«Agir»
As cheias de 1967 e o progressismo católico português
No
«progressismo católico» português detecta-se a convergência de dois
sentimentos: consciência moral e superioridade intelectual (1).
Já na «Carta
de um grupo de católicos de Portugal distribuída aos padres conciliares», de
1965, se falava da «vida terrivelmente sub-humana dos trabalhadores
portugueses» (2). É sintomático, de resto, que num inquérito promovido em 1964
pelas direcções-gerais da Juventude Universitária Católica, uns esmagadores
76,8% dos inquiridos hajam respondido que «o universitário deve tomar
consciência das questões económico-sociais e políticas do seu tempo,
esforçando-se por encontrar as soluções mais válidas»; apenas 6,2% entendiam
que os universitários se deveriam preocupar somente com os estudos (3). Havia,
no entanto, uma clara diferenciação entre o «político» e o «social»: apenas
25,9% dos inquiridos aceitavam discutir sempre problemas políticos, mas 57,9%
admitiam fazê-lo quanto a problemas sociais (4). Sedas Nunes falava da
emergência de uma «geração social» integrada por ex-associados ou ex-dirigentes
da JUC, que, nas suas palavras, «tinham entrado para a universidade sem grandes
preocupações políticas (…). Tinham,
porém, saído da universidade cheios de preocupações sociais» (5).
Com o tempo,
porém, o «social» e o «político» começam a confundir-se (6), até porque a ideia
de «política» então dominante era muito mais abrangente do que a que existe nas
democracias consolidadas dos nossos dias. Na altura, «a política fazia parte da
vida», sustenta Manuel Villaverde Cabral (7). O «social» uma indiscutível
importância política. Nas eleições de 1969, um dos pontos salientados pelo
candidato da «ala liberal» José Pedro Pinto Leite era, além da definição de um
salário mínimo nacional e da revisão do sistema do abono de família, a «resolução
dos graves problemas da habitação e dos problemas dos transportes urbanos e
suburbanos da cidade de Lisboa, promovendo uma política de embaratecimento de
terrenos e tentando convencer as autoridades competentes a promover soluções
adequadas ao nosso tempo» (8). Um governante de Marcello diz que foi em larga
medida devido ao exemplo de Pinto Leite e à convicção de progresso e de
democratização («acreditei que íamos caminhar para um regime democrático») que
aceitou integrar o Executivo de Caetano (9). Não por acaso, os técnicos de
apoio social têm um papel muito relevante na oposição ao regime, podendo
citar-se os nomes de Maria Eugénia Varela Gomes ou de Gabriela Ferreira, sendo
esta, juntamente com Ludovina Esteves e Teresa Abrantes, das assistentes sociais
exoneradas da Função Pública por terem participado na vigília da Capela do Rato
(10). As alunas do Instituto de Serviço Social, não por acaso, foram auxiliar
as vítimas das cheias, nomeadamente no Bairro J. Pimenta, na Amadora, refere
Zulmira Marinho Antunes, filha de uma personalidade que terá papel de revelo no
rescaldo do caso do Rato: João Pedro Miller Guerra (11).
Se
acompanharmos o percurso biográfico de Maria da Conceição Moita, narrado pela
própria, apercebemo-nos claramente do modo como se efectuou esta transição do
«social» para o «político»:
«Fui professora
de Religião e Moral durante muitos anos. Procurava fazer um discurso para os
jovens, não subversivo mas entusiasmante, alegre, positivo, de empenhamento.
Para mim, foi uma coisa muito interpeladora. Depois, convivi muito de perto com
os professores de moral de Lisboa, porque trabalhei no secretariado diocesano
que fazia a colocação desses professores, como o Pe. Alberto, o Pe. Armindo, o
Pe. Janela. Pela comunidade da Martens Ferrão passaram muitos jovens, era um
lugar de alegria, de sonho, de utopia, de acreditar que era possível mudar.
Quando estava a
trabalhar no secretariado da Martens Ferrão fiz um curso de alfabetização
baseado no método de Paulo Freire. Era um curso organizado pelo Graal, pela
Manuela Silva, pelo Lindley Cintra, que nos preparou para usarmos esse método.
No fim do curso, pediram ao Graal que indicasse uma mulher para leccionar junto
de ex-prostitutas. Pensei: “Porque não?”. Aí comecei a fazer alfabetização, ao
fim de tarde, a raparigas que se entregavam à prostituição e queriam sair. Foi
uma experiência muito forte para mim. A grande experiência de contacto com o
sofrimento no seu estado mais puro, uma coisa sem explicação, absolutamente sem
explicação. Ouvi histórias de vida que ainda hoje me deixam dilacerada.
No ano seguinte,
fui convidada para trabalhar e integrar os quadros do “Ninho”, o que fiz sem
hesitações, pois já estava completamente apaixonada por aquela realidade. Aí
contactei um dos lados da miséria do país. Havia outros: os bairros de lata, a
emigração. Mas eu contactei a miséria urbana. Foi uma experiência muito
importante no meu percurso pessoal, que me perturbou muitíssimo no modo de ver
e entender as coisas. Até politicamente foi muito importante – nasceu em mim a
revolta perante o país que se tinha. Em mim, aquilo revoltava-me: porque é que
havia tantas histórias de encobrimento, de conivência de polícias, das
autoridades, com o mundo da prostituição? Não por acaso, redigi um documento
chamado “O Ninho pretende ser um movimento de libertação”, que não seria
aprovado pelo Patriarca D. António Ribeiro.
Por outro lado,
o meu irmão Manuel esteve na guerra. Esteve na Guiné, foi condecorado, mas
entregou a condecoração à minha mãe e nunca mais falou daquilo por que passou,
entrando de cabeça na política. Além disso, circulava muita informação sobre a
guerra colonial.
Assim, chego à
política, sem dúvida nenhuma, muito mais por uma via empírica do que por uma
via intelectual. Lia as encíclicas, mas não lia O Capital. Agora, as encíclicas tiveram imensíssima importância
para mim. Havia imensa informação vinda do exterior, mas pessoalmente não tinha
muita, baseava-me mais na minha experiência de vida» (12).
A intervenção social torna-se, em larga medida, uma intervenção política, tendo-se abandonado a ideia de uma resolução pontual de problemas circunscritos (v.g., através de acções de índole caritativa) em favor de uma abordagem global da «sociedade» como um todo. Esta transição tornava os crentes, que para mais agiam de acordo com a sua «consciência» (13) e em nome de uma «causa justa», particularmente subversivos. Não por acaso, a Censura irá cortar a transcrição feita nos jornais de uma carta que, na Páscoa de 1970, um conjunto de 200 pessoas subscreve. Entregue ao Cardeal Patriarca de Lisboa, ao Bispo da Igreja Lusitana Evangélica Católica Apostólica e ao Pastor da Igreja Presbiteriana de Lisboa, a missiva exemplificava bem a nova abordagem global dos problemas da sociedade, que entrecruzava questões sociais (ex. igualdade no acesso à saúde ou à educação) e questões políticas (ex. fim da guerra colonial, incremento da participação cívica) (14).
Aos poucos,
forma-se uma consciência social que se mostra cada vez mais avessa a confiar
nas possibilidades de reforma da «desordem estabelecida», para usar a conhecida
expressão de Mounier, ou a «desordem dos factos», na terminologia de Paulo VI (15).
Como exemplo dessa consciência social, lembre-se que partiu de um grupo de
católicos do Instituto Superior Técnico a campanha de solidariedade e de apoio,
realizada nos bairros degradados dos arredores de Lisboa, às vítimas das cheias
de Novembro de 1967, que afectaram em especial o Vale da Ribeira de Odivelas - Bairro de Santa Cruz da Urmeira,
Quinta do Silvado e Pombais (a maior parte das habitações ficaram destruídas) e
as áreas baixas da Póvoa de Santo Adrião e Quinta da Várzea, ocorrendo muitas
mortes e desaparecimentos (16). Para ter uma noção da dimensão do temporal,
basta referir que, ao longo de cinco horas de «chuvas rápidas», a precipitação
verificada, de 111 milímetros por metro quadrado (mais precisamente, 112,5
milímetros, registada na estação meteorológica da Tapada da Ajuda),
correspondeu a cerca de 25% da precipitação média anual. A chuva caiu com maior
intensidade entre as 19h e a meia-noite do dia 25 de Novembro. Em Lisboa, por
força das águas vindas de Monsanto, a Avenida de Ceuta esteve completamente
submersa e o mar de lama desceu até à Avenida da Índia. Na Praça de Espanha e
na Avenida da Liberdade só se passava de barco. Dentro da sala do antigo Éden Cinema, no Largo de Alcântara, uma onda de água galgou a plateia e os 150
espectadores só escaparam refugiando-se no balcão, sendo resgatados pelos
bombeiros cerca da meia-noite. Na Estação de Santa Apolónia, centenas de
pessoas ficaram retidas nas carruagens dos comboios, porque a água submergiu a
linha férrea. Foi a maior catástrofe natural que atingiu Lisboa desde o
terramoto de 1755. Noutros pontos da Grande Lisboa, a enxurrada matou famílias
inteiras, arrastou carros, árvores e animais, destruiu pontes, estradas, casas.
O fenómeno abalou o país e comoveu a Europa: chegaram donativos dos governos
britânico e italiano, do principado do Mónaco e o general De Gaulle chegou a
contribuir com uma «dádiva pessoal» de 30.000 francos. O apoio em meios
sanitários veio de França, da Suíça e, sobretudo, de Espanha, que ofereceu mil
doses de vacina contra a febre tifóide. O Diário
de Notícias lançou uma subscrição que, em conjunto com a da Cruz Vermelha,
atingirá os 25 mil contos de receita. A Fundação Gulbenkian aprova a
constituição de um fundo para a construção de habitações para os desalojados. É
a partir destas iniciativas que nascem o Bairro Gulbenkian, em Odivelas, e o
Bairro da Cruz Vermelha, no Lumiar, em Lisboa.
A Junta Central da Acção Católica, em 29 de Novembro de 1967, emite um longo comunicado sobre «a grave situação criada pelo temporal na região de Lisboa», no qual procede a um exame de consciência que termina com uma série de interrogações (17). «Actos», assim terminava um artigo de Vida e Alegria, da JOCF, em que se procedia a um balanço das cheias. «Que poderás fazer como construtora dum mundo em que a Justiça não seja apenas uma palavra, mas ACTOS?», perguntava-se (18).
