Cristo com carabina ao ombro, por Ryszard Kapuściński
Mário Beja Santos
Reconhecido
por vozes autorizadas como um dos grandes mestres do jornalismo moderno,
repórter empolgante e dotado de um poder descritivo fractal que agarra o leitor
do princípio ao fim, em Cristo com Carabina ao Ombro, Livros do Brasil,
2021, de Ryszard Kapuściński pode ser agora apreciado de um trabalho que teve a
sua primeira edição polaca em 1975 e que nos leva a três cenários distintos,
marcantes na época e que desgraçadamente continuam atuais: o conflito
israelo-palestiniano, as ditaduras da América Latina e a luta de libertação em
Moçambique.
O
repórter viaja acompanhado por três feddayin (combatentes da liberdade),
muitos jovens, trajam fardas de cotim e empunham metralhadoras, chegam a
Rashidyia, esta cheira a laranjas e a sangue. “Um dos explosivos atingiu um
camião que transportava laranjas; assim, líquidos dourados e aromáticos jorram
pela rua principal. Perto, ao pé de um casebre, está sentado um velho árabe que
parece petrificado no seu silêncio. Daquilo que ainda ontem era a sua casa, não
restou mais do que o chão e um pedaço do muro. Da família não sobreviveu
ninguém”. Rashidyia é um dos campos palestinos no Líbano. Percorrem-se ruínas e
o jornalista interroga a luta destes palestinos, é um conflito com muita
história, arredondando números, em 1930, escreve o autor, o governo britânico
conclui que a Palestina era demasiado pequena e que, consequentemente, não
podia acolher mais judeus porque não havia terras livres. Mas estamos a falar
de 200 mil judeus, e nos anos 1970 eram quase 3 milhões. Há naturalmente um
problema de espaço e as vitórias militares sobre os Árabes geraram a ambição de
um grande império. A opinião pública mundial desconhece que a imigração judaica
para a Palestina não se realizou só à custa dos Palestinos, mas também à custa dos
judeus da Palestina. “Os judeus locais lembravam-se de que outrora a Palestina
era uma terra próspera onde conviviam Árabes, judeus e cristãos e onde não
passava pela cabeça de ninguém disparar nas costas do vizinho. Outrora, cada
comunidade guardava os seus templos e havia espaço para todos os deuses. Um
milhão de palestinos teve de abandonar a sua Pátria”. E descrevem-se os campos
de refugiados e a vontade indómita do retorno à sua terra. Viaja-se pela
História de um conflito, lembra-se o exército clandestino judaico, o Haganah e
a sua organização terrorista Palmach e uma outra mais terrorista, a Irgun,
geraram matanças na população árabe e não pouparam os britânicos, era
necessário expulsar os Palestinos. E vem uma observação que tem premente
atualidade: “Se o mundo não interferir, nenhuma das partes vai terminar esta
guerra. Há demasiado ódio, demasiada morte, demasiada desgraça, e a memória
está demasiado viva. Trata-se de um pequeno pedaço de terra, difícil de
encontrar no mapa-mundo”. E viaja-se pela complexidade das alianças entre
árabes, a Jordânia fora cruel com os Palestinos, sonharam incluir a Palestina
dentro do seu reino. A reportagem continua por todo este calvário, fala-se da
Batalha dos Montes Golã e questiona-se porque é que os árabes perderam a guerra
em 1967, procura-se uma explicação: “Em Israel todos participam na guerra, nos
países árabes é só o Exército. Em Israel, quando começar a guerra, todos vão
para a frente de combate e a guerra civil para. Na Síria, ao contrário, muitos
ficaram a saber da guerra de 1967 só quando acabou, ainda que a Síria tenha
perdido uma zona tão estrategicamente importante como os Montes Golã. A Síria
estava a perder os Montes Golã, e no mesmo dia, à mesma hora, a vinte
quilómetros de distância, os cafés em Damasco estavam cheios de clientes,
havendo gente a deambular, apenas preocupada em encontrar uma mesa livre”. Um
repórter que nos faz compreender a germinação do imperialismo israelita que
ninguém parece estar em condições de travar.
