No
contexto dos meus estudos para o Ph.D. em Português e Espanhol, na Universidade
de Wisconsin, entre o meu primeiro curso de Verão de 1966 e o ano lectivo de
1968-69, um dos meus professores de Filologia Românica, Linguística e Literatura
Brasileira foi o Dr. António Salles Filho.
Logo no início da primeira aula do curso
avançado de literatura brasileira, no Verão de 1966, o professor fez questão de
sublinhar que o nome dele era pura e simplesmente António Salles e não António
Salles Filho. É que, apenas chegado à Universidade de Wisconsin, dirigiu-se
imediatamente ao Departamento de Espanhol e Português, na Bascom Hall, e, para
surpresa sua, viu-se saudado por uma das secretárias com um “good morning, Mr.
Filho”.
Nem outra coisa era de esperar, pois, como
ele viria a compreender uns dias mais tarde, na América, em termos de
tratamento formal, o apelido é rei (apelido à portuguesa, naturalmente, não à
brasileira, pois no Brasil apelido significa alcunha). De modo que por mais que
ele tentasse explicar à secretária que o Filho ou Neto ou Sobrinho aposto ao
apelido de um brasileiro verdadeiramente não constituía apelido, para efeitos
de tratamento, chegou à conclusão que era esforço baldado. De maneira que, em
vista disso, acabou por declarar em tom maior à secretária e, nela, e por ela,
a todo o pessoal do Departamento, que o nome dele, para fins de assuntos
oficiais, era António Salles e nada mais. Ponto final. O tratamento que deviam
dar-lhe a partir desse momento era pura e simplesmente Mr. Salles. E esse
recado taxativo aplicava-se também aos alunos, naturalmente, acentuou ele, com
clareza cristalina.
Tendo
acabado de dar-nos esse esclarecimento, o Professor Salles aproveitou para nos
contar que o seu apelido de Salles era a tradução para Português do apelido dos
seus progenitores. Ao verificar que o seu avoengo, recém-chegado ao Brasil, era
de ascendência sírio-libanesa, a pessoa que lhe fez o registo civil numa cidade
do estado de Minas Gerais procurou traduzir para português o seu apelido na
língua do seu país de origem. E foi assim que sal em sírio-libanês passou para
Salles em português.
Dito isto, parece-me oportuno lembrar o
que acontecia com certa frequência: ver alunos americanos de pós-graduação em
Português, começando por dois dos meus colegas na Universidade de Wisconsin, a
referir-se, por exemplo, aos escritores Alexandre Herculano ou Herculano como
Araújo, a Camilo Castelo Branco ou Camilo como Branco e a Aquilino Ribeiro ou
Aquilino como Ribeiro e a José Lins do Rego ou Lins do Rego como Rego e a
Carlos Drummond de Andrade ou Drummond de Andrade como Andrade. E alunos houve
que chegaram a teimar com o professor ou com os colegas de origem portuguesa ou
brasileira que era assim que se devia fazer, porque essa era a praxe aplicada
para com os escritores americanos ou ingleses, os quais, normalmente, eram
tratados pelo apelido.
E por falar no carácter bizarro de
apelidos brasileiros, vou contar o que me sucedeu por ocasião da minha primeira
viagem ao Brasil, nas férias de Natal de 1975.
Fiz essa viagem na qualidade de membro da
direcção de uma associação cívica, chamada Companheiros das Américas, uma
espécie de réplica e complemento, a nível estadual, da Associação que o Governo
Federal do Presidente Kennedy criou para estreitar as relações entre os Estados
Unidos e os países da América Central e da América do Sul, chamada Aliança para
o Progresso.
Sendo o estado da Paraíba o estado-irmão
do estado de Connecticut, o meu destino foi João Pessoa, capital desse estado
nordestino. No segundo dia, após a minha chegada, o director dos Companheiros
das Américas local, o famoso médico Marco Aurélio, levou-me à residência do
Vice-Governador, para me apresentar oficialmente a ele, dada a ausência do
Governador em Brasília. E como se chamava o Vice-Governador? – Clemente
Terceiro Neto.