As cheias de
25 para 26 de Novembro de 1967, que fizeram cerca de 500 mortos (19),
mobilizaram diversas associações de estudantes por todo o país, envolvendo a
Juventude Universitária Católica, apelos do Conselho de Repúblicas de Coimbra,
ou campanhas de angariação de donativos entre os organismos académicos do
Porto. «As inundações foram um momento de grande mobilização. Aí quem esteve
muito presente foi o Joaquim Osório, que era diácono e depois não se chegou a
ordenar. Houve uma mobilização muito grande, até que a certa altura o
Ministério do Interior disse-nos para pararmos. Foi uma mobilização tão grande
que devemos ter ficado debaixo de olho da PIDE», refere o sacerdote António
Janela (20). Outro sacerdote, que consigo vivia na mesma casa, Armindo Garcia,
tem uma recordação curiosa: «nós oferecemos a nossa Casa da Martens Ferrão. Foi
uma invasão, ali entrou toda a gente. Aquilo foi uma espécie de célula de
coordenação, onde alguns conquistaram ali terreno, onde algumas lideranças se
afirmaram. As cheias foram, de facto, uma oportunidade política de que alguns
se aproveitaram. Aprendemos com elas a não ser ingénuos: vimos que havia gente organizada que encontrou ali uma via
fácil para a tomada do poder. E fiquei com a ideia de que ainda era o PCP que
controlava essa gente» (21). No Porto, por sua vez, a Confronto lança uma «Campanha
de Solidariedade às Vítimas das Inundações», tendo-se chegado a preparar um
trabalho sobre «as inundações e o problema da habitação», em que participaram
Mário Castrim, Nuno Portas, Gonçalo Ribeiro Teles e Raul Silva Pereira (22).
Ocorrida após a pouco conhecida «crise académica» de 1965 (23), tratou-se da primeira grande experiência colectiva de contacto entre os universitários e o povo, a qual suscitou, compreensivelmente, algumas tensões com o Movimento Nacional Feminino (os estudantes eram «complicadíssimos» e o «ambiente não podia ser pior, de cortar à faca», na reminiscência de Cecília Supico Pinto 24, a dirigente do MNF que pouco antes chegou a ser alvo de escutas telefónicas da PIDE 25), ou com o Presidente da Câmara de Vila Franca de Xira (26). Um operário desta região dirá, num livro publicado em 1973, que «há uma parte capitalista da juventude estudantil que tem trabalhado mesmo para benefício dos outros» (27). E as cheias colocavam realmente em questão o problema dos outros e da forma como viviam - e morriam. Era um problema que, por exemplo, não se colocara no incêndio que devorara a Serra de Sintra em Setembro de 1966, durante seis dias, ceifando a vida a 25 soldados (28). Aí, na Serra, não havia ninguém a que acorrer.
Em várias
circulares, o Centro de Coordenação da Acção Juvenil de Auxílio aos Sinistrados
(CCAJ) vai dando conta dos seus trabalhos (29). As queixas relativas à falta de
colaboração das autoridades são constantes e, talvez mais importante do que
elas, havia a ideia de, após o socorro no auxílio às vítimas das cheias,
prosseguir as tarefas de apoio aos mais carenciados.
A
mobilização estudantil começara logo no dia 27 de Novembro, quando alunos dos
liceus Camões, D. Leonor, D. João de Castro, Filipa de Lencastre, Maria Amália,
Passos Manuel e do Colégio Moderno se organizam numa comissão inter-escolas e
apelam à organização de «brigadas de jovens» para socorrer os que «não têm
tecto nem roupa para se agasalhar». Há quem diga que as primeiras iniciativas
se deveram aos alunos católicos do Instituto Superior Técnico, que contactaram
as associações de estudantes, tendo estas aceite o repto que lhes era lançado (30).
A partir daí, o movimento adquire uma dimensão sem precedentes, a ponto de
equipas de alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra virem
integrar campanhas de vacinação na região de Lisboa (31). No Instituto Superior
Técnico, um serviço de apoio funciona ininterruptamente na associação de
estudantes. Na Associação de Estudantes do Técnico forma-se mesmo uma Comissão
Coordenadora Central, a qual será responsável pelo fornecimento de cerca de
1.000 refeições por dia às vítimas das cheias e pela organização de acções de
apoio que, em termos numéricos, envolveram cerca de 5.760 estudantes, que
prestaram 44.080 horas de trabalho voluntário (32). A Acção Católica, por seu
lado, organizou igualmente as suas equipas de auxílio.
Ainda que numa dimensão muitíssimo distinta, as cheias não afectariam apenas os mais carenciados. Vivendo na altura em Loures, Conceição Monteiro era catequista e integrava as Conferências de São Vicente Paulo, onde desenvolveu trabalho junto das mulheres, agrupando-as num pequeno clube no Pinheiro de Loures, em que procurava incutir-lhes a ideia de igualdade entre sexos. Participante empenhada da Acção Católica, Conceição Monteiro sofrerá os efeitos das «cheias horrorosas» de 1967: «morreram vinte e quatro vizinhos meus e a minha casa ficou destruída» (33). Decidiu, então, mudar-se para Lisboa. Prima de Francisco Pinto Balsemão, Conceição Monteiro era amiga íntima de Pinto Leite e seguia com atenção o percurso da ala liberal.
Enquanto se
recebiam donativos de toda a parte (34), no terreno os estudantes
impressionaram-se não apenas pelas condições de vida das populações mas também pela
passividade das autoridades – mais precisamente, das forças da Guarda Nacional
Republicana presentes no local (35) – perante a tragédia. Zita Seabra,
estudante no Porto, conta que, tendo-se deslocado para a zona de Odivelas,
aquela foi a primeira vez que entrou num bairro de barracas (36). José Mariano
Gago ainda hoje recorda as «aldeias cobertas de lama» (37), enquanto João Isidro
lembra que os jovens universitários descobriram «um país dos bairros da lata,
um país que tinha sido submerso pela lama»; «a Universidade tomou consciência
de que havia um país que não estava ali à volta da Cidade Universitária e era
um país de bairros de lata que fora submerso por lama»; «os estudantes foram
para a campanha das inundações sem a mínima ideia ao que iam, iam para socorrer
pessoas. E quando se deram conta da dimensão da catástrofe, quando foram
confrontados com a lama, com a indiferença prática do Movimento Nacional
Feminino, das forças de segurança. Os estudantes, sem formação política
absolutamente nenhuma, começam a “amotinar” os desgraçados que tinham perdido a
barraca ou alguém de família... é evidente que estava na forja um conjunto de
revolucionários» (38). Muitos anos antes, na campanha presidencial de 1958, ao
discursar em Chaves, Humberto Delgado acusara os governantes do seu país de não
conhecerem os bairros da lata («se esses senhores entrassem num bairro da
lata…») (39). Pelos vistos, os estudantes universitários também não os
conheciam.
No seu
relato memorialístico, o próprio Américo Thomaz, que diz ter visitado os locais
mais afectados, afirma que se tratou de uma «completa calamidade», em que
existiram «famílias inteiras imoladas à fúria dos elementos» (40). Em
contraste, o dirigente estudantil João Bernardo confessa ter ficado
impressionado com a incúria das autoridades: «além de nós, só havia os
bombeiros voluntários; de resto, absolutamente mais nada» (41). Uma outra
estudante, Rita Veiga, moradora em Alvalade, diria «se me pedissem para
resumir, numa só palavra o que vi diria: lama, lama, e ainda lama». Na altura
ainda estudante liceal, Jorge Wemans, que estará presente na vigília do Rato,
deparou com «lágrimas desconfortadas, envergonhadas», «cheiros nauseabundos»,
«casas esventradas, móveis partidos, muros caídos, árvores derrubadas». «E, por
todo o lado, lama, montanhas de lama, sempre mais lama» (42). Um habitante de
Quintas, um lugar do Ribatejo particularmente atingido pelas cheias, recorda
que «a água era como uma pessoa a subir, escada acima. Aquilo nem era bem água,
era mais um líquido leitoso» (43). Outro, morador em Porto de Areia, diz:
«levei-me a convencer que o mundo tinha acabado» (44). Os mortos amontoavam-se
às dezenas e, no dia 26 de Dezembro, começam as operações de remoção dos
cadáveres: «iam às casas, tiravam os corpos, punham-nos no chafariz amontoados,
como se fossem sacos de batatas. E dali levavam-nos para Vila Franca», conta
uma habitante de Quintas (45). Alguns tentam aproveitar-se da catástrofe,
fazendo-se passar por familiares dos mortos: «muitas pessoas vinham, como se
fossem famílias das vítimas, à procura de ouro». O jornalista Pedro Alvim
escreveria uma tocante crónica no Diário
de Lisboa, intitulada «Os Mortos e os Fósforos», que começava assim: «Era
ao cair da tarde - e havia mortos. Todos muito juntos, enlameados,
compridos. Alinhados, distanciados para sempre, ali aguardando o arrumo
definitivo. Ali, ali no cimento frio de um quartel de bombeiros, no fim de um
domingo de Inverno» (46).
As autoridades procuraram silenciar a dimensão da catástrofe (47), ponto que os estudantes não deixariam de questionar nas publicações que editaram na altura (48). Indo até aos mais ínfimos pormenores, a Comissão de Exame Prévio do Porto determina, por exemplo, em 30 de Dezembro de 1968: «Baile de passagem de ano, no Palácio dos Valenças, em Sintra. Não dizer que a receita se destina às vítimas das inundações»; em 2 de Dezembro: «No noticiário das enxurradas não dizer que se acode às classes populares e se despreza a classe média»; em 27 de Novembro, o tenente Teixeira ordenava: «É conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos» (49). Em privado, porém, a dimensão da tragédia era reconhecida, quando, por exemplo, o Ministro do Interior agradece o apoio concedido por Dom Duarte Nuno de Bragança (50). E, como salienta o historiador Miguel Cardina, «o Solidariedade Estudantil apresentava estatísticas baseadas em dados do Serviço Meteorológico Nacional, mostrando que o máximo de pluviosidade havia ocorrido no Estoril, apesar das mortes terem acontecido nos bairros de lata de Lisboa e arredores e nas zonas pobres do Ribatejo. Também o Comércio do Funchal chamava abertamente a atenção para as causas sociais que haviam estado na base da catástrofe: «nós não diríamos: foram as cheias, foi a chuva. Talvez seja mais justo afirmar: foi a miséria, miséria que a nossa sociedade não neutralizou, quem provocou a maioria das mortes. Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre por o ser» (51). Os estudantes, facto que deve ter feito aumentar a sua repulsa pelas autoridades, estavam conscientes de que estas não só pouco fizeram como, pior ainda, procuraram esconder a sua inépcia dos portugueses. A revolta é patente num comunicado emitido na sequência de uma reunião de estudantes no Instituto Superior Técnico, em que se refere que «o governo não quis que fosse conhecida a falta de preparação e a desorganização dos seus serviços sociais» (52). Há pormenores esclarecedores: um grupo de estudantes que se encontrava no Rossio, de capa e batina, a fazer um peditório a favor das vítimas das cheias, é detido pela Polícia de Segurança Pública, por distúrbios à ordem pública (53).
