentes pertencerem à Legião
Portuguesa (LP).
Na sequência do 25 de Abril os que detinham cargos na LP chegaram a ser
presos durante vários meses, enquanto outros foram suspensos. Mas regressaram à
PJ depois do 25 de Novembro de 1975. A maioria dos agentes/legionários há muito
que estavam desligados daquela milícia do Estado, se é que alguma vez a ela
estiveram verdadeiramente ligados. O único contacto que alguns deles tinham com
a LP era o de irem abastecer as suas viaturas à sede, situada na Penha de
França, porque a gasolina era mais barata.
Havia quem se inscrevesse na LP só para conseguir um emprego no Estado.
Não era obrigatório, mas em alguns casos ajudava. Fui amigo de agentes antigos
que só vários anos depois é que soube que tinham sido legionários. Ainda trabalhei
com alguns, como foi o caso do Luís Felipe Siva
Martinez, que se manteve na LP até ao 25 Abril. Era comandante de lança e
manteve-se fiel à sua ideologia até morrer. Chegou a andar fardado no
interior das instalações da PJ, o que não era do agrado de ninguém, nem mesmo
da maioria dos seus próprios correligionários.
O assalto, durante a noite, à Sociedade Portuguesa de Escritores, na Rua
da Escola Politécnica, em 21 de Maio de 1965, terá sido executado por
agentes/legionários da PJ que destruíram todo o mobiliário. Tratou-se duma
retaliação à atribuição do Grande-Prémio de Novela Camilo Castelo Branco ao
escritor Luandino Vieira pela sua obra "Luuanda". Luandino era membro
do MPLA e estava detido no Tarrafal por atividades subversivas. A SPE foi extinta
nesse dia.
Também terão sido agentes/legionários da PJ que assaltaram em 1969 a
sede da CDE (Comissão Democrática Eleitoral) no Campo Pequeno. Durante a noite
arrombaram a porta de entrada, vencendo a resistência exercida a partir do
interior, e agrediram os militantes que lá se encontravam, entre eles os
professores Lindley Cintra e Pereira de Moura, que ficou muito mal tratado.
Além disso, arrancaram cartazes das paredes, destruíram tudo aquilo a que
puderam deitar mão e embeberam em cola uma brocha de colar cartazes, besuntando
com ela os rostos e vestuário das vítimas.
Só depois do 25 de Abril se soube que estes assaltos foram perpetrados
por legionários. Todavia, os agentes mais antigos da PJ sabiam que alguns dos
executores tinham sido agentes/legionários, até porque houve quem se gabasse do
feito.
O Castanheira, que quando bebia um copito a mais gritava a plenos
pulmões “viva a República”, costumava escarnecer de um agente/legionário
chamando-lhe “Tavares da sovela”, por constar que se dedicava a furar os pneus
dos carros de opositores ao regime (não era caso único, longe disso…) quando
estes participavam em eventos no âmbito das campanhas eleitorais (a oposição
era “tolerada” durante o mês que antecedia o ato eleitoral). O “Tavares da
sovela” ficou famoso por, segundo se dizia, ter feito uma verdadeira razia nos
carros dos participantes num comício da CDE, que teve lugar no Teatro Estúdio
de Lisboa, situado na Feira Popular, aquando da campanha eleitoral para as
eleições legislativas de 1969 e em dois comícios do Movimento de Unidade Democrática
realizados na “Voz do Operário”.
*
O Dr. Orlando Gomes da Costa, diretor da PJ de 1959 a 1968, criou a
autodenominada “Brigada Especial”, composta por agentes/legionários, que era
chefiada por um então agente de 2ª classe (despachava diretamente com o
diretor) e mais quatro agentes. Esta brigada fazia parte da Secção Central mas
tinha um gabinete próprio, com chave própria, onde ninguém podia entrar. Os
agentes que a compunham eram temidos por vigiarem secretamente os funcionários
da PJ. A sua atividade não tinha nada a ver com os denominados “assuntos
internos”, que eram da responsabilidade dos inspetores. A "Brigada
Especial" era, de certo modo, a polícia secreta do diretor.
Quando entrei para a PJ havia um ficheiro, reservado, de homossexuais
que era utilizado quando ocorriam crimes que os envolvessem. Este ficheiro
resultou da aplicação do art.º 71 do C.P. então em vigôr (medidas de
segurança).