Perante apelido tão bizarro, a juntar a
tantos Filhos e Netos, para não falar das legiões de Juniores, e perante nomes
de pia igualmente bizarros, para mim, naturalmente, oriundo de um país,
Portugal, tão pouco dado, no capítulo de nomes e apelidos, a grandes fantasias
e invenções, nos tempos de eu menino e moço, não resisti a fazer um breve
reparo e a pedir uma espécie de explicação a um professor de filosofia da
Universidade Federal da Paraíba, de origem portuguesa, por me sentir mais à
vontade, dado o melindre da questão.
Depois da explicação veio o exemplo
concreto. Com o que quero dizer que o meu recém-amigo e patrício me contou,
entre outros, o caso seguinte. Conhecera ele um brasileiro, paraíbano por
sinal, que, no capítulo dos filhos, chegara à conclusão que já tinha atingido o
limite tolerável. De maneira que, ao aparecer inesperadamente um filho
indesejado, deu-lhe o nome de Último. Quando, passado um ano e tal, surgiu mais
um filho, ainda mais indesejado, deu-lhe o nome de Apêndice. E quando, passado
mais um ano e tal, lhe surgiu mais um filho indesejado à terceira potência,
neste caso uma menina, deu-lhe o nome de ... Fodência.
Mas voltemos ao meu saudoso Prof. António
Salles Filho, que era de tal maneira único e peculiar e genuíno e excêntrico,
que ele é mil vezes digno de mais espaço.
Dotado de uma memória prodigiosa, de uma
formação clássica, humanística, filológica e linguística e de dotes docentes
fora do vulgar, as aulas dele sobre filologia românica, sobre linguística e
também sobre literatura brasileira eram um verdadeiro espectáculo. As notas que
levava para a sala de aula colocava-as sobre a secretária e, durante as aulas,
que dava sempre de pé, andando pela sala fora, nunca punha os olhos nelas.
Sabia tudo de cor, desde as derivações e transformações e metamorfoses dos
vocábulos das línguas românicas, a partir do Grego, do Latim e do Árabe, até
aos aspectos mais sofisticados da Linguística de Ferdinand de Saussure, de
Charles Bally e de Noam Chomsky. E, mutatis
mutandis, o que se diz das suas aulas sobre a história das línguas
românicas e da linguística pode aplicar-se ao curso avançado de literatura
brasileira.
Mineiro até à medula dos ossos,
orgulhava-se de poder declarar alto e bom som, generalizando e exagerando,
naturalmente, em minha modesta opinião, que português castiço e vernáculo no
Brasil só sabiam escrevê-lo e falá-lo devidamente os mineiros. Assim, quando
chegou o dia de nos dar uma aula sobre Rachel de Queiroz, o
Professor Salles passou o tempo a demonstrar-nos a nós, presentes e futuros
professores de Português em escolas americanas, sobretudo a nível
universitário, que o famoso livro de texto para principiantes, intitulado Modern Portuguese, que o Prof. Fred
Ellison, da Universidade de Texas, em Austin, estava a elaborar com a
colaboração de Rachel de Queiroz (Salles chamava-lhe, depreciativamente, a
Rachelzinha), era uma autêntica fraude. Que Rachel de Queiroz, de Fortaleza,
Ceará, aclamada por, com apenas vinte anos de idade, e para mais sendo mulher
em terra de machos, ter publicado em 1930 um pequeno romance chamado O Quinze, tinha sido uma péssima
escolha. Portanto, ele, António Salles, como nosso professor de Literatura
Brasileira, de História da Língua e de Linguística, sentia-se na obrigação de
prevenir-nos, provando, por meio de uma análise minuciosa e cruel, de carácter
vocabular, gramatical, sintáctico e semântico, que a Rachelzinha não sabia
escrever Português. E, dizendo isto, procedeu, sem dó nem piedade, à autópsia
demolidora da primeira página de O Quinze.
Uma das coisas que António Salles nos
disse mais de uma vez era que os mineiros eram os únicos brasileiros que ainda
estudavam grego, latim e os clássicos portugueses e que ainda cantavam as
vésperas em Latim e assistiam à missa aos domingos e dias santos de guarda, mas
que, em compensação, apanhavam grandes bebedeiras nos fins-de-semana e ficavam
de ressaca até segunda-feira. De maneira que nenhum de nós estranhou, baseado
nestas informações prévias, quando uma segunda-feira o Prof. Salles entra na
sala de aula e declara ex abrupto:
- Se eu cair durante a aula, não se
preocupem comigo: não estou doente; estou de ressaca, com a grande bebedeira
que apanhei este fim-de-semana. (Jorge de Sena, numa carta a Dante Moreira
Leite, de 25 de agosto de 1966, descreve o Salles como “muito competente e
óptimo companheiro”, e noutra carta ao mesmo destinatário, de 13 de novembro de
1966, descreve-o como “precioso colega e precioso professor” e amigo “da
farra”.)