Na
recordação do jornalista Joaquim Letria, «o que aconteceu com as cheias é
perfeitamente incrível... havia discrepâncias no acesso à informação, o
Ministério da Saúde dava uns números, o Ministério do Interior dava outros...
durante muitos dias nós não pudemos dizer que morreram setecentas ou oitocentas
pessoas e que havia outras tantas desaparecidas» (54). Ainda assim, como atrás
se referiu, o Solidariedade Estudantil,
distribuído em Lisboa mas onde estudantes do Porto como Pacheco Pereira tiveram
papel essencial, demonstrava, com base nas estatísticas do Serviço
Meteorológico Nacional, que os máximos de pluviosidade não se tinham registado
nos bairros de lata de Lisboa ou nas zonas pobres do Ribatejo, mas antes no
Estoril, onde não se registaram mortes nem danos materiais significativos. E perguntava:
«Só Chuva?», sendo a resposta obviamente negativa (55). O programa radiofónico
«PBX», produzido pelos Parodiantes de Lisboa e realizado por Carlos Cruz e
Fialho Gouveia, converte-se num importante meio de informação entre as
populações e as autoridades e chega mesmo a ultrapassar o seu tempo normal de
emissão (56). E, a breve trecho, as manchetes dos principais jornais eram assaz
eloquentes: «Chuva e Morte. Centenas de Vítimas» (Diário de Lisboa), «Noite Dramática em Lisboa e Arredores» (Diário de Notícias), «Horas de Pavoroso
Dilúvio sobre Lisboa e Arredores. Mortos e Desaparecidos Envolvidos pela
Enxurrada» (O Século). Na sua edição
de 3 de Dezembro, o Diário de Lisboa
falará já em 458 mortos, mas nos dias seguintes relatará a existência de mais
vítimas. A 9 de Dezembro, o Governo faz publicar na imprensa uma nota oficiosa,
para «exprimir os agradecimentos» a «todas as entidades que desenvolveram
acções de apoio às vítimas das cheias», como a Legião Portuguesa ou o Movimento
Nacional Feminino. Mas mesmo o Governo não deixa de reconhecer a dimensão do
apoio dado pelos estudantes, aludindo, naquela nota, a «todas as boas vontades,
designadamente as de estudantes, que espontaneamente se apresentaram» nos
locais onde a enxurrada foi mais mortífera.
As associações de estudantes, porém, acabaram por fazer uma conferência de imprensa, onde denunciaram a censura imposta à informação que, entre o mais, escamoteava «a existência, num extensíssimo sector do território, de condições de vida de tal modo miseráveis que por elas em grande parte se explica a amplitude das perdas de vidas e haveres nas populações atingidas», bem como, por outro lado, «a participação dominante de organizações democráticas e livres, como as associações de estudantes, num trabalho que em primeira linha competia às instâncias sociais» (57). O trabalho dos estudantes no apoio às vítimas das cheias era também o triunfo dos pequenos núcleos democráticos das academias sobre o indiferentismo social das entidades públicas autoritárias. O movimento de solidariedade teve como efeito não só um conhecimento muito próximo – e dilacerante – da realidade social por parte de milhares de estudantes como uma politização destes num sentido vanguardista, a ponto de alguns, como Pacheco Pereira e Jorge Simões, afirmarem que foi desde então que o Partido Comunista Português foi ultrapassado no meio estudantil. «A partir daí, efectivamente, o PC passou a perder toda a vanguarda do movimento associativo e deixou de recrutar os melhores», opina Pacheco Pereira; «o PCP perde a influência total no meio estudantil» (58), tanto mais que a ideia de «agir», muito presente neste movimento, ia ao encontro, de pleno, com a doutrina pró-chinesa (59), alternativa ao modelo soviético do partido de Cunhal. Pacheco Pereira refere que se tratou de um «momento único da experiência estudantil militante dos anos 60», «quando centenas de estudantes organizados da Igreja e pelo movimento associativo foram ajudar as vítimas ainda a desgraça estava em curso, nas operações de salvamento, de recolha dos mortos, da ajuda aos vivos, de salvamento do pouco que sobrava entre a lama. Nessa intempérie […] morreu um número desconhecido de pessoas. A Censura nunca permitiu que se soubesse o número exacto e muita gente desapareceu desde então. Os estudantes associativos, a elite política das universidades, comunistas, católicos progressistas, esquerdistas, e muitos voluntários atraídos por uma solidariedade que não sabiam ser proibida, iam pela primeira vez conhecer o Portugal sobre o qual falavam em abstracto nos panfletos. Os mundos do salazarismo eram tão socialmente estanques que se podiam viver sem contactar com os traços mais revoltantes da miséria, que grassava nos arredores de Lisboa, e no interior do país, onde por essa altura centenas de milhares de portugueses faziam a valise para irem para França». Alude ainda à «descoberta deste mundo de pobreza suburbana, que se acentuava no reverso do “milagre económico português” que estava em curso, levando milhares de portugueses a viver em bairros da lata e em habitações degradadas da faixa ribeirinha. As chuvas atiraram-nos para o Norte e os estudantes que viam os bairros da lata e os esteiros pela primeira vez encontravam um mundo que não estava em nenhum manual. Sem conhecerem as fábricas, que eram uma reserva do PCP, os esquerdistas que nasciam como cogumelos daquela chuva voltavam-se para aquelas margens, como no exílio, encontravam na emigração nos bidonvilles. Uma nova massa, um novo campo de manobra» (60).
Na aldeia de Quintas, metade da população morrera. Ao chegarem às casas dos mortos, os bombeiros olhavam impressionados para as mãos marcadas de lama nas paredes, sinais de uma tentativa desesperada, mas infrutífera, para alcançar o telhado das habitações. Um novo país emergiu das cheias de 67: «verdadeiramente, as pessoas não tinham acesso ao país que existia, a pobreza e a miséria de muitas pessoas eram desconhecidas; subitamente, apercebemo-nos de que em Portugal havia gente que vivia na miséria e que todas as estruturas que a deviam proteger não funcionaram», diz Pacheco Pereira, salientando o especial impacto no meio estudantil: «os estudantes eram uma elite, a maioria das pessoas que tinha chegado à Universidade nunca tinha visto um pobre ou, melhor, havia os pobres como criados, nas ruas». «As cheias foram um "banho de realidade". Mais do que conceitos abstractos, panfletos, doutrinas, foram um factor de radicalização». Diana Andringa salienta, além da paralisia completa do Governo, a acção decisiva dos estudantes, que estiveram no local a desenterrar mortos e recebiam pedidos arrepiantes, como o de uma mulher a quem morrera toda a família e que lhes rogava que encontrassem no interior da casa fotografias dos familiares desaparecidos, como derradeira recordação. A então aluna de Medicina lembra-se de uma «raiva crescente nos estudantes», que certamente se agravou quando se aperceberam que a Censura não só cortava notícias como alterava a realidade - diminuindo, por exemplo, o número de vítimas (no ano seguinte, as estatísticas da gripe de Hong-Kong que vitimou mais de mil pessoas seriam igualmente escamoteadas 61); a dado passo, a GNR, ao invés de ajudar nas operações de socorro, prendia estudantes indignados. «O choque maior para mim foi ver passar os enterros seguidos e vermos nos jornais muito poucos mortos. Foi na altura que eu decidi na minha vida fazer uma opção. Houve uma consciência política que despertou», assinala Helena Roseta, que na altura entrevistou Nuno Portas e Gonçalo Ribeiro Teles sobre os efeitos das cheias (62).
As «cheias rossellinianas» (63) de 1967 marcariam presença num diálogo travado entre diversas personalidades – Alberto Vaz da Silva, Ana Maria Bénard da Costa, Bento Domingues, Eduardo Veloso, João Bénard da Costa, Luís Bénard da Costa, Maria Belo, Nuno Bragança, Teresa Martins de Carvalho e Vítor Wengorovius – que seria reunido no famoso caderno especial de O Tempo e o Modo com o título «Deus o que é?». A dado passo, Ana Maria Bénard da Costa afirma ter reencontrado Deus em Odivelas, o que merece um comentário algo irónico de João Bénard da Costa.
«Ana Maria
Bénard da Costa – (...) Eu quando penso, tenho cada vez mais dúvidas e sinto-me
cada vez mais longe de poder aceitar a ideia de um Deus ou seja lá do que for.
Mas sei é que, quando na altura das inundações, passei o dia com os sapatos
encharcados a distribuir cobertores em Odivelas, senti outra vez que Deus
estava perto e que se alguma coisa Ele era, era aquilo, Portanto não posso
desligar Deus dos outros e da eficácia da acção junto deles.
João Bénard da
Costa – Isso, no fundo, é só porque tu foste educada, como eu, como nós todos,
desde os tempos da J.U.C., etc., a acreditar que esse sacrifício é que tinha
valor e que quanto mais perto estivéssemos do sofrimento dos outros, mais perto
estávamos de Deus. Por isso é que tu sentes a tal plenitude da eficácia. Não só
fomos educados a acreditar nisso como a dar valor ao sacrifício enquanto
sacrifício, ao trabalho custoso, ao que dói, etc. Ou seja, se tu te sentias
perto de Deus em Odivelas era porque te sentias perto da Cruz sem a qual não há
redenção.
Ana Maria Bénard da Costa – Pois, mas o que me
parece é que essa presença do sofrimento dos outros é a presença do que nos
transcende e portanto presença de Deus» (64).
Nuno Bragança interpretou a importância das «experiências» ou
«vivências» narradas por Ana Maria Bénard da Costa como um «acordo da pessoa
consigo própria através dum desegoísmo [que] a vai inevitavelmente arrancar ao
conforto imediato, a vai pôr em confronto com realidades que a solicitam para
fora dela» (65). O tema do conforto/desconforto será recolocado por
Luís Bénard da Costa, que confessou sentir o «terror do inconforto» mas, em
simultâneo, o «terror do conforto» (66), o que não deixa, em boa
medida, de revelar um «complexo de identidade», para usar o termo já cunhado
para retratar o espírito de muitos estudantes parisienses de Maio de 1968. Um
complexo que ainda hoje é visível, por exemplo, na narrativa autobiográfica de
Zita Seabra, que retrata o modo como os jovens dos seu tempo encaravam a
revolução e o marxismo: «todos, como eu, filhos-família, a falar em nome de um proletariado que não conheciam e nunca tinham
visto na maioria dos casos, e todos a gritar pela revolução armada» (67).
Ana Maria Bénard da Costa rejeitava que a sua orientação para os outros se
identificava com a tradição caritativa tradicionalista, bem pelo contrário: «eu
não estou de maneira nenhuma educada, pelo menos desde os meus tempos
associativos, a achar que fazer mera caridade está certo. Eu estou educada, até
desde os meus vinte anos – e já tenho trinta, portanto, há dez anos – a pensar
que isso é completamente errado que é alienante, que atrasa a revolução, etc.,
etc.» (68). Aqui se entrevêem os dilemas de uma mulher que, ao mesmo tempo,
redescobria o divino nos subúrbios de Lisboa mas não queria que daí, da sua
actividade de auxílio aos outros, resultasse qualquer atraso para a revolução.
Os «vencidos do catolicismo» viviam
angustiados entre o Deus de Odivelas e a revolução que tardava.
As cheias, além do activismo estudantil, foram para muitos o
ponto de apoio para uma maior intervenção no campo social, que conduzirá a um
despertar para a acção política, a qual, estando como estava dominada pela
problemática da guerra, irá conduzir muitos à Capela do Rato.
Um deles, aí detido, o antigo jocista
Homero Cardoso, narra assim o processo de consciencialização social que
atravessou:
«Faço parte de
um grupo que primeiro descobre a acção social, a luta pelos pobres oprimidos.
Estava na Flama quando se dão as
cheias de 1967 e foi uma coisa que, até de um ponto de vista meramente
jornalístico, teve um impacto muito grande, na redacção da Flama e nas outras redacções. Quando as cheias acontecem, toda a
gente aparece num instante na redacção da Flama.