«A PJ e a PIDE/DGS podiam
determinar e manter a prisão preventiva pelo período máximo de seis meses,
apenas sob controlo ministerial a partir dos três meses, podendo aquele prazo
ser alongado, como o foi algumas vezes, até aos oito meses através da aplicação
no final do período dos seis meses de uma sanção disciplinar de prisão até dois
meses e podendo até repetir-se a detenção pelo período máximo de seis/oito
meses por uma e mais vezes em relação ao mesmo suspeito, interrompidas pela
soltura do suspeito quando se aproximava a data limite daquele período, tudo
sem que a detenção e a soltura fossem sequer comunicadas ao tribunal ou dessem
lugar a abertura de processo judicial.
Enquanto na PJ só o diretor e os subdiretores
exerciam, em regra, as competências do juiz durante a instrução preparatória
relativas à liberdade ou manutenção da prisão preventiva e à aplicação
provisória das medidas de segurança, na PIDE/DGS essas competências eram
exercidas pelo diretor, pelo subdiretor e pelo inspetor superior, bem como pelo
inspetor adjunto, pelo inspetor, pelo subinspetor e mesmo pelo chefe de
brigada, quando estes ocupassem cargos de chefia ou se encontrassem fora da
sede…[4]
Tratando-se de uma lei geral, toda a polícia tinha o direito e o dever
de a aplicar, mas na PJ só a Secção Central, e em particular a “Brigada
Especial”, é que normalmente trabalhavam nas áreas consagradas à vadiagem,
prostituição e homossexualidade.
Este art.º 71 do C.P. permitia abusos de vária ordem que se foram
praticando ao longo dos anos como, por exemplo, terem sido detidos indivíduos
por vadiagem com o objetivo de os pressionar a serem informadores da polícia.
Para alguém ser preso por vadiagem bastava não justificar a proveniência dos
seus rendimentos.
Uma das práticas da “Brigada Especial” que mais indignava os antigos
agentes com quem contatei, tinha a ver com a deteção (principalmente através de
escutas telefónicas ilegais) de pederastas e esposas infiéis de nível social elevado
(político, económico ou nobilitário) que os elementos da brigada traziam depois
à sede da PJ para interrogatórios vexantes. As figuras públicas, principalmente
da área do governo ou de estatuto social elevado, eram ouvidas no gabinete do
diretor pelo chefe da brigada e, em alguns casos, pelo próprio diretor. Os autos, depois de assinados,
eram colocados numa gaveta não dando origem a qualquer processo judicial.
Esta brigada foi extinta com o 25 de Abril.
*
Tal como a PJ, a PIDE foi criada em 1945 no âmbito da restruturação das
polícias. A PJ substituiu a PIC e a PIDE a PVDE. A PIDE tinha a seu cargo os
crimes relacionados com a defesa do Estado (crimes políticos) e os restantes
eram da responsabilidade da PJ.
Perguntei a alguns agentes antigos se a PIDE intervinha diretamente na
investigação criminal da PJ e todos me disseram que não, com uma exceção: nos
casos em que no decorrer das investigações se viesse a apurar que havia
envolvência política. Era a PIDE quem os resolvia, mas os inquéritos não saíam
da PJ e era esta polícia que apresentava os detidos em tribunal. Salazar
preocupava-se em passar para o exterior uma imagem de rigor jurídico. Foi o que
se passou com o caso do capitão Almeida Santos, cujo corpo, enterrado na areia,
foi encontrado por um cão numa praia do Guincho. José Cardoso Pires baseou-se
neste caso para escrever o romance A
Balada da Praia dos Cães.
No entanto, não deixa de ser curioso o facto que me foi relatado pelo
subinspetor Mário Bordaleiro, já aposentado, de, no verão de 1973, por ordem do
Inspetor Superior, Dr. Bento Garcia Domingues, então responsável pela Secção
Central, ter ido com o agente Calejo Machado (já falecido) à sede da PIDE para
entregar uma “molhada” de crachás da Polícia Judiciária.
Segundo o subinspetor Dias Brito (que
chegou a pertencer aos quadros da PIC): «Os agentes da Pide tinham por hábito
mostrar os seus cardões de modo fugidio ao mesmo tempo que diziam: Judiciária,
sabendo que assim a pessoas colaboravam, de tal modo que os agentes da PJ
passaram a ter dificuldades para convencerem as pessoas da sua verdadeira
qualidade».