Como professor de alunos de pós-graduação,
uma das preocupações do Prof. Salles era iniciar-nos na pesquisa e ensinar-nos
meticulosamente a fazer fichas em vista à escrita dos famigerados papers e das futuras teses de mestrado e
de doutoramento. E para isso fazia questão de nos dar uma aula individual no
seu apartamento, onde ele tinha, numa ordenação profissionalíssima, dentro de
um belo filing cabinet, milhares de
fichas relacionadas com a sua futura tese de doutoramento sobre aspectos
gramaticais, sintáticos e semânticos da Villa dos Confins de Mário Palmério. Ao
trocarmos impressões, entre nós, alunos, sobre essa aula dos seus cursos e
seminários, pudemos constatar que ele fazia questão de nos dizer sempre que já
podia ter feito a sua tese de doutoramento na Universidade de Estrasburgo, onde
fora Leitor de Português, sobre Patrística, em que era especialista, mas que
não tivera paciência para aturar a incompetência e a petulância do orientador e
que, portanto, tinha decidido mudar de tema.
Nesta ordem de ideias, pouco a pouco, vim
a concluir que a tese de doutoramento do Salles era como as obras de Santa
Engrácia, por uma razão muito comum ao comum dos espécimes da fauna académica:
a procrastinação. Nunca me esqueço de ouvir a Dona Mécia de Sena insistir com o
Salles, como se de um filho se tratasse, que acabasse de uma vez por todas com
a sua bendita tese de doutoramento: que ele já tinha mais que tempo para saber
que, sem o doutoramento, a Universidade de Wisconsin nunca lhe daria o contrato
vitalício, por mais que o admirassem e estimassem e o quisessem como professor
permanente. A este respeito, recordo de a Dona Mécia me dizer uma vez numa
carta, recebida pouco depois da ida, em 1969, da Universidade de Wisconsin para
a Universidade de Brasília, que o maroto do Salles a informara que tinha
esquecido em Madison as fichas sobre a Villa dos Confins de Mário Palmério.
Tudo desculpas sem pés nem cabeça, naturalmente, rematava a Dona Mécia, com
toda a razão.
Além dos louvores e dos louros colhidos
como professor, há mais duas facetas em que António Salles se tornou célebre
entre a minúscula comunidade luso-brasileira de Madison: a de excelente
cozinheiro e a de comediante de alto gabarito. Os dotes de cozinheiro
exibia-os, sobretudo, em duas festas: uma universal e outra exclusivamente
americana. A primeira era a festa de Natal e a segunda era a festa de
Thanksgiving ou de Acção de Graças. Ambas metiam obrigatoriamente peru, a ponto
de os luso-americanos chamarem ao Thanksgiving a Festa dos Perus. E ambas eram
celebradas em casa da família Sena, que era a mais numerosa e a mais
hospitaleira. Os perus, de tamanho descomunal, e escolhidos pelo Salles,
levavam dois dias a preparar, mas depois, quando iam para a mesa, pavoneando-se
em ricas travessas, artisticamente decoradas, sabiam a comida de anjos.
A segunda faceta do Salles – a de
comediante – consistia em requintadas celebrações litúrgicas, de cariz
católico. Antigo seminarista, alto, bem apessoado e dotado de uma estupenda voz
de tenor, António Salles continuou a viver pelos anos fora uma vida cheia de
obsessão pelas funções litúrgicas. Creio bem que os objectos de mais valor em
sua posse eram os paramentos litúrgicos para todas as estações do calendário da
igreja católica, apostólica e romana. O que significa que tinha manípulos,
estolas, túnicas, casulas e pluviários de cor branca, vermelha, verde e roxa e
sapatos pretos, de fivela dourada. E tinha, naturalmente, breviário, liber usualis, missal e ritual. Tudo em
Latim, claro está. Graças aos Céus, foi isso antes de o Concílio Vaticano II
vir a bagunçar uma liturgia secular, acabando praticamente com o uso do Latim
na santa missa e nos ofícios sagrados e permitindo que a transcendente, solene
e majestosa música do órgão pudesse ser substituída pelos sons irreverentes e
mundanais das guitarras elétricas, dos pandeiros e das pandeiretas. Ah! Ia-me
esquecendo de dizer que o Salles tinha também um hábito de monge beneditino e
um hábito de freira completo, com véu, túnica, cordão e rosário.