Andava toda a gente à procura do fotógrafo, o João Tinoco. Simplesmente, ele
nem passara pela redacção, tinha ido logo a correr para lá. Apareceu mais tarde
e tinha feito uma fotografia que seria premiada, de uma mulher que, no meio
daquela desgraça toda, tentava salvar o seu aparelho de televisão. Tínhamos uma
equipa óptima na Flama e chegámos até
a enfrentar a Igreja, porque esta queria que nós imprimíssemos na União Gráfica
e nós opusemo-nos e ganhámos.
Isto faz parte
da minha formação como homem. A minha formação começou com essa dimensão social
e só depois passou para a parte política. Nós muito cedo começámos a ter um
conhecimento concreto da realidade. Um exemplo: em Arroios fomos ajudar a
construir uma barraca para uma pessoa que nem sequer uma barraca tinha para
dormir! Fui à Fábrica Portugal pedir chapas, arranjámos pedaços de madeira e lá
construímos a barraca, para os lados das Portas de Benfica. Nós quotizávamo-nos
para arranjar dinheiro para dar alimentos às pessoas, tínhamos muito esse
trabalho com as pessoas. Na JOC fizemos uma coisa muito importante na formação
de muita gente, que foi a chamada “Carta Operária”. Para fazermos a “Carta
Operária” éramos obrigados em cada zona a assinalar tudo: os cafés, os bares,
os locais de prostituição, onde viviam os operários, os ricos, o que é que
faziam, etc. Fui uma semana para Vendas Novas para fazer a “Carta Operária” e
até dormi na casa do padre, na igreja. Esse trabalho de levantamento serviu
depois de modelo e andei pelo país todo a divulgar o projecto. Estive na
preparação desse trabalho todo e, inclusivamente, fui até Estrasburgo
participar num encontro preparatório desse movimento, da JOC Internacional. Foi
aí que começou a abertura da JOC ao exterior. Na elaboração do projecto da
“Carta Operária” tive até alguns conflitos com certos padres, mas aí eu
dizia-lhes: “uma coisa é Igreja, isto é a JOC”. Quando fiz o relatório ainda
não tinha a noção de que fizera um trabalho de campo sociológico muito
importante. Na altura, muita gente colaborou, como, por exemplo, o Cesário Borga.
Assim, quando vamos para a rua, já vamos com outra preparação. E a acção
política surge a seguir. Nós descobrimos um país onde havia um conjunto de
pessoas, que eram muito poucas, extraordinariamente ricas e um número
enormérrimo de pessoas que eram extraordinariamente pobres e que eram,
sobretudo, extremamente humilhadas. Uma acção muito importante para nós naquela
época era fazer-lhes ver que estavam a ser humilhadas e dar-lhes alguma
dignidade. Lutar contra a humilhação em prol da dignidade. Porque havia pobreza
a sério! Na Graça havia pequenos bairros operários e em Arroios eram quintais e
pátios onde as pessoas viviam em condições inumanas, lançavam os dejectos na
rua!
A JOC de Arroios
foi uma espécie de “viveiro” para muita gente. O padre Mareca, como a gente lhe
chamava, chegou a ser preso. A sede da JOC de Arroios já não era na igreja, era
fora da igreja, numa casinha que tínhamos conseguido alugar já fora da igreja
e, portanto, tudo aquilo já tinha uma intenção e uma função políticas. A JOC já
não estava nas igrejas, já tinha saído para as ruas, para as colectividades,
para os cafés. Nessa altura fui dirigente de uma colectividade, uma associação
de antigos alunos da Escola Veiga Beirão. Era uma acção social e cívica em que
a parte política estava claramente associada» (69).
De Tübingen, em Junho de 1968, Hans
Küng responderia ao inquérito de O Tempo
e o Modo, num texto que seria publicado em tradução de Rogério Martins, e
que começa por análise que, de uma forma bastante ilustrativa e penetrante, interpela
a realidade da época e do sentido que, nesse concreto e preciso contexto,
adquiria a pergunta: «Deus o que é?».
«O que é Deus?
Esta pergunta tem que ver com a inquietação, os protestos e as demonstrações da
nossa juventude em Praga, Varsóvia, Berlim, Tóquio. Essa inquietação tem causas
que são muitas, e que são diferentes conforme os países: as deficiências das
universidades, as numerosas indignidades da política e o carácter “repressivo”
e a falsa moral do “establishment” social de cada país, etc. Como denominador
comum poderia talvez indicar-se a “segunda revolução técnica” ainda não
dominada. A um nível ainda mais profundo revela-se esta inquietação exactamente
entre os filhos e as filhas, bem instalados e amimados, daqueles pais que ainda
tiveram que lutar com aspereza e entusiasmo para possuírem dinheiro bastante, e
uma bela casa, automóvel, luxo: a questão do sentido de tudo, que lhes é agora
oferecido sem discussão e que já não pode constituir um objectivo. Uma nova
busca do sentido das coisas nesta “sociedade afluente” cujo fim muitas vezes é
a total falta de sentido; uma falta de sentido que parece confirmada pela
irracionalidade de toda a dinâmica civilizacional e pela contradição duma
sociedade que, num triunfo sem precedentes da técnica, se lança em conquistas
das estrelas mas ao mesmo tempo não consegue resolver os problemas mais
primitivos da terra (...)» (70).
Na
perspectiva de Küng, a questão situava-se, portanto, na perda de sentido que os filhos privilegiados da «sociedade
afluente» tinham de enfrentar ou, melhor dizendo, na necessidade de
redescoberta de um novo sentido de tudo
que inquietava os baby boomers, cujos
valores-chave haviam sido abalados por uma tríplice crise, cujos sinais se
tornarão mais visíveis nos anos vindouros, sendo questionados valores como a
razão, o progresso e a nação (71). Para alguns dos que haviam passado pela fé,
a questão não se colocava dessa maneira; havia, isso sim, que descobrir um sentido alternativo, após terem perdido
a crença em Deus e, sobretudo, a confiança nas estruturas e instituições que a
sustentavam. Um caso paradigmático é o de João Bénard da Costa, que do mesmo
passo que admite, com uma desarmante sinceridade, que «a palavra Deus continua
a ser o centro da minha vida», confessa ter deixado de ser católico e de
«aceitar um determinado sistema moral e um determinado sistema dogmático que a
Igreja Católica encarna e mantém (e que não poderá deixar de encarnar ou
manter, ao contrário do que muitos pensam), no momento em que descubro em todas
as institucionalizações da religião, em todas as igrejas, o gérmen
essencialmente reaccionário que as torna necessariamente instrumentos de
repressão e de oposição a uma radical libertação do homem» (72). O que aqui
emerge é, acima de tudo, um afastamento relativamente à religião
institucionalizada, que não será partilhado por aqueles que ainda mantinham a
esperança de uma regeneração eclesial pós-conciliar, mais ou menos
«revolucionária», ou que procuravam uma vivência alternativa da fé cristã, que
passava menos por uma integração nas estruturas da Igreja do que pela vivência
concreta do serviço aos outros – algo que as cheias de 1967 exuberantemente
mostraram.
As cheias, reconheça-se, não foram a causa única da referida
perda de controlo do PCP sobre os estudantes da capital, não podendo
esquecer-se que, sobretudo devido às denúncias de Nuno Álvares Pereira, o
sector estudantil comunista de Lisboa, ao contrário do seu congénere coimbrão,
coordenado por Valentim Alexandre, sofreu um «verdadeiro terramoto» em
1964-1965 (73). Além disso, existe uma mutação cultural relativamente à qual a
evocação memorialística de Jorge Silva Melo é, a este respeito, assaz
impressiva:
«Quando cheguei
à Faculdade, o PC andava a ver se apanhava o comboio que outras forças
políticas - muito menos organizadas - já tinham feito partir, fartas de
estar à espera. Já se lia Mao, já havia quem ouvisse Argel e até Tirana,
discutia-se Althusser e Foucault, olhava-se com circunspecção e curiosidade o
PCI de Berlinguer, criticava-se o então estalinista Garaudy, já se falava em
acção armada, já católicos defendiam a libertação das colónias, já grupos não
filiados politicamente estavam perto de algumas realidades - operárias, sindicais... - onde até aí só o PC chegara. Padres
havia perto das lutas operárias, cooperativas nasciam - e não só de consumo cultural - e até sindicatos se formavam fora da
órbita daquilo que até aí (e desde o fim da Guerra de Espanha, com a
aniquilação final dos anarquistas) fora a oposição dominante. E até a História
começava a ter outros interesses: o Movimento Operário português começava a ser
estudado e começavam a aparecer publicações diversas em volta desse tema até aí
tabu. Emídio Santana reaparecia.
Entre 1962 e
1969, a oposição andou sem liderança única, partia em muitas direcções
possíveis, perdia unidade mas ganhava diversidade, nasciam ideias [...],
morrera a doutrina, nascera, débil embora, mas nascera o debate. E foram esses
vários rios divergentes, essas várias forças frágeis mas determinadas que
tiveram a novidade do "basismo" da CDE de 69. Para essa CDE confluiu
tudo, católicos, comunistas, nem uma coisa nem outra, pura gente de boa vontade
farta do autoritarismo. Um luxemburguismo informal estava no ar.
E o movimento
intelectual que aí culminou - e que, de certa forma, foi
despoletado cerca de dez anos antes pela avidez com que se viveu a Campanha de
Delgado - foi de
uma vitalidade e de uma qualidade como não creio que se tenha repetido depois.
A quantidade de rupturas formais e estruturais, a qualidade das heterodoxias
que nasceram nesses anos - da pintura à literatura, ao cinema, ao teatro, ao
ensaio, à polémica, às viagens, à renovação da crítica - não voltaria a ter lugar» (74).
António Araújo
NOTAS
(1) Trata-se de uma convergência que também se notava nos
movimentos contestatários dos anos sessenta, alguns dos quais julgavam ser
moralmente superiores a um establishment
corrompido: «o facto de sermos moralmente superiores era importante, as pessoas
estavam a fazer uma escolha vital entre uma opção ou outra. A ruptura com o
velho mundo e a busca de um mundo novo tinha uma conotação apocalíptica. E as
pessoas escolhiam porque estavam convictas não apenas racional mas também
emocionalmente», refere um antigo estudante da London School of Economics, que aí participou num sit-in em 1967: cfr. McLEOD, Hugh – The Religious Crisis of the 1960s. Oxford:
Oxford University Press, 2007, p. 143. Mario Savio, líder dos protestos na Califórnia, provinha de um
sólido ambiente católico, tendo os seus pais alimentado o sonho de que viria a
abraçar uma carreira eclesiástica. O seu discurso, como nota McLeod (ob. cit., pp. 144-145), é eivado de
referências de cariz ético ou religioso: «A razão pela qual os liberais não nos
compreendem é porque não entendem que existe mal neste mundo». McLeod refere
mesmo que, para muitos, o marxismo se tornou «uma nova fé».
(2) In Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo,
AOS/CO/PC-77-A.
(3) Cfr. Situação e
opinião dos universitários. Inquérito promovido pelas direcções-gerais da
Juventude Universitária Católica. Lisboa: CODES – Gabinete de Estudos e
Projectos de Desenvolvimento Sócio-Económico, SCRL, 1967, p. 61. Sobre este
documento, cfr. FONTES, Paulo – Juventude Escolar Católica / Juventude Escolar
Católica Feminina (JEC/JECF). In Dicionário
de História de Portugal. Dir. de António Barreto e Maria Filomena Mónica.