*
Nos anais da PJ, para se encontrar o mais relevante “assassino em série”
é necessário recuar a 1970.
No dia 16 de Novembro desse ano uma rapariga encontrou casualmente num
lamaçal da margem direita do Rio Tejo, na zona da Matinha, os membros e a
cabeça de um homem, embrulhados num saco de plástico.
Veio-se a apurar através das impressões digitais que se tratava de um
indivíduo com passado criminal - José Pedro dos Reis, com a alcunha de o
"Sanduga". A irmã da vítima disse que o seu irmão vivia desde há
cerca de um mês na companhia dum vendedor ambulante na sua barraca, situada em
Paço de Arcos.
O chefe Estorninho e o então agente Manuel de Sousa (duas das maiores
referências da PJ) esperaram várias horas junto desta barraca pelo regresso do
Borrego e, quando tal aconteceu, prenderam-no, sem que ele tivesse oferecido
qualquer resistência.
O Zé Borrego negou a princípio a autoria do crime, mas num almoço com os
agentes acabou por confessar.
Sobre este almoço escreveu ao diretor da PJ um bilhete em que dizia:
«Sr. Diretor. Serviram-me hoje uma refeição (bacalhau com batatas) tão bem
aviada que a não terminei. O azeite no entanto era pouco. Longe de mim pensar
que ele vai para casa de V. Ex.ª.»
O José Domingues Borrego, solteiro, nascido a 13 de Abril de 1927 na
aldeia (atual freguesia) de Aranhas, Penamacor, começou por confessar o seu
crime mais recente, relacionado com o aparecimento macabro de partes de um
homem na zona da Matinha. Cerca de um mês e meio antes de o matar, a vítima
confessou-lhe que pensava emigrar para França e pediu-lhe cinco contos
emprestados. Alegou que era para aguentar os primeiros tempos naquele país e
comprometeu-se a arranjar-lhe colocação de modo a também ele poder emigrar. Era
esse o desejo do Borrego. Passaram então a viver na mesma barraca, em
compartimentos separados. Só que o "Sanduga" desistiu de ir para
França, mas não devolveu o dinheiro ao Borrego, o que deu origem a uma
discussão acalorada entre eles. A certa altura o "Sanduga" atirou-lhe
com o dinheiro dizendo: «Meta o dinheiro no cú». Foi então que o Borrego lhe
deitou as mãos ao pescoço até ele perder as forças. Quando a vítima já não era
capaz de reagir, manteve uma mão a apertar-lhe os “garganetos” e com a outra
agarrou numa pedra, que utilizava para pregar pregos, e bateu com ela por
diversas vezes na cabeça e no rosto do "Sanduga", atingindo-lhe o
nariz, os olhos - onde calhava - até o tornar irreconhecível. Foi com receio
“do retrato dos jornais” e de poder vir a ser descoberto que lhe desfigurou a
cara, cortou-lhe as orelhas e furou-lhe os olhos. Depois de constatar que o
"Sanduga" estava morto, deitou-se na cama ao seu lado porque estava
muito cansado devido a ter-lhe dado com a pedra furiosamente. Para se livrar do
corpo utilizou um serrote e uma faca. Começou por lhe serrar o pescoço, mas
para separar a cabeça do tronco teve de utilizar a faca. A seguir serrou-lhe os
braços e as pernas. Meteu a cabeça e os membros num saco de plástico e meteu o
tronco noutro. Colocou o saco com a cabeça e os membros do
“"Sanduga"” numa mala de madeira e levou-a às costas até à estação de
comboios de Paço de Arcos. Seguiu de comboio até Alcântara onde apanhou um táxi
para Campolide e aí outro comboio até ao apeadeiro de Moscavide onde chegou
cerca das dez da manhã (matou o “"Sanduga"” às 5h30 da madrugada do
dia 16/11/1970). Seguiu com a mala às costas em direção ao rio Tejo, mas como
estava cheio de sede entrou numa taberna, poisou a mala junto de si e bebeu uma
laranjada ao balcão. Enquanto o fazia, uma freguesa chamou a atenção do
taberneiro para o facto de estar a pingar sangue da mala. O taberneiro deitou
serradura por cima dos pingos e perguntou-lhe o que fazia. Apressou-se a pôr a
mala às costas e disse-lhe que se dedicava ao negócio. Depois de algumas