Dono de toda essa parafernália, o Salles
aproveitava os dias de festa celebrados em casa dos Senas para se vestir de
freira – freira altíssima -, aparentando o ar mais devoto deste mundo, a fim
de, num tom alambicado, cheio de bis bis, proferir uma breve prece, de mãos
postas e de olhos no céu, e depois fazer uma piedosa prédica a uma imaginária
comunidade de irmãs religiosas sobre os mais variados mistérios da religião
católica, apostólica e romana, abundantemente condimentados com episódios
mirabolantes, respigados nas densas páginas dos doze volumes da Flos Sactorum ou Historia das Vidas de Christo e Sua Santíssima Mãe e dos Santos e Suas
Festas pelo Padre Diogo do Rosário (Lisboa, 1869), obra que me orgulho de
possuir e de visitar com frequência.
Por vezes, para variar, pedia-me para me
associar a ele na celebração de um serviço litúrgico, pedido a que eu acedia
com a maior satisfação, dado que, tal como ele, também eu tinha recebido ordens
menores nas kalendas gregas e tinha
cantado ofícios, no meu tempo de seminário. Ambos revestidos com paramentos
roxos, pegávamos de um liber usualis
e cantávamos, num recolhimento exemplar, como se magicamente tivéssemos voltado
ao nosso tempo de seminário, cantávamos, repito, uma missa de requiem, sempre a
sublime e tremebunda missa de requiem em gregoriano ou cantochão. Seraficamente
embalados e transfigurados pela majestade do canto da ira divina, íamos às
vezes pelo meio do Dies Irae, quando Jorge de Sena, como dono de casa,
anfitrião e mordomo, dizia autoritariamente: - Salles e Cirurgião, por hoje
basta de cantochão, que estas coisas devem tomar-se em pequenas doses,
sobretudo tendo em conta a presença de tantas crianças. E o Salles e eu
baixávamos a cabecinha, num espírito de obediência de clérigos e religiosos
exemplares, saíamos da sala de estar, de mãos postas, e íamos desparamentar-nos
a uma sacristia imaginária.
Celebradas algumas virtudes e
excentricidades de António Salles, falemos agora um pouco de um defeito que cai
muito mal num professor universitário, defeito que se pode resumir neste
adágio, tantas vezes repetido no mundo académico americano: publish or perish (publica ou perece).
Esse defeito assentou como uma luva ao António Salles. Ele era alérgico ao calamus, de que fala Santo Agostinho,
quando diz que circulus et calamus
fecerunt me (a tertúlia e a pena fizeram de mim aquilo que sou). O António
Salles, como todos os seus pares, só podia usufruir de contrato vitalício na
Universidade de Wisconsin, se fizesse o doutoramento. Mas para fazer o
doutoramento tinha de escrever a respectiva tese e vê-la aprovada pela
respectiva universidade, a Universidade de Estrasburgo, onde fora Leitor de
Português e fizera cursos de pós-graduação, ou por outra universidade que para
isso se prestasse e que para tal estivesse oficialmente credenciada. Mas como o
tempo de tolerância da Universidade de Wisconsin passou e o Salles não fez a
tese de doutoramento, teve de procurar outra universidade que o contratasse
para professor. Caiu-lhe em sorte a recém-fundada Universidade de Brasília,
para onde foi em 1969, como já se referiu, ensinar Filologia Românica e
Linguística, com a competência e o brilhantismo com que tinha ensinado na
Universidade de Wisconsin.