Já
estamos na América Latina e o repórter justifica o título da sua obra: “Pouco
depois da morte de Che Guevara, o pintor revolucionário argentino Carlos Alonso
pintou um quadro que imediatamente se tornou famoso em toda a América Latina: a
figura de um Cristo de carabina ao ombro. O quadro de Alonso converteu-se desde
então num símbolo artístico do guerrilheiro, do homem que combate a violência e
a arbitrariedade na sua luta por um mundo diferente, justo e bom para todos os
seres humanos”. É uma reportagem que pode ser vista como uma parada de
horrores, primeiro na Bolívia, com a sua instabilidade, prisões, execuções,
golpes de Estado, os militares a derrubarem-se uns aos outros, uma
degenerescência que lembra o fim do Império Romano. Passamos para outra atmosfera
ditatorial, a ilha de S. Domingos, dois ditadores e dois monstros onde 90% da
população vive na mais profunda miséria e ignorância. Depois El Salvador e a
seguir os crimes abomináveis da Guatemala onde os EUA sempre tiveram o descaro
de perseguir quem contraria o império bananeiro da United Fruit. Se ainda
houvesse dúvidas sobre a abjeta interferência norte-americana nos assuntos
internos da América Latina é só estudar o que se passa na Guatemala, ainda
recentemente o romancista Vargas Llosa lhe dedicou um pungente romance
ficcional Tempos Duros. Uma pequena água-forte do autor: “A Guatemala é
um país governado por uma camarilha de coronéis, já que durante a revolução
anularam o grau de general. No Exército, há um coronel por trinta soldados. A
Embaixadas dos Estados Unidos ocupa o lugar supremo do poder, depois vem o
Conselho de Coronéis, e o governo ocupa o terceiro lugar. Qualquer coronel
gostava de ser presidente, devido ao prestígio e ao salário alto. O ordenado
anual do Presidente da Guatemala é de um milhão e 94 mil dólares, sem contar
com outras regalias, mais ou menos oficiais, e um enorme subsídio de
representação (no mesmo país, os rendimentos de um camponês rondam entre os 50
e 80 dólares anuais”. E observa o que espera um jovem revolucionário neste
canto do mundo: “Uma pessoa jovem, na América Latina, cresce rodeada de um
mundo corrupto. É o mundo da política exercida pelo dinheiro e para o dinheiro,
um mundo de demagogia desenfreada, um mundo de assassínios e de terror
policial, um mundo da plutocracia prolixa e despiedada, de uma burguesia ávida
de tudo, de exploradores cínicos, novos ricos depravados e vazios. Um jovem
revolucionário rejeita tudo isto, pretende destruir esse mundo, mas antes de o
conseguir quer contrapor-lhe um mundo diferente, limpo e honesto, e arrisca a
sua própria vida”.
Estamos
agora em Dar es Salaam, 1962, o repórter encontra-se com Joaquim Chissano e
Eduardo Mondlane, fala-se da independência de Moçambique, das diferentes fações
ligadas à libertação, faz-se o historial do início da guerra e das batalhas da
FRELIMO. E assim se despede, Moçambique já é independente: “Revi as fotografias
de Lourenço Marques. Numa delas, dois inimigos de ontem, um soldado português e
um guerrilheiro da FRELIMO, patrulham juntos a cidade. Examino os dois rapazes
e vejo que o soldado tem botas e o guerrilheiro também já usa botas. E, de
repente, pensei que há no mundo coisas grandes, e que é magnífico que, depois
de anos de se andar descalço, chega afinal o dia em que se já se pode calçar sapatos
e caminhar pela terra sem medo de deixar rasto”.
De
leitura obrigatória.
Acredito piamente que seja um livro fascinante de ler. A sua narrativa deve ser fascinante. Vou tentar adquiri-lo.
ResponderEliminar.
Abraço fraterno
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
ResponderEliminarSei que é um atrevimento vir um desconhecido pôr em causa algo escrito por Ryszard Kapuścińsk ou por Mário Beja Santos. Mas na minha opinião escrever que “Os judeus locais lembravam-se de que outrora a Palestina era uma terra próspera onde conviviam Árabes, judeus e cristãos e onde não passava pela cabeça de ninguém disparar nas costas do vizinho. Outrora, cada comunidade guardava os seus templos e havia espaço para todos os deuses", não corresponde à verdade histórica. Nunca o território palestino foi tão próspero como é hoje em dia e nunca aquelas terras tiveram uma coexistência assim tão pacífica como o que está descrito durante um grande período de tempo.
ResponderEliminarAtenciosamente.
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