hesitações retirou o saco da mala e colocou-o numa lixeira junto ao rio. Limpou
o sangue que escorria da mala com papéis que atirou à água. Dirigiu-se então
para Sacavém com a mala na mão, por estar vazia, e apanhou um autocarro até à
Rotunda da Encarnação, onde tomou outro autocarro para o Cais do Sodré,
seguindo de comboio de regresso a Paço de Arcos. No dia seguinte lembrou-se de
um poço que conhecia em Setúbal, na Quinta de S. João, que era pouco fundo e
não tinha água, situado próximo da esquadra da PSP onde já tinha passado
algumas noites. Para evitar que o sangue da vítima pingasse reforçou o saco de
plástico que continha o tronco com dois sacos de cimento. Meteu tudo na mala de
madeira e partiu para Setúbal. Desta vez saiu na Estação do Cais de Sodré, foi
de barco para Cacilhas e apanhou uma camioneta para Setúbal. Do terminal de
camionagem em Setúbal seguiu para o poço com a mala às costas, largando aí o
saco com o tronco do cadáver. Voltou com a mala para Lisboa e deixou-a
depositada na Estação do Cais do Sodré. Regressou a casa cerca das 2h00 horas
da madrugada onde era aguardado pelo chefe Estorninho e o agente Manuel de
Sousa, que o detiveram.
Para demonstrar a sua sinceridade decidiu contar todo o mal que tinha
feito até então.
Assim, declarou que em finais de Setembro encontrou-se em Portalegre com
o Leonel, um indivíduo que conhecera em Manteigas uns anos antes. Depois de
andarem juntos naquela zona durante uns dias foram para Setúbal onde o Leonel
dizia conhecer um militar que lhes daria guarida. Andaram alguns quilómetros
fora da cidade sem que o Leonel encontrasse a casa do amigo, pelo que decidiram
dormir debaixo de uma árvore, próximo do poço onde no mês seguinte colocaria o
tronco do "Sanduga". Entretanto discutiram por causa da dormida
prometida pelo Leonel e envolveram-se à pancada. O Borrego dominou o outro e,
empunhando uma pedra, bateu-lhe várias vezes na cabeça e na cara. O Leonel
estrebuchava e nunca mais morria, pelo que agarrou na navalha da própria vítima
e cortou-lhe o pescoço. Dormiu o resto da noite debaixo de uma árvore, junto ao
corpo do Leonel, e quando acordou de manhã tirou-lhe a roupa e os sapatos,
deixando ficar a roupa interior, que lançou no primeiro caixote do lixo que
encontrou.
O corpo do Leonel foi encontrado casualmente no dia 15 de Outubro. Após
a confissão do Borrego foram feitas diligências em Portalegre que confirmaram a
veracidade do que afirmara.
O Borrego confessou que já tinha matado mais de dez homens, mas só foi
possível confirmar cinco. Algumas das suas vítimas eram seus concorrentes no
negócio da passagem de moeda falsa que se seguiu à Segunda Guerra Mundial.
No mesmo dia da confissão - 18/11/1970 – teve lugar uma diligência
externa com participantes de luxo: o diretor da PJ, Robalo Cordeiro; o diretor
do LPC, Correia Ralha; o inspetor da 3ª secção, Ribeiro Coelho; o inspetor da
2ª secção, Francisco Santos Carvalho; o chefe de brigada Estorninho; o chefe de
brigada José del Rio Nazareth; o agente Martins Vaz; o fotógrafo-mensurador do
LPC, Manuel de Matos; o agente Manuel de Sousa e o detido Zé Borrego.
Detetou-se que no soalho de tábuas da barraca onde residiam o arguido e
a vítima existiam ainda vestígios de sangue, que foi recolhido em embalagens
próprias pelo diretor do LPC após ter raspado as tábuas com uma espátula
apropriada. Ordenou de seguida ao fotógrafo-mensurador que obtivesse fotografias
das manchas existentes bem como de todo o compartimento. Apreendeu-se o serrote
e o cutelo que foram utilizados para degolar e cortar os membros superiores e
inferiores da vítima, assim como nove facas inox de serrilha, dado o arguido
confessar que utilizou uma faca para vazar os olhos e desfigurar o rosto do
cadáver.