Teria a Universidade de Brasília, a
respeito do contrato vitalício, as mesmas exigências que tinha a Universidade
de Wisconsin e as outras universidades americanas, em geral? Confesso que não
sei. Mas posso testemunhar que em 1976, por ocasião do congresso anual da
Associação Brasileira para Progresso das Ciências, organizado na Universidade
de Brasília, encontrando-me uma noite numa festa dada por António Salles, no
seu apartamento de Brasília, ele ainda não tinha feito o seu doutoramento. Em
visto disso, um dos vários professores universitários presentes, Celso Cunha,
ciente, por experiência própria, dos vastos conhecimentos e das habilitações
académicas e dos dotes docentes acima do normal de António Salles e do
prestígio de que gozava entre os seus colegas e os seus alunos, interrompe
abruptamente a missa de requiem com
que o Salles e eu, devidamente paramentados, estávamos a entreter os
convidados, e pergunta ao Salles, sem qualquer preâmbulo, em que estado se
encontra a sua tese de doutoramento.
Começava o Salles a fugir com o rabo à
seringa, aduzindo as mesmas desculpas descabeladas que eu lhe ouvi aduzir
várias vezes em casa dos Senas, em Madison, Wisconsin, quando Celso Cunha se
volta para um colega da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo
Horizonte, e lhe pergunta se pode organizar uma banca dentro de um mês para o
Salles ir lá defender a tese de doutoramento. O dito professor, cujo nome não
recordo, responde que, infelizmente, tendo sido recentemente feita chefe do
Departamento de Português uma senhora não sei quê, muito grilada, não era
possível fazer esse jeitinho a Celso Cunha e ao Salles.
Desistiu da empresa o mestre e decano dos
gramáticos brasileiros do seu tempo? De maneira nenhuma. Pediu ao Salles que
lhe emprestasse o telefone e telefonou naquele mesmo momento a um colega seu
(de Celso Cunha) que, por favor, no espaço de um mês, organizasse uma banca na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde Celso Cunha era professor
catedrático, que o António Salles ia lá defender a sua tese de doutoramento
sobre a A negação e sua expressão sintática em Villa dos Confins, de Mário
Palmério, tema em que António Salles andava a trabalhar desde o tempo de
professor na Universidade de Wisconsin, ou seja desde havia pelo menos dez
anos, tantos quantos durara o cerco de Troia e tantos quantos durara a viagem
de regresso de Ulisses a Ítaca, após a conquista de Troia.
Veio o meu saudoso professor António
Salles a defender a eternamente adiada e bendita tese e a obter da Universidade
de Brasília o contrato vitalício que todos os que com ele tiveram a sorte de
conviver como alunos e como colegas ardentemente desejavam, quem sabe se mais
que ele próprio? A esta pergunta posso responder com a informação que o meu
colega e amigo David Kenneth Jackson, professor catedrático na Yale University,
acaba de me dar: “Tese de doutorado / SALLES FILHO, ANTÔNIO. A negação e sua
expressão sintática em Villa dos Confins, de Mário Palmério. 1976. 203 f. Tese
(livre docência em Língua Portuguesa). Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 1976”. Posso também informar que a tese foi publicada em 1980,
com o título seguinte: A negação em Villa dos Confins [de Mário Palmério]:
sintaxe, semântica, estilística, por Edições Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,
RJ. Outrossim posso informar que o Professor Doutor António Salles Filho um
belo dia abandonou a Universidade de Brasília e se fez monge e passou a viver,
em regime de vida monástica ou cenobítica, no Mosteiro da Ressurreição, da
Ordem Beneditina, em Ponta Grossa, Paraná. E mais posso informar que certo dia
recebi uma carta da Dona Mécia de Sena, datada de 25 de Abril de 1999, com a
cópia em anexo de uma carta que o monge beneditino Antão Salles, OSB [Ordo
Sancti Benedicti], que no século se chamara António Salles Filho, lhe tinha
escrito, à mão, no dia primeiro de Outubro de 1998, na qual carta lhe dizia,
entre outras coisas, o seguinte:
“Por falar em biblioteca e em sua viagem a
Portugal, ficar-lhe-ia muito grato se me fizesse uns favorzinhos:
1.o – Sondar se a Fundação Gulbenkian
poderia nos dar a segunda edição da Patrologia (latina e grega) do Migne. É que
estamos imaginando uma pesquisa que seriam fundamentos patrísticos da
literatura clássica em Portugal. É trabalho, creio, sobre assunto da maior
importância, e, quanto me consta, não foi ainda tratado. Seria uma bênção.
