quinta-feira, 20 de maio de 2021

Cristo com carabina ao ombro.

 







Cristo com carabina ao ombro, por Ryszard Kapuściński

 

Mário Beja Santos

 

Reconhecido por vozes autorizadas como um dos grandes mestres do jornalismo moderno, repórter empolgante e dotado de um poder descritivo fractal que agarra o leitor do princípio ao fim, em Cristo com Carabina ao Ombro, Livros do Brasil, 2021, de Ryszard Kapuściński pode ser agora apreciado de um trabalho que teve a sua primeira edição polaca em 1975 e que nos leva a três cenários distintos, marcantes na época e que desgraçadamente continuam atuais: o conflito israelo-palestiniano, as ditaduras da América Latina e a luta de libertação em Moçambique.

O repórter viaja acompanhado por três feddayin (combatentes da liberdade), muitos jovens, trajam fardas de cotim e empunham metralhadoras, chegam a Rashidyia, esta cheira a laranjas e a sangue. “Um dos explosivos atingiu um camião que transportava laranjas; assim, líquidos dourados e aromáticos jorram pela rua principal. Perto, ao pé de um casebre, está sentado um velho árabe que parece petrificado no seu silêncio. Daquilo que ainda ontem era a sua casa, não restou mais do que o chão e um pedaço do muro. Da família não sobreviveu ninguém”. Rashidyia é um dos campos palestinos no Líbano. Percorrem-se ruínas e o jornalista interroga a luta destes palestinos, é um conflito com muita história, arredondando números, em 1930, escreve o autor, o governo britânico conclui que a Palestina era demasiado pequena e que, consequentemente, não podia acolher mais judeus porque não havia terras livres. Mas estamos a falar de 200 mil judeus, e nos anos 1970 eram quase 3 milhões. Há naturalmente um problema de espaço e as vitórias militares sobre os Árabes geraram a ambição de um grande império. A opinião pública mundial desconhece que a imigração judaica para a Palestina não se realizou só à custa dos Palestinos, mas também à custa dos judeus da Palestina. “Os judeus locais lembravam-se de que outrora a Palestina era uma terra próspera onde conviviam Árabes, judeus e cristãos e onde não passava pela cabeça de ninguém disparar nas costas do vizinho. Outrora, cada comunidade guardava os seus templos e havia espaço para todos os deuses. Um milhão de palestinos teve de abandonar a sua Pátria”. E descrevem-se os campos de refugiados e a vontade indómita do retorno à sua terra. Viaja-se pela História de um conflito, lembra-se o exército clandestino judaico, o Haganah e a sua organização terrorista Palmach e uma outra mais terrorista, a Irgun, geraram matanças na população árabe e não pouparam os britânicos, era necessário expulsar os Palestinos. E vem uma observação que tem premente atualidade: “Se o mundo não interferir, nenhuma das partes vai terminar esta guerra. Há demasiado ódio, demasiada morte, demasiada desgraça, e a memória está demasiado viva. Trata-se de um pequeno pedaço de terra, difícil de encontrar no mapa-mundo”. E viaja-se pela complexidade das alianças entre árabes, a Jordânia fora cruel com os Palestinos, sonharam incluir a Palestina dentro do seu reino. A reportagem continua por todo este calvário, fala-se da Batalha dos Montes Golã e questiona-se porque é que os árabes perderam a guerra em 1967, procura-se uma explicação: “Em Israel todos participam na guerra, nos países árabes é só o Exército. Em Israel, quando começar a guerra, todos vão para a frente de combate e a guerra civil para. Na Síria, ao contrário, muitos ficaram a saber da guerra de 1967 só quando acabou, ainda que a Síria tenha perdido uma zona tão estrategicamente importante como os Montes Golã. A Síria estava a perder os Montes Golã, e no mesmo dia, à mesma hora, a vinte quilómetros de distância, os cafés em Damasco estavam cheios de clientes, havendo gente a deambular, apenas preocupada em encontrar uma mesa livre”. Um repórter que nos faz compreender a germinação do imperialismo israelita que ninguém parece estar em condições de travar.