Seguidamente, toda a comitiva se dirigiu a Setúbal, ao poço onde o
arguido largou o tronco do "Sanduga", poço este que se apresentava
entulhado com pedras até cerca de dois metros da superfície. O saco de cimento
que continha o tronco da vítima encontrava-se intacto em cima das pedras e foi
dali retirado pelos bombeiros.
Foram depois, seguindo indicações do arguido, para um local na Estrada
dos Ciprestes junto à Quinta da Varzinha onde, na presença de todos e ainda de
vários jornalistas, o arguido Borrego explicou com grande riqueza de pormenores
como matou o Leonel.
O Zé Borrego é brilhantemente descrito pelo Advogado Castanheira Neves,
que o foi visitar à Penitenciária de Lisboa, nestes termos[5]:
«O Borrego era feirante. O ramo de negócio
era variado. Roupas interiores de homem e senhora, aparelhos de rádio
portáteis, utensílios de cozinha, cortes de fato, máquinas fotográficas,
relógios e calçado.
Vivia em apreciável desafogo económico,
mas nunca deixou de ser um homem simples. Nunca fora ao cinema e muito menos ao
teatro. Não fumava e só bebia às refeições. Habitava normalmente em tendas de
feira. Hoje nesta cidade, amanhã noutra. Por vezes assentava arraiais ali para
os lados de Oeiras, onde tinha uma barraca de madeira.
A comida era o seu grande prazer
predileto. Os pratos apetitosos e suculentos faziam a sua tentação. Ficava
louco, de cabeça perdida, quando lhe punham à frente uma travessa de “bacalhau
com todos”.
No dia em que na Polícia Judiciária
descobriram esta sua fraqueza, desvendou-se também os mistérios dos cadáveres
esquartejados.
A bacalhoeira e o meio litro de carrascão
que lhe deram nesse dia ao almoço tornaram-no loquaz e confidente. Desbobinou
os seus crimes em todos os pormenores, com o ar natural de quem está a contar
os atos mais puros da vida.
Esta fraqueza ele próprio a denuncia. Os
prazeres da mesa fizeram dele um homem de 90 quilos metido em um metro e
oitenta e cinco centímetros de altura. Sem banhas. A musculatura parecia ter-se
concentrado nos ombros, nos braços e, sobretudo nas mãos. Os dedos eram
compridos e grossos. O pescoço impressionava. Grosso como o tronco de uma
árvore. Cordoveias salientes e latejantes. Um pescoço taurino que suportava uma
cabeça redonda, bem implantada. A sua cara não inspirava repulsão. Não era uma
cara antipática. Antes pelo contrário. Tinha a chamada cara de bolacha. Cabelo
grisalho cortado à inglesa, com franjinha. Barba cerrada já com muitos pelos
brancos. Sobrancelhas carregadas numa testa baixa. Orelhas coladas de lóbulos
carnudos. Nariz grosso de palhaço pobre. Olhos pequenos para tanta cara,
azulados piscos e brilhantes. Boca grande desenhada por beiços entumecidos e
vibráteis. Uma robustez a transpirar 46 anos de saúde física.
Este homem, nascido em Aranhas, Penamacor,
negava as leis naturais da vida. Como era possível que a criança que passara
terríveis privações se transformasse num homem com tanta corpulência e saúde?
Os pais, pobres, talvez miseráveis, cedo se desfizeram dele, pondo-o a servir
numa aldeia bem longe da sua num pequeno rendeiro.»
Castanheira Neves podia ter acrescentado um pormenor curioso: O Borrego,
apesar do seu corpanzil, tinha voz de criança, o que fazia arrepiar quem o
ouvia falar pela primeira vez, principalmente quando sabia de quem se tratava.
Era generalizada a opinião de que entre o Borrego e as suas vítimas
havia uma relação de homossexualidade mas tal nunca foi provado.
Foi condenado a trinta anos de prisão, mas não chegou a cumprir um
porque se enforcou na sua cela da Penitenciária de Lisboa.
Os pais do Borrego eram pedintes e ele chegou a confessar que os odiava.
Não tanto por o terem abandonado em criança, mas porque devido à sua extrema
pobreza não tinham o direito de ter filhos.