Vol. 8. Suplemento F/O. Porto: Figueirinhas, 1999, p. 349. AMARAL, Ana Filomena
– Maria de Lourdes Pintasilgo. Os
Anos da Juventude Universitária Católica Feminina (1952-1956). Coimbra:
Edições Almedina, 2009, pp. 150ss.
(4) Cfr. Situação e
opinião…, cit., p. 75.
(5) Apud GOMES,
Adelino – A JUC, o jornal Encontro e
os primeiros inquéritos à juventude universitária. Contributos para a história
das modernas ciências sociais. Sociologia.
Problemas e práticas. 49 (2005), pp. 99-100.
(6) «o social e o político confundem-se. A intervenção
política tinha uma motivação muito cristã. Achávamos que era incompatível com o
Evangelho não actuar, mas sempre na perspectiva de não aderir à violência. Eu
nunca aderiria à luta armada. Mas, ao mesmo tempo, apesar de ter admiração pelo
Gandhi ou pelo Luther King, também nunca tive o culto da não-violência»:
entrevista a Luísa Sarsfield Cabral, em 9 de Outubro de 2010.
(7) Cfr. CABRAL, Manuel Villaverde - Maio de 1968, uma revolução
cultural. Visão. História. 1 (Abril
de 2008), p. 98.
(8) Cfr. LEITE, Vasco Pinto – O sonho desfeito ou quanto vale a vida de um homem? Lisboa:
Tribuna da História, 2003,
p. 122.
(9) Cfr. a intervenção de João Oliveira Martins no colóquio
«Tempos de Transição» – 1ª Sessão: A Economia, as Finanças e as Obras Públicas,
(Lisboa, Centro Nacional de Cultura, 24-IX-2008).
(10) Cfr. FERREIRA, Adília – O discurso da resistência ou a
resistência do discurso. Os assistentes sociais no movimento de oposição ao
Estado Novo (1969-1973). In www.cpihts.com. MARTINS, Alcina Maria de Castro –
Serviço social crítico em tempos de ditadura. In www.cpihts.com. Id. – Génese, emergência e institucionalização do
Serviço Social português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Cfr.
ainda MOURO, Helena e CARVALHO, Anabela – Serviço
Social no Estado Novo. Coimbra: Centelha, 1987. Em 13-II-2010, no Seminário
de História Religiosa Contemporânea organizado pelo Centro de Estudos de
História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, foi proferida por
Isabel Santos uma conferência sobre o tema, com o título «O ambiente católico e o nascimento do Serviço Social». Note-se que o
Instituto de Serviço Social de Lisboa havia sido presidido pelo Pe.
Honorato Rosa e que este, durante o seu mandato, não só se manifesta contra as
posições do Governo relativamente à ida de Paulo VI a Fátima (cfr. NEGREIROS,
Maria Augusta Geraldes – Serviço Social,
uma profissão em movimento. A
dinâmica académico-profissional no Portugal pós-74. policop. São Paulo: s.n.,
1999, p. 91) como proíbe que as alunas de serviço social façam estágio no
Movimento Nacional Feminino: cfr. BRANCO, Francisco – A construção do
conhecimento do Serviço Social em Portugal na década de 60. Estudos e Pesquisas. 3 (1992), p. 68.
Uma eloquente prova do «progressismo» dos assistentes sociais é a nota
informativa que, em 12-II-1973, os assistentes do SAS [Serviço de Acção
Social], Maria Odete Fabião e Jaime Cortesão elaboram, relativamente ao
Relatório de 1971/72 da JNACISJF [Junta Nacional da Associação Católica
Internacional ao Serviço da Juventude Feminina], onde se afirma, entre o mais,
que «o conceito de rebeldia é relativo», se qualifica de «bafienta» a actuação
da Junta e se refere que apenas a Direcção de Lisboa se destacava entre a «pobreza
geral», por ser a «mais arejada», «com horizontes um pouco mais largos».
Afirma-se nessa nota: «Não duvidamos da bondade e justeza de intenções que
anima a ACISJF, duvidamos sim da eficiência dos meios e do carácter positivo
dos resultados efectivamente obtidos. Nota-se que as diversas direcções estão
convencidas de estar fazendo o seu melhor; mas estarão por alguma forma ao
serviço da juventude feminina tal como seria de desejar? Não nos parece. Se
após tantas reuniões de estudo sobre problemas inerentes à juventude ou que a
ela dizem respeito tudo quanto há a fazer é expulsar o elemento rebelde,
permitimo-nos duvidar da eficiência dos resultados de tais reuniões. Mesmo
concordando ser o problema complexo. Convirá, pois, alertar as Direcções e a de
Leiria em particular de que a expulsão além de não representar solução, só adia
o problema, não abona dada em favor da obra e da acção. O conceito de rebeldia
é, porém, relativo e se bem nos parece dada a orientação seguida pela ACISJF,
não será difícil a esta catalogar qualquer pessoa como elemento rebelde ou
indesejável. Terá a ACISJF medo de enfrentar a realidade do momento que passa?
Do relatório ressalta uma actuação bafienta, desgarrada da realidade, a latere
da vida de hoje, que não se compadece com tabus. Assim, tal educação, terá
forçosamente de provocar reacção por parte dos espíritos que esperariam outra
coisa. Dentre a pobreza geral a Direcção mais arejada, com horizontes um pouco
mais largos, é, sem dúvida, a de Lisboa. Porque repugna à Direcção de Lamego
formar uma república? Tal facto evidencia bem o espírito que preside à Direcção
da obra. Parece-nos haver um longo caminho a percorrer e não creio que seja
suficiente o recurso à “ajuda Divina e a esperança no auxílio que daí
provenha”!... 2/2/73 Maria Odete Fabião e Jaime Cortesão». O director do SAS,
Heitor Salgueiro, exara, nesse mesmo dia, um despacho eivado de ironia: «Vejo com prazer que a Dr.ª Maria Odete e o
Dr. Cortesão são contra os bafios e os tabus. À Dr.ª Maria do Rosário, para
breve nota. 12-Fevereiro-1973. Heitor Salgueiro». Rosário Sande elabora uma
nota que vai totalmente ao encontro da informação dos técnicos: «1) – Concordo
em absoluto com a informação da Dr.ª Maria Odete e Dr. Jaime Cortesão. 2) – O
relatório da JNACISJF revela inequivocamente quanto de desfasados e perniciosos
são os métodos utilizados por associações desta índole. 3) – Desde a
melhoria das refeições no dia da casa” à mentalidade (moderna) de algumas
raparigas que as torna desobedientes e difíceis e à consequente expulsão até ao
pedido de protecção e auxílio divino, tudo é extremamente significativo neste
relatório. 4 – Resta-me comentar a
existência de iniciativas e de actuações como sejam as desta JNACISJF e esperar
confiada numa remodelação eficaz e à altura das exigências actuais. 26-2-73. a)
Rosário P. Sande». O director elabora um despacho final, de novo muito irónico:
«Amen. Arquive-se. 26-Fevereiro-1973. Heitor Salgueiro»: in Instituto dos
Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, Arquivo do Ministério do Ministério do
Trabalho e Solidariedade, Serviços de Acção Social, Cx. 75. A
importância destes núcleos é confirmada num testemunho oral de um professor: «... havia um movimento muito interessante
na Assistência ligado aos institutos da Direcção Geral de Saúde e Assistência.
Pessoas muito interessantes, muito vivas, muito inovadoras, faziam coisas
espantosas... que, depois veio rebentar na capela do Rato e nos movimentos
contra o colonialismo... mas saía dali, daquelas pessoas que eram espantosas»:
cfr. GONZÁLEZ, Pedro Francisco – El Movimiento de la Escuela Moderna Portuguesa. policop.
Salamanca: Universidad de Salamanca-Facultad de Educación, 1999, p. 271.
(11) Entrevista a Zulmira Marinho Antunes, em 14 de Julho de
2010.
(12) Entrevista a Maria da Conceição Moita, em 15 de Janeiro
de 2007.
(13) Cfr. a interessante análise do percurso de Francisco
Lino Neto feita precisamente à luz da ideia de «consciência»: cfr. REVEZ, Jorge
– Francisco Lino Neto (1918-1997): um percurso pelo catolicismo «consciente».
policop. Lisboa: s.d., mas 2009 [comunicação nas «Jornadas de Estudo Crentes e
Políticos: protagonistas sócio-políticos na sociedade portuguesa
contemporânea», Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 9-V-2009].
(14) «1 –
Reunidos para celebrar e anunciar, mais uma vez, a Ressurreição de Jesus
Cristo, sentimos fortalecida a nossa Fé e a nossa Esperança no Homem, capaz de
ser livre e fraterno, capaz de dominar o mundo e aproveitar das suas
potencialidades, capaz de inventar novas formas de viver em justiça, liberdade
e paz. 2 – É com esta atitude de
fé e de esperança que olhamos para a sociedade em que vivemos. Reconhecemos que
nela existem situações de injustiça, violência e opressão contra as quais
estamos dispostos a lutar. Reconhecemos que existem mecanismos e forças que
impedem a participação de direito e de facto, de todos os cidadãos na escolha e
na construção da sociedade em que querem viver. Vemos nestes mecanismos e
forças, razões de imobilismo e estagnação do povo, e indirectamente, factores
que perpetuam situações de opressão e injustiça, que cremos, ser nosso dever
denunciar e ultrapassar. 3 –
Sabemos que não estamos sós. Sentimo-nos unidos a todos aqueles que,
acreditando no homem e aspirando à justiça, à unidade e à paz, se empenham num
esforço sincero na luta por um mundo mais humano. Connosco estão também os mais
pobres, aqueles cuja voz é fraca, mas que têm por si a força da razão e de se
verem injustamente oprimidos. 4
– Não queremos viver esta Páscoa, sem nos interrogarmos, séria e criticamente,
acerca da Igreja de que fazemos parte e da sociedade em que vivemos. Dos erros
de uma e de outra nos sentimos solidários e cúmplices na medida em que não
tivermos agido até aos limites das nossas próprias forças. 5 – Em relação à sociedade portuguesa,
queremos participar na criação de condições para uma transformação profunda,
que torne possível a curto prazo: a) assegurar a todos os homens iguais
oportunidades de acesso ao progresso material, à saúde, à educação e cultura, à
habitação, à justiça e à segurança social; b) garantir a participação concreta
de todos os portugueses no processo de desenvolvimento, na gestão económica e
na organização da sociedade; c) colocar no governo das instituições ou na
gestão dos serviços os mais capazes, de pôr termo imediato às situações de
privilégio baseadas no dinheiro, no nome ou nas conveniências políticas de
circunstância; d) fazer existir uma Imprensa livre e responsável, devidamente
defendida dos abusos do poder económico ou de grupos políticos; e) permitir o
acesso de todos à cultura e à sua expressão livre postas ao serviço dos homens
e não dos sistemas; f) tornar viável um tipo de Universidade sintonizada com as
aspirações e necessidades do povo e capaz de se pôr ao seu serviço; g) fazer
surgir uma nova ordem de organização económica orientada para a satisfação das
necessidades individuais e colectivas e para o bem-estar efectivo do povo; h)
eliminar as actuais desigualdades na repartição do rendimento; i) promover o
exercício do direito das liberdades cívicas fundamentais, designadamente a de
associação; j) pôr termo à guerra, procurando activamente soluções que,
rapidamente, façam a paz. 6 –
Quanto à Igreja, em Portugal, hoje, as nossas aspirações vão ao encontro do
movimento de renovação, cujos frutos são já visíveis em outras comunidades e
que, por isso, constituem reforço para a nossa própria esperança e
empenhamento. Queremos construir uma Igreja que cada vez mais se mostre aberta
ao Espírito, atenta aos sinais dos tempos e pronta a implementar, aqui e agora,
em palavras e gestos, a Boa-Nova do Evangelho. Queremos construir uma Igreja –
tal como Cristo a desejou – companheira de todos os homens, sintonizada com as
suas angústias e aspirações, especialmente atenta aos pobres e oprimidos e
desvinculada de quaisquer compromissos com o poder económico e político. Queremos
construir uma Igreja centro de unidade e comunhão de quantos se empenham na
aventura de libertar o homem das amarras de injustiça e opressão. Queremos
construir uma Igreja, comunidade dos crentes e expressão inteligível da fé em
Jesus Cristo. Aquele para quem a libertação dos homens não foi apenas promessa
ou intenção vaga, mas experiência pessoal de empenhamento levado às ultimas
consequências. 7 – É este o nosso
sentir na Páscoa de 1972. Explicitá-lo constitui, para nós, um gesto ditado por
um imperativo forte de consciência e é parte integrante de um projecto de
conversão pessoal e comunitária ao Evangelho»: in www.noticiasdaamadora.com.pt
(15) Cfr. a mensagem de Paulo VI para o «Dia da Paz» de
1-I-1971: cfr. COMISSÃO NACIONAL JUSTIÇA E PAZ - Caminhos da Paz. No 25º aniversário da Primeira Mensagem para o Dia
Mundial da Paz. Lisboa:
Rei dos Livros, 1992, p.