2.o – Sei que o Carlos Alberto (?) Louro
da Fonseca, da Universidade de Coimbra, publicou em dois volumes uma obra
intitulada Introdução ao Latim que andei folheando de uma
pessoa que o trouxe de Portugal. Gostei muito e queria adoptá-lo, pois lecciono
Latim no Mosteiro aqui.”
Sobre estes pedidos do Irmão Antão Salles,
OSB, meu saudoso professor e mestre, diz-me a Dona Mécia o seguinte no primeiro
parágrafo da carta referida acima:
“Aqui vai cópia da carta do Salles. Como
lhe disse [na conversa telefónica], eu escrevi duas vezes já ao Graça Moura
(que agora é director das Bibliotecas na Gulbenkian) que me não respondeu até
hoje. Quanto à Introdução ... também o IPLL se
mantém mudo e quedo. Aquela gente só poupa no que não deve. Oxalá
possa ajudar nesta cruzada. Obrigadíssima. Vai um papelinho com a morada do
Salles, por ele mesmo”.
Uma das primeiras coisas que fiz, logo
que, passadas poucas semanas, cheguei a Portugal, foi dirigir-me à Fundação
Calouste Gulbenkian e, com a cópia da carta do Irmão Antão Salles, OSB, na mão,
fazer as devidas diligências junto das entidades responsáveis por coisas dessa
natureza e rogar-lhes, em nome das humanidades e dos benefícios que poderiam
advir para Portugal se o projecto do meu antigo e competentíssimo professor de
filologia românica e linguística pudesse vir a materializar-se, que se
dignassem fazer a oferta da Patrologia latina e grega de Paul Migne ao digno
monge beneditino. Depois de ter andado de Pilatos para Caifás, numa instituição
– a Fundação Calouste Gulbenkian – a que eu, carinhosa e gratamente, chamava e
continuo a chamar a minha adorada Madrinha, por tanto me ter ajudado
financeiramente, pela vida fora, nos meus estudos e nas minhas pesquisas
literárias, e nos estudos e pesquisas da mais variada natureza de antigos
alunos e colegas meus, por mim recomendados, fui enviado ao director da
livraria. Depois de ler a carta do monge Antão Salles, OSB, e de me ouvir
atentamente enaltecer os seus dotes extraordinários de scholar em grego, latim, filologia clássica e românica e
patrística, perguntou-me, muito cortesmente, se o monge Antão Salles e eu
estávamos loucos; se eu não sabia que a segunda edição da Patrologia Latina de
Migne tinha 226 (duzentos e vinte e seis) volumes e a Patrologia Grega tinha
162 (cento e sessenta e dois) volumes. Claro que sabia, como também sabia da
vocação e da generosidade da Fundação Calouste Gulbenkian – comentei eu, com a
maior delicadeza possível, para não irritar os deuses. Mas, infelizmente, foram
palavras vãs, lançadas ao vento.
E assim, apesar da melhor boa vontade
deste mundo e do outro, por parte da Dona Mécia de Sena e do abaixo-assinado,
ficou por satisfazer esse piedoso e sábio desejo do meu saudoso professor,
chamado António Salles Filho no século e Dom Antão Salles, OSB, em religião.
António Cirurgião
Bendita memória.
ResponderEliminarNacib na Academia...
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ResponderEliminarBom dia! Um grande obrigada por este blog!
ResponderEliminarNa revista "Caravelle" n°5, 1963(pagina 7, lemos:
"Conferência pronunciada em maio de 1963 no Institut d'Études Hispaniques, Hispano-Américaines et Luso-Brésiliennes de l'Université de Toulouse, de cuja transcrição se encarregou o Prof. Antonio Salles Filho. A ele vivos agradecimentos."
Fazendo uma pesquisa sobre os laços entre as academias de Toulouse e o Brasil pergunto-me: Trata-se aqui do mesmo professor que nos é apresentado neste blog? Quais seriam as razões da presença de Antonio Salles por Toulouse en 1963?
Eu agradeceria imensamente qualquer pista pra encontrar resposta...
Cordialmente
Graciêne VERNAY (graciene.vernay@etu.univ-tlse2.fr)