Os
anos de brasa
Logo no dia 3 de Maio de 1974 teve lugar na sede uma reunião aberta a
todos os funcionários da PJ, que deliberou o seguinte:
Durante os primeiros tempos a autoridade máxima da PJ foi um comandante
de marinha, até que os funcionários elegerem para diretor o Dr. Alfredo Barreto
Allen Gomes. Foi o único diretor da PJ eleito pelos funcionários. Acabou por
ser substituído, a seu pedido, em Dezembro desse mesmo ano pelo Dr. José Manuel
Matos Fernandes, que exerceu as suas funções até 1976.
(Continua)
Samuel Antunes Teixeira
(originalmente publicado na revista Investigação Criminal, nº 10, Maio de
2016; republicado no Malomil com permissão do autor)
[1]Polícia de
Investigação Criminal, antecessora da PJ, sedeada em Lisboa num palacete, ainda
existente, contíguo ao Jardim do Torel.
[2] Esta
situação dos vencimentos vergonhosamente baixos só foi alterada - e de que
maneira!- quando o Dr. Menéres Pimentel foi Ministro da Justiça e da Reforma
Administrativa entre 1981 e 1983. Em 1982 a nossa tabela de vencimentos foi
indexada à do Ministério Público, o que fez o nosso ordenado dar um salto
significativo. Os protestos destes Magistrados não se fizeram esperar. Alegavam
que esta indexação era um travão às suas próprias pretensões. Quando em 1986
foi aprovada a nova tabela de vencimentos do MP (um aumento exponencial), o
governo de então, alegando a impossibilidade de serem extensíveis à PJ,
procedeu à desindexação. Também se deve ao Dr. Menéres Pimentel, como ministro
da tutela, a não criação de obstáculos à formação da ASFIC. O Dr. Menéres
Pimentel era um amigo da PJ. Encarregou a nossa polícia da sua segurança
pessoal e mandou instalar na sua viatura oficial um aparelho de comunicações
via rádio igual aos que estavam montados nas nossas viaturas. Por vezes entrava
na rede, cumprimentava-nos e desejava-nos boa sorte.
[3]
Também foi o chefe Roque quem iniciou a investigação preliminar que
tinha por objetivo apurar a personalidade do candidato. Percorria o país
sozinho, deslocando-se ao local de nascimento do candidato, onde contactava o
padre, o regedor, comerciantes, vizinhos e quem entendesse por bem, procurando
inteirar-se das suas raízes familiares e do seu caráter. Também se deslocava ao
local onde o candidato habitava e ao seu local de trabalho.
[4]
Extrato do texto: A justiça no Centro da Política – Em torno do Projeto
de Revisão Constitucional da “Ala Liberal", Professor Doutor Pinto de
Albuquerque (Projeto de
Lei n.º 6/X – Revisão Constitucional,
apresentado pela “Ala Liberal” na Assembleia Nacional em 16 de Dezembro de 1970).
[6]
- Dados recolhidos de uma entrevista concedida pelo ex-inspetor da PIDE Álvaro
Pereira de Carvalho à jornalista Diana Andringa, para a série da RTP “Geração
de 60” (1990).
(…)
o ex-inspetor da PIDE disse ainda que «depois de tentativas artesanais de escuta, fora Barbieri Cardoso que,
usando as suas boas relações com os serviços secretos franceses, conseguira o
fornecimento de 45 unidades de escuta que permitiam à polícia uma nova
eficiência: assim que o telefone escutado ligava para outro, o sistema – montado
no 4º andar do edifício da sede da PIDE, na R. António Maria Cardoso –
registava o número marcado, começando um gravador a rodar no momento em
que era levantado o auscultador. Evitava-se, assim, a baixa de tensão
sentida nas escutas artesanais, alertando para a entrada de outro aparelho no
circuito.
[7] A organização
desta valência e a formação do pessoal que nela passou a trabalhar contou com a
colaboração de um técnico espanhol.
Muito interessante este texto (fiquei presa a lê-lo pela informação e realidade).
ResponderEliminarImportante referência à sádica e violenta Legião Portuguesa, organização paramilitar da ditadura clerical do Estado Novo, de cariz fascista, que chegou a ser mais temida que a própria Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE, que depois seria denominada de PIDE).
ResponderEliminarPesquisas históricas sobre a História da Polícia e da Criminalidade. Convido a todos para conhecerem a iniciativa. Abraço fraterno. https://www.facebook.com/groups/282976195225622/
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