49. Os teóricos moralistas da altura diziam, por ex.: «a desordem é profunda.
Atinge os jovens, ávidos de mudança, tanto quanto os mais velhos, que se tornam
perplexos ante os acontecimentos»: cfr. COSTE, René – Moral para uma Sociedade que se Transforma. Trad. brasileira. São
Paulo: Edições Paulinas, 1976, p. 15 [a edição original francesa é de 1969].
(16) Para um breve apontamento, cfr. MARQUES, Guiomar Belo - Chuvas diluvianas na Grande Lisboa.
In Os Anos de Salazar. Vol. 23 – 1967 – Ballet rose. Dir. de António
Simões do Paço. s.l.: Centro Editor PDA, 2008, pp. 40ss. Cfr. ainda
http://www.cm-odivelas.pt/CamaraMunicipal/ServicosEquipamentos/ProteccaoCivil/Cheias1967.htm
. É curioso um poema publicado na Internet, da autoria de «São», intitulado
«Pavana (para as vítimas de 1967)»: Água, pedras, lamas; / Gritos,
prantos e suspiros. / / Pessoas mortas, arrastadas; / Corpos perdidos no vazio.
// E os poderes ausentes... / E a Igreja longe... / Ah! Mas veio a polícia... /
Veio a polícia / Com quem quis receber / O pagamento devido /Por um tecto já
perdido! // Vieram também / As caridosas damas / Com uma lata de sardinhas
/Para as cinco crianças / De uma família! // E só estudantes... // E só
estudantes sujaram / As mãos na água e na lama / Fazendo a sementeira / Dos
cravos de Abril!!»: in http://saobanza.blogspot.com
(17) «a) Em que medida somos culpados da existência à nossa
volta de habitações tão frágeis como as que provocaram a morte de tantos
pobres? b) Como poderemos contribuir para que não sejam construídas habitações
que permitam a repetição de trágicas situações como as actuais? c) Que
poderemos fazer para resolver o problema dos desempregados, dos que ficaram
privados dos seus bens e sem qualquer amparo familiar? d) Como encarar as
manifestações de solidariedade internacional para atender a dificuldades que
sabemos não poderem ser resolvidas, de forma adequada, pelos nossos próprios
meios? e) Como preparar e viver um Natal Cristão, verdadeira encarnação, em
1967, d’Aquele que nasceu numa barraca, pobre, ao frio e sem roupas? Como seres
livres e responsáveis, chamados, sem qualquer discriminação, a colaborar,
solidariamente com todos os outros homens, na construção dum mondo novo, mais
justo e humano, o que vai ser para nós o próximo Advento e Natal?»: in Centro
de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, Pasta Igreja
Católica/Estruturas/Acção Católica.
(18) «A propósito… dos temporais na Região de Lisboa. Todos
os jornais o noticiaram. A televisão, a rádio fizeram comentários. Foram feitos
apelos. Houve entrevistas. Dolorosas pelo sofrimento que revelavam. A opinião
pública do país e do estrangeiro agitou-se. Houve campanhas de solidariedade.
Quem poderia ficar indiferente perante os milhares de desempregados, perante
aquelas quinhentas pessoas que morreram, perante os milhares que ficaram sem lar,
sem nada a não ser as poucas roupas que tinham vestidas!!! Agitou-se a opinião
pública. “Os temporais são sempre uma calamidade, são horríveis”. “Até parecia
o fim do mundo”. Serão apenas os temporais a causa de tudo o que sucedeu na
noite de 25 para 26 de Novembro? Não sei se esta interrogação se levantou no
teu espírito, no entanto, ela pôs-se a muitas pessoas. Ela pôs-se a mim também.
Vivo exactamente num bairro dos que foram mais assolados pelos temporais. O
maior número de mortos e desaparecidos registou-se perto da minha casa. No
entanto, a mim nada me sucedeu. Porquê? Aos vizinhos da minha rua e das ruas
mais próximas nada sucedeu. Porquê? Quem morreu, então, se viviam perto de mim?
Morreram e desapareceram (na grande maioria) aqueles que não tinham casa. Poderá
chamar-se casa a uma pequena barraca feita de madeira (muitas vezes já velha)
onde vivem amontoados pais, sogros, filhos? Poderá chamar-se casa àquela
pequena construção de pedra e cal que com um temporal mais forte cai por terra
como as casas feitas por mãos de criança? Morreram e desapareceram os mais
pobres entre os mais pobres!!! Uma onda de solidariedade invade todo o país.
Dá-se o que se tem… e em muitos casos, o que faz falta, como eu vi no meu
bairro. Aqueles que quase nada têm foram os primeiros a correr numa atitude de
solidariedade para com os outros que nessa altura eram ainda mais pobres. Eu
também fui, mas dentro de mim a inquietação continua. Bastará ter agora uma
atitude de solidariedade? Bastará procurar agora dar alimentação, roupas e
alojamento àqueles que ficaram sem nada? E os outros milhares por esse país
fora que vivem em condições semelhantes, embora desta vez não tenham sido
martirizados pelos temporais? Não terão todos os homens direito a um lar, a
condições de vida que respeitem a sua dignidade? Solidariedade nesta hora? Sim!
Mas muito mais do que isso, que estes temporais, com todas as suas graves
consequências, sejam um grito de alerta em todas as consciências. Não basta a
solidariedade nas horas de dor. É preciso que ela exista em todos os momentos
ao serviço duma Justiça que abranja todos os homens. É preciso que ela
continue, em mim, em ti, em todos os que nos rodeiam, para em conjunto
procurarmos lutar para que cada homem seja respeitado e possua condições de vida,
de alojamento, de alimentação, de trabalho, plenamente justas. Que poderás
fazer como construtora dum mundo em que a Justiça não seja apenas uma palavra,
mas ACTOS?»: cfr. Vida e Alegria,
Dezembro de 1967.
(19) Há quem aponte números mais elevados, de cerca de 700
mortos, a que acresceram 1.100 desalojados: cfr., por ex., CATULO, Kátia –
Nunca choveu tanto como em 67. Diário de
Notícias, de 25-XI-2007. Em contrapartida, as autoridades preferiam situar
os óbitos em cerca de 250. Na altura, os jornais falaram em 422 mortos: cfr.
CARDINA, Miguel – As cheias de 1967. In ppresente.wordpress.com.
(20) Entrevista a António Janela, em 13 de Maio de 2007.
(21) Entrevista a Armindo Garcia, em 14 de Março de 2009.
(22) Cfr. COELHO, Mário Brochado – Confronto. Memória de uma cooperativa cultural. Porto, 1966-1972.
Porto: Edições Afrontamento, 2010, p. 72, que dá nota também de um projecto de
colóquio sobre a habitação (pp. 99-100).
(23) Cfr. MESQUITA, João - Uma crise estudantil quase
desconhecida. In AA.VV. - Os Anos de
Salazar. cit., Vol. 21, pp. 82ss; BERNARDO, João - Universidade de Lisboa, 1965. In
AA.VV. - Os Anos de Salazar. cit., Vol. 21, pp.
88ss. É interessante a documentação existente no Biblioteca-Museu República e
Resistência, BMRR/Cidade Universitária, Pasta 19, Estudantes - 1965-1968. Sobre a importância das
cheias de 1967 como «evento imprevisto e incontrolável» que serve de ponto de
partida para a construção de uma ideia de «voluntariado social como ameaça
política», cfr. a análise de ACCORNERO, Guya – Efervescência Estudantil. Estudantes, acção contenciosa e processo
político no final do Estado Novo (1956-1974). policop. Lisboa: Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2009, pp. 103ss. Cfr. ainda
ACCORNERO, Guya – Revolucionários antes da revolução: o movimento estudantil
português nos anos do marcelismo. Comunicação ao colóquio «Estado, Protesto
Popular e Movimentos Sociais no Portugal Contemporâneo» (Universidade Nova de
Lisboa-Instituto de História Contemporânea, Junho de 2011).
(24) Cfr. o depoimento de
Cecília Supico Pinto in A Guerra de
África, 1961-1974. Dir. de José Freire Antunes. Vol. 1. Lisboa: Círculo de
Leitores, 1995, p. 430.
(25) Cfr. PIMENTEL, Irene Flunser - A
Polícia Internacional de Defesa do Estado. Direcção Geral de Segurança
(PIDE/DGS), 1945-1974. História da polícia política do Estado Novo.
policop. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2006 [tb. publicado em livro:
PIMENTEL, Irene Flunser - História da
PIDE. Lisboa: Temas e Debates, 2007], pp. 323-324. SANTO, Sílvia Espírito – Cecília Supico Pinto. O rosto do Movimento
Nacional Feminino. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2008, pp. 158ss. Em entrevista
ao Expresso/Única, de 16-II-2008,
Cecília Supico Pinto afirma conhecer a vigilância que sobre ela a PIDE exercia:
«eu sabia, percebia que me estavam a ouvir e a seguir». Para uma sinopse sobre
a acção do Movimento Nacional Feminino, cfr. SANTO, Sílvia Espírito - O MNF na retaguarda da guerra
colonial. In Os Anos de Salazar. Vol.
18, cit., pp. 127ss.