Já estamos na América Latina e o repórter justifica o título da sua obra: “Pouco depois da morte de Che Guevara, o pintor revolucionário argentino Carlos Alonso pintou um quadro que imediatamente se tornou famoso em toda a América Latina: a figura de um Cristo de carabina ao ombro. O quadro de Alonso converteu-se desde então num símbolo artístico do guerrilheiro, do homem que combate a violência e a arbitrariedade na sua luta por um mundo diferente, justo e bom para todos os seres humanos”. É uma reportagem que pode ser vista como uma parada de horrores, primeiro na Bolívia, com a sua instabilidade, prisões, execuções, golpes de Estado, os militares a derrubarem-se uns aos outros, uma degenerescência que lembra o fim do Império Romano. Passamos para outra atmosfera ditatorial, a ilha de S. Domingos, dois ditadores e dois monstros onde 90% da população vive na mais profunda miséria e ignorância. Depois El Salvador e a seguir os crimes abomináveis da Guatemala onde os EUA sempre tiveram o descaro de perseguir quem contraria o império bananeiro da United Fruit. Se ainda houvesse dúvidas sobre a abjeta interferência norte-americana nos assuntos internos da América Latina é só estudar o que se passa na Guatemala, ainda recentemente o romancista Vargas Llosa lhe dedicou um pungente romance ficcional Tempos Duros. Uma pequena água-forte do autor: “A Guatemala é um país governado por uma camarilha de coronéis, já que durante a revolução anularam o grau de general. No Exército, há um coronel por trinta soldados. A Embaixadas dos Estados Unidos ocupa o lugar supremo do poder, depois vem o Conselho de Coronéis, e o governo ocupa o terceiro lugar. Qualquer coronel gostava de ser presidente, devido ao prestígio e ao salário alto. O ordenado anual do Presidente da Guatemala é de um milhão e 94 mil dólares, sem contar com outras regalias, mais ou menos oficiais, e um enorme subsídio de representação (no mesmo país, os rendimentos de um camponês rondam entre os 50 e 80 dólares anuais”. E observa o que espera um jovem revolucionário neste canto do mundo: “Uma pessoa jovem, na América Latina, cresce rodeada de um mundo corrupto. É o mundo da política exercida pelo dinheiro e para o dinheiro, um mundo de demagogia desenfreada, um mundo de assassínios e de terror policial, um mundo da plutocracia prolixa e despiedada, de uma burguesia ávida de tudo, de exploradores cínicos, novos ricos depravados e vazios. Um jovem revolucionário rejeita tudo isto, pretende destruir esse mundo, mas antes de o conseguir quer contrapor-lhe um mundo diferente, limpo e honesto, e arrisca a sua própria vida”.

Estamos agora em Dar es Salaam, 1962, o repórter encontra-se com Joaquim Chissano e Eduardo Mondlane, fala-se da independência de Moçambique, das diferentes fações ligadas à libertação, faz-se o historial do início da guerra e das batalhas da FRELIMO. E assim se despede, Moçambique já é independente: “Revi as fotografias de Lourenço Marques. Numa delas, dois inimigos de ontem, um soldado português e um guerrilheiro da FRELIMO, patrulham juntos a cidade. Examino os dois rapazes e vejo que o soldado tem botas e o guerrilheiro também já usa botas. E, de repente, pensei que há no mundo coisas grandes, e que é magnífico que, depois de anos de se andar descalço, chega afinal o dia em que se já se pode calçar sapatos e caminhar pela terra sem medo de deixar rasto”.

De leitura obrigatória.

 

 





5 comentários:

  1. Acredito piamente que seja um livro fascinante de ler. A sua narrativa deve ser fascinante. Vou tentar adquiri-lo.
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    Abraço fraterno
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos

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  2. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  3. Sei que é um atrevimento vir um desconhecido pôr em causa algo escrito por Ryszard Kapuścińsk ou por Mário Beja Santos. Mas na minha opinião escrever que “Os judeus locais lembravam-se de que outrora a Palestina era uma terra próspera onde conviviam Árabes, judeus e cristãos e onde não passava pela cabeça de ninguém disparar nas costas do vizinho. Outrora, cada comunidade guardava os seus templos e havia espaço para todos os deuses", não corresponde à verdade histórica. Nunca o território palestino foi tão próspero como é hoje em dia e nunca aquelas terras tiveram uma coexistência assim tão pacífica como o que está descrito durante um grande período de tempo.
    Atenciosamente.

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