(26) Cfr. OLIVEIRA, Maria Luísa Brandão Tiago de – O Serviço Cívico Estudantil (1974-1977).
Estudantes e povo numa conjuntura revolucionária. policop. Lisboa:
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, 2000, pp. 162ss [tb.
publicado em livro: OLIVEIRA, Luísa Tiago de – Estudantes e Povo na Revolução (1974-1977). O serviço cívico estudantil.
Oeiras: Celta, 2004].
(27) Cfr. GRAÇA, Júlio – Operários
falam. O trabalho e a vida. Lisboa: Iniciativas Editorais, 1973, p. 169.
(28) Cfr. MARQUES, Guiomar Belo - A Serra de Sintra devorada pelas
chamas. In Os Anos de Salazar. Vol.
22 – 1966, cit., pp. 115ss.
(29) «CIRCULAR Nº 3. Assim como foram urgentes as informações
e os pedidos que te fizemos no decorrer da campanha de auxílio aos sinistrados,
também agora é importante informar-te do fecho do CCAJ (Centro de Coordenação
da Acção Juvenil de Auxílio aos Sinistrados) e das suas implicações. O CCAJ
nasceu, serviu e acabou. Mas continuam as necessidades das camadas sociais que
vivem permanentemente em precárias condições humanas. É DE TUDO ISTO QUE VEM
FALAR ESTA CIRCULAR: Como nasceu o CCAJ. Na
noite de 25 para 26 desabou sobre Lisboa e arredores uma violenta chuvada que,
caindo sobre áreas bastante populosas, algumas com deficientes condições
habitacionais e de escoamento de águas, causou elevados prejuízos materiais e
humanos. Perante a amplitude do desastre e a não suficiência de auxílio a essas
populações, cedo despertou nos estudantes liceais, a necessidade de concretizar
a sua solidariedade para com os atingidos. Na noite de domingo 26, num clima de
completa espontaneidade, um pequeno grupo de colegas reuniu-se na Martens
Ferrão e tentou, com a colaboração de responsáveis de liceus, organizar o nosso
auxílio às áreas sinistradas, começando por elaborar a circular que recebeste e
que apelava para a tua presença activa. (Foi o “É urgente” Nº 1, que marcou o
início do CCAJ). A partir daí foram surgindo progressivamente os serviços
necessários ao andamento da campanha. Entretanto, tendo essa circular sido
publicada por vários jornais de Lisboa, surgiram de muitos particulares
múltiplas ofertas que se vieram juntar às nossas. O que se fez. Pelas características inerentes aos diversos modos de
auxílio, foi surgindo naturalmente uma distinção entre os seguintes sectores:
1. O dos donativos: Nas escolas, a solidariedade dos alunos e das respectivas
famílias, provocou uma avalanche de donativos de ordem vária (roupas, géneros,
dinheiro e outros). A estas vieram juntar-se inúmeras ofertas de particulares. Face
a esta afluência, foram organizados diversos serviços que mobilizaram de um
modo permanente a acção de diversos colegas: recolhas, armazenamento (selecção
e acondicionamento) e distribuição. Para dar uma ideia da quantidade de roupas,
calçado, géneros e mobílias recolhidas, basta assinalar que foi suficiente para
mobilizar diariamente duas garagens particulares e duas camionetas afectas à
recolha e distribuição. A nossa distribuição de donativos nas localidades foi
directamente feita aos serviços que aí dirigiam a acção assistencial, devido à
nossa impossibilidade, em parte por falta de dados concretos, de proceder a uma
justa avaliação das necessidades individuais. Dinheiro. As contas falam: Serviços.
Transportes de coisas e pessoas 15 047$50. Alimentação de trabalhadores 3 951$40. Vários 721$70 [Total] 19 720$60. Donativos. Em géneros
comprados 54 524$40. Em dinheiro 64
000$00. [Total] 138 245$00. Os donativos
em dinheiro foram distribuídos nos seguintes locais: Carregado, Campolide,
Odivelas, Ulmeira, Alhandra e Alenquer. 2. O do trabalho de campo: Foi este
sector especialmente representativo de uma solidariedade, de um sentido de
responsabilidade e consciência humana, mais activos e foi o que permitiu, a nós
estudantes, um maior contacto com as populações atingidas. Para que este
serviço tivesse a eficiência necessária organizaram-se equipas de prospecção, que diariamente dados concretos sobre os
locais de trabalho e a estruturação e modo de funcionamento dos organismos de
emergência, facultando assim os elementos para uma planificação. A partir desta
planificação efectuaram-se os trabalhos de campo, que ocuparam uma média diária
de cerca de quatrocentos estudantes (máximo mil, mínimo cem) dos diversos
liceus, institutos, colégios, escolas técnicas e comerciais de Lisboa. Como,
para o transporte das equipas de trabalho,
só encontrámos a colaboração de alguns particulares, tivemos de alugar diariamente
várias camionetas. Quanto às ferramentas (pás, picaretas, sachos, etc.) também,
na sua maior parte, se deveram ao espírito de cooperação de particulares. Ainda
no que diz respeito às brigadas de trabalho, faz-se notar a consciencialização que
se operou na malta enviada: - do que representava a sua presença
para os sinistrados; - da forma de que se devia revestir o seu
comportamento, de modo a realçar que era realmente de solidariedade activa que
se tratava, e não de um pretexto para fugir à rotina das aulas. E dentro deste
espírito actuaram os nossos grupos de trabalho em Algés, Alcântara, Campolide,
Urmeira, Odivelas, Olival Basto, Cacém, Loures, Póvoa de Santo Adrião, Bucelas,
Refugidos, Cadafais, Fanhões, Alenquer, Calhandriz, Santana de Carnota,
Sacavém, Quintas, Vila Franca de Xira, S. Julião do Tojal, Vila d’Aires. Procurou
assegurar-se aos voluntários do trabalho de campo, a manutenção de um serviço
de apoio alimentar que, deslocando-se
aos locais de trabalho, distribuía pães, bananas e leite – este oferecido pela
UCAL. Contactos. Para garantir o
nosso trabalho foi-nos imprescindível entrar em contacto com diversas autoridades…
▪ Governamentais. Contactámos com
diversos ministérios, a fim de conseguirmos facilidades na obtenção de
transportes e ferramentas que deles esperávamos, o que, de facto, não
aconteceu. Exceptuou-se o acordo do Ministro da Educação Nacional, quando
abordado particularmente, de retirar as faltas dadas pelos alunos que
trabalharam no auxílio aos sinistrados, caso devido a elas viessem a perder o
ano. ▪ Liceais. A este nível, a
colaboração foi maior, tendo a nossa campanha sido autorizada por todos os
reitores e apoiada, de um modo especial, por alguns. ▪ Autarquias e Entidades encarregadas dos Serviços Assistenciais nas
Localidades. Estas manifestaram um grande espírito de cooperação e
compreensão da nossa vontade de colaborar. Efectivamente, não só louvaram o
nosso trabalho, como se mostraram assaz satisfeitas por poderem contar com um
acréscimo de mão-de-obra. ▪ As Populações
sinistradas, de um modo geral, receberam o nosso auxílio, como de supor, de
braços abertos. FECHO. Até aqui,
colegas, temos vindo a expor como se processou a actuação do CCAJ. Passamos
agora a tratar das razões que motivaram o seu encerramento. 1º) A consciência
das necessidades de estudo e vida familiar, que foram afectadas por doze dias
de trabalho intensivo, e, simultaneamente, sensível diminuição do trabalho de
emergência e dos pedidos de mão-de-obra; 2º) e decisivamente, a entrada em
campo da organização MP (chamando a si a recolha de donativos e a organização
de brigadas de campo) e a nossa decisão de não entrarmos, de modo organizado,
em colaboração ou competição com tal entidade, por isso não corresponder à
vontade e consciência de grande número de estudantes. Observação. O CCAJ lamenta que a organização de auxílio de
emergência montada pela MP, tenha começado tão tarde e tido duração tão
escassa. NOTA FINAL. Ao terminar a sua missão, resta ao CCAJ exprimir o desejo
de que a experiência e consciência ganhas nestes quinze dias de trabalho sirvam
para que melhor aproveitemos a nossa disponibilidade de estudantes, na
solidariedade para com as populações que vivam permanentemente em precárias
condições humanas; e de que se procure dar a essa disponibilidade
características de estruturação e organização que, se podem compreensivelmente
faltar num trabalho de emergência, não podem deixar de existir num trabalho a
longo prazo, sob pena de comprometer gravemente a sua viabilidade».
(30) Cfr. o depoimento de João Bernardo in ANDRINGA, Diana – Geração de 60, RTP, 1989, 3º episódio.
(31) Sobre o papel dos estudantes de Coimbra, cfr. CODINHA,
Miguel Gonçalo Cardina – A Politização do
Meio Estudantil Coimbrão durante o Marcelismo. policop: Coimbra, Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra, 2005 [tb. publicado em livro: CARDINA,
Miguel - A Tradição da Contestação. Resistência
estudantil em Coimbra no marcelismo. Coimbra: Angelus Novus, Editora, 2008],
pp. 46ss.
(32) Cfr. DUARTE, Marta – Foi
Apenas um Começo. A crise académica de 1969 na história do movimento estudantil
dos anos sessenta e da luta contra o Estado Novo. policop. Lisboa:
Universidade Nova de Lisboa, 1997, p. 173.
(33) Cfr. o depoimento de Conceição Monteiro in AA.VV. – Mulheres Políticas – As suas causas. Dir.
de Ana Maria Bettencourt e Maria Margarida Silva Pereira. Lisboa: Quetzal
Editores, 1995, pp. 192-193. Noutro depoimento, refere que «morreram vinte e
quatro vizinhos meus e a minha casa ficou destruída». Conceição Monteiro vivia
na quinta da sogra, onde tinha casa, juntamente com o seu cunhado, Luís Sttau
Monteiro: «na altura das cheias, a minha casa foi completamente destruída e,
então, vim viver para Lisboa e continuei a militar na Acção Católica e na Conferência
São Vicente de Paula, e a ajudar ainda a Cruz Vermelha. Na verdade, na época
tinha várias vertentes de voluntariado, pois ainda trabalhei também em
Alcoitão. De facto, não gostava de passar o dia “de papo para o ar” e, como
financeiramente não precisava de trabalhar, sempre me causou horror a ideia de
alguém ocupar indevidamente o emprego de alguém que precisava de trabalhar.
Sempre tive essa preocupação de justiça social, uma coisa de família que vem
desde a minha educação […]. Como não tinha necessidade de trabalhar, sentia que
tinha uma espécie de dever para com a sociedade, devolvendo o meu tempo através
do voluntariado. Já na época que vivi em Loures, apesar de ser apenas a sete
quilómetros de Lisboa, conheci imensos vizinhos que nunca tinham vindo à
capital, por mais incrível que isto possa parecer. E foi junto dessas pessoas
mais carenciadas que viviam ali, em redor da Quinta, que eu me senti mais
gratificada com aquilo que estava a fazer, ou seja, sentia-me francamente útil.
Depois, quando vim para Lisboa, a vida já era um bocadinho diferente, já não
era exactamente a mesma coisa. Embora tenha continuado a fazer voluntariado,
dediquei-me um bocadinho mais à família e aproveitei também para fazer um curso
no Patriarcado de Lisboa de Doutrina e Teologia, que me deu bases muito
importantes de Sagrada Escritura, de Teologia, de Liturgia… E senti-me com
muito mais fé, com outra maturidade e outra maneira até de ver algumas coisas,
a vida, a própria catequese…»: cfr. AIDO, Paulo – A Confidente de Sá Carneiro. As memórias políticas e pessoais de
Conceição Monteiro, secretária do mítico líder do PSD. Lisboa: Zebra
Publicações, 2010, pp. 19-20.
(34) Além dos arquivos do antigo Ministério do Interior, é
interessante a documentação existente in Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre
do Tombo, Arquivo da Presidência do Conselho de Ministros, PCOS/MC, PRC
14/C-17-4, UI 180.
(35) Importa reconhecer que as instituições da Previdência
não deixariam de actuar, e de forma empenhada, no apoio aos sobreviventes. Assim,
um extenso relatório intitulado «Actuação das Instituições de Previdência para
Auxílio às vítimas das inundações de 25 Nov. 67», elaborado em Março de 1968 no
âmbito do Ministério das Corporações e Previdência Social, dá conta de que, até
essa data, se havia procedido ao realojamento de 1.500 pessoas: in Instituto
dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, PCM/MC, NT 915.
(36) Cfr. SEABRA, Zita - Foi
Assim. Lisboa: Alêtheia Editores, 2007, p. 61.
(37) Cfr. JL – Jornal
de Letras, Artes e Ideias, de 1-III-1995.
(38) In ANDRINGA, Diana – Geração de 60, RTP, 1989, 3º
episódio. Referiu ainda Mariano Gago: «com as cheias de 1967 e com a participação na movimentação dos
estudantes de Lisboa no apoio às populações (morreram centenas de pessoas na
área de Lisboa e isso era proibido dizer-se). Só as Associações de Estudantes e
a Juventude Universitária Católica é que estavam no terreno a ajudar as pessoas
a tirar a lama, a salvar-lhes os pertences, juntamente com alguns raros corpos
de bombeiros e militares. Talvez isso, tenha sido um dos primeiros momentos de
mobilização política da minha geração»:
In
http://w3.ualg.pt/~jdias/GEOLAMB/GAn_Casos/Lisboa1967/GA35sup1967_CheiasLisboa.html
(39) Cfr. HENRIQUE, Teresa e RAMALHO, Miguel Nunes – As
Eleições de 1958. Humberto Delgado na Campanha do Norte (Chaves, Vila Real,
Lamego, Castro Daire e Viseu). Lisboa: Prefácio, 2008, p. 20.
(40) Cfr. THOMAZ, Américo – Últimas décadas de Portugal. Vol. 3. Lisboa: Fernando
Pereira-Editor, s.d., p. 257.
(41) In ANDRINGA, Diana – Geração
de 60, RTP, 1989, 3º episódio.
(42) Cfr. WEMANS, Jorge – Os «miúdos» nas cheias. Pública, de 23-XI-1997, p. 56.
(43) Cfr. Pública,
de 23-XI-1997, p. 41.
(44) Cfr. Pública,
de 23-XI-1997, p. 47.
(45) Cfr. Pública,
de 23-XI-1997, p. 48.
(46) Cfr. ALVIM, Pedro - Os mortos e os fósforos. In AA.VV. - O
Homem na Cidade. Crónicas. Lisboa: Prelo Editora, 1968, pp. 3-5.
(47) Cfr. MELO, António – Cheias. A censura não aguentou. Pública, de 23-XI-1997, pp. 50ss.
(48) Cfr. Solidariedade
Estudantil, nº 2, editado pelo SCIP - Secretariado Coordenador de
Informação e Propaganda, in Biblioteca-Museu República e Resistência,
BMRR/Grandella, Pasta Movimento Estudantil. Jornais e boletins - 1965/1974.
(49) Cfr. PRÍNCIPE, César – Os Segredos da
Censura. 3ª
ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1994, pp. 34-35. Note-se que a Censura sempre se
preocupou com a divulgação de notícias reveladoras da pobreza. Assim, por
exemplo, o relato de um caso de mendicidade no Rossio é severamente amputado:
cfr. República, Prova de Censura de 8-VIII-1967,
in CALDEIRA, Alfredo (coord.) – República
Censurada. Lisboa: Fundação Mário Soares, 2003 [CD-ROM].
(50) A 19 de Dezembro de 1967, o Ministro do Interior
agradecerá, através de um diplomata cuja identidade não foi possível
determinar, o apoio dado por Dom Duarte Nuno. É o seguinte o teor dessa
missiva: «Tendo recebido a carta de V.Exa. de 12 do corrente, em que, em nome
do Senhor Dom Duarte e no de V.Exa., apresentava ao Ministro do Interior e ao
Governo profundo pesar pela calamidade que assolou Lisboa e alguns dos seus
concelhos vizinhos na noite de 25 para 26 do passado mês de Novembro, levando a
morte e o sofrimento a tantos portugueses e produzindo danos materiais e morais
incalculáveis, venho agradecer a V.Exa. e rogar-lhe transmita ao Senhor Dom
Duarte os meus cumprimentos e o profundo agradecimento do Governo pelos nobres
sentimentos expressos e transmitidos na carta de V.Exa. Peço ainda a V.Exa. se
digne transmitir ao Senhor Dom Duarte o apreço do Governo pela oferta, tão
cheia de significado moral, à Cruz Vermelha Portuguesa e a favor das vítimas
das inundações, da lembrança comemorativa das Bodas de Prata do seu casamento,
que há meses havia sido oferecida por uma Comissão constituída para o efeito. A
entrega dessa preciosa lembrança, bem como a recolha de donativos para o mesmo
fim, dão bem a medida das excelsas virtudes que ornam o espírito e o coração do
Senhor Dom Duarte Nuno a quem esta provação que tão duramente afectou a vida e
os haveres de muitos portugueses, deu ensejo de mostrar o seu carinho e desvelo
por todos os que sofreram. Queira, Senhor Embaixador, transmitir ao Senhor Dom
Duarte Nuno, além dos meus agradecimentos, os meus respeitosos cumprimentos.
Aproveito a oportunidade para apresentar a V.Exa. muitos distintos cumprimentos»:
in Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Arquivo da PIDE/DGS –
Serviços Centrais, Processo nº 219, CI (1), UI 1177/1178, Ministério do
Interior.
(51) In
http://ppresente.wordpress.com/2007/11/26/as-cheias-de-1967/
(52) Cfr. DUARTE, Marta – Foi
Apenas um Começo…, cit., p. 173.
(53) Cfr. DUARTE, Marta – Foi
Apenas um Começo…, cit., p. 173.
(54) In ANDRINGA, Diana – Geração
de 60, RTP, 1989, 3º episódio.
(55) Cfr. Solidariedade
Estudantil, nº 2, editado pelo SCIP - Secretariado Coordenador de
Informação e Propaganda, in Biblioteca-Museu República e Resistência,
BMRR/Grandella, Pasta Movimento Estudantil. Jornais e boletins - 1965/1974.
(56) Cfr. CRISTO, Dina –
A Rádio em Portugal e o Declínio do Regime de Salazar e Caetano (1958-1974).
Coimbra: MinervaCoimbra, 2005, p. 23. Sobre este programa e o seu impacto, cfr. CARDINA, Miguel – O «canto de intervenção» no combate ao Estado Novo.
In ppresente.wordpress.com
(57) Apud OLIVEIRA,
Maria Luísa Brandão Tiago de – O Serviço
Cívico…, cit., p. 166.
(58) In ANDRINGA, Diana – Geração
de 60, RTP, 1989, 3º episódio.
(59) «[…] o marxismo de Mao-Tsé-Tung na China é uma
ideologia, ou seja, revela-se também uma prática posta em acção»: cfr. OELGART,
Bernd – Ideólogos e Ideologias da Nova
Esquerda. Trad. portuguesa. Lisboa: Editorial Presença, s.d., p. 17.
(60) Cfr. PEREIRA, José Pacheco – Sentimentos Misturados. Público (30-XI-2006).
(61) Cfr. CAMPOS, Ioli – O caos da gripe de 68. Sábado, de 13-VIII-2009, p. 90.
(62) Depoimentos no programa televisivo Depois do Adeus, RTP, 17-II-2008.
(63) A expressão é de MELO, Jorge Silva - Século Passado. Lisboa: Edições Cotovia,
2007, p. 457.
(64) Cfr. Deus o que é?
Cadernos O Tempo e o Modo. 3. Lisboa: s.n., s.d., pp. 64-65.
(65) Cfr. Deus o que
é?..., cit., p. 67.
(66) Cfr. Deus o que
é?..., cit., pp. 68-69.
(67) Cfr. SEABRA, Zita - Foi
Assim, cit., p. 40, itálico acrescentado.
(68) Cfr. Deus o que
é?..., cit., p. 70.
(69) Entrevista a Homero Silva Cardoso, em 16 de Abril de
2009.
(70) Cfr. Deus o que
é?..., cit., pp. 118-119.
(71) O tema é desenvolvido in KÜNG, Hans – O Cristianismo. Essência e história.
Trad. portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 2002, pp. 704ss.
(72) Cfr. Deus o que
é?..., cit., p. 128.
(73) A expressão é de PIMENTEL, Irene Flunser – Os estudantes
na mira do Estado Novo. In MADEIRA, João, PIMENTEL, Irene Flunser e FARINHA,
Luís – Vítimas de Salazar. Estado Novo e
violência política. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2007, p. 317, que
acrescenta: «a estrutura estudantil do PCP desabou», tendo-se iniciado uma
imensa vaga de prisões em Janeiro de 1965 (numa só noite, são presos cinquenta
jovens militantes comunistas). Cfr. ainda PIMENTEL, Irene Flunser - A
Polícia Internacional..., cit., pp. 638ss. Cfr. o depoimento de Diana Andringa
in MEDINA, Miguel – Esboços.
Antifascistas relatam as suas experiências nas prisões do fascismo. 2 Vols.
Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1999 p. 69, que refere, entre outras, as
prisões de Aguinaldo Cabral, Filipe e Fernando Rosas, e dos estudantes liceais
Manuela Louro e Joaquim Vital.
(74) Cfr. MELO, Jorge Silva - Século...,
cit., pp. 456-457.
Ena! Que extraordinária reconstrução de um tempo trágico!!!
ResponderEliminarMuito obrigado.
Onésimo
Que palavras imerecidas, caro Onésimo!
ResponderEliminarGrande abraço
António
O António brinda-nos com mais um excelente artigo relativo a um acontecimento que infelizmente vivi. Obrigada!
ResponderEliminarMaria Teresa Mónica
Eu é que agradeço as suas palavras, Teresa!
ResponderEliminarCom amizade
António
Olá
ResponderEliminarJá há muitos meses que abro diariamente este blog como se fosse a janela do meu quarto. É mesmo saudável.
Obrigada
Gracina
Muito bom! E muito útil para quem não viveu aqueles tempos. muito obrigada!
ResponderEliminarMuito era censurado mas passado 50 anos continuamos a ter censura TANCOS ?' INCENDIOS ?? Ainda não se sabe tudo
ResponderEliminar