Ermida
de Nossa Senhora da Conceição:
O
enigma do mausoléu de D. João III
Aviso prévio ao leitor:
não embarco de ânimo leve nessas descrições de lugares e sítios mágicos,
cabalísticos, mantenho-me indiferente ao tesouro dos Templários e ao esoterismo
que tantos propalam, atribuindo a Tomar virtudes simbólicas ímpares. Enfim,
está tudo por demonstrar, embora a atmosfera propicie as visitas dos
cultivadores de enigmas. Mas estou absolutamente seguro de que há templos que
permitem interpretações que a História às vezes ajuda a corroborar. E com esta
mania das leituras de coisas antigas, vou-vos falar do enigma do mausoléu de D.
João III, que está para dar e durar. Tudo começou quando li uma revista
infelizmente há muito desaparecida.
O número 1 do Boletim Cultural e Informativo
da Câmara Municipal de Tomar, março de 1981, apareceu cheio de vida, parecia
destinado a mexer no orgulho tomarense. O seu conteúdo fala por si: um
enternecedor trabalho sobre o tipismo e as tradições tomarenses; José Inácio da
Costa Rosa, autor da capa, escrevia sobre os oito claustros do Convento de
Cristo; cozinha, doçaria e vinhos de Toma, toponímia das ruas de Tomar, eram
outros aliciantes de uma publicação que parecia fadada a uma longa vida e
constituir uma ferramenta cultural topo de gama.
Rafael Moreira entendeu
por bem debruçar-se sobre um dos mistérios mais cuidadosamente guardados da
arquitetura tomarense: qual seria o destino a dar à Ermida de Nossa Senhora da
Conceição, grande demais para capela, pequena demais para igreja?
Primeiro, a sua
construção. A obra fez-se durante o priorado de Fr. António de Lisboa,
provavelmente em 1550 ou 1551, sofreu várias paragens, concluiu-se 20 anos
depois, quando se assentou a cobertura, mais no século seguinte ainda havia
acabamentos para resolver. Enfim, uma construção com altos e baixos, denota
desinteresse e abandono da sua finalidade inicial.
Segundo, faz todo o
sentido olhar para este edifício como exemplo de arte funerária monumental e
supor o seu destino. D. João III jaz na capela-mor dos Mosteiros dos Jerónimos,
mas tudo quanto se tem publicado sobre as preocupações do monarca para jazigo
da sua família fazem pensar que D. João III não o destinava para seu sepulcro
nem para sua mulher, D.ª Catarina de Áustria. Como observa o autor, quando foi
entendimento em sepultá-lo em Belém, foi necessário improvisar um lugar “aos
pés da sepultura de el-Rei D. Manuel seu pai”. O autor enfatiza que D. João III
não planeara vir repousar ao lado de seus pais e seus irmãos na capela-mor de
Belém, a sua decisão induz-se pela negativa: excluir-se do panteão de Belém
significava ter formado o desígnio no sentido de erigir outro para si, tudo
indicando que foi precisamente com esse fim que se fundou a capela de Nossa
Senhora da Conceição. E abona com vários testemunhos, onde não faltam Francisco
de Holanda e Fernão Duarte de Montarroio.
A ligação de D. João III
com o Convento de Tomar era solidíssima: concedeu-lhe sucessivos privilégios,
ele que era grão-mestre perpétuo da Ordem de Cristo, privilégios que suscitaram
remoques se não ódios de outras ordens religiosas (dos Alcobacenses, por
exemplo, a quem o monarca retirou chorudas rendas. D. João III concedeu a Tomar
o título de “Vila notável”. E o autor questiona porquê um panteão real na
órbita do Convento de Cristo? E responde dizendo que nenhuma das suas
dependências tinha caráter apropriado. Ora o local escolhido para a Ermida da
Nossa Senhora da Conceição é ao mesmo tempo uma pequena acrópole e a traça é a
de um típico mausoléu à antiga em forma de templo destinado ao enterramento e
culto do defunto.
Olhando para o edifício,
tudo faz para nos convencer, alegando que temos ali os elementos mais
significativos da sua intencionalidade. A complicada organização volumétrica
espelha a diferenciação entre a zona religiosa e a zona funerária.
“Interiormente, o traço que define a estrutura é o extraordinário relevo dado à
zona do cruzeiro como foco de atração visual. Precedido pela colunata coríntia
que funciona como um vestíbulo, a ele conduz o movimento dos entablamentos e
abóbadas, nele se concentram os elementos decorativos (na cúpula, sobre a qual
se erguem por fora bolas de fogo e o ovo primordial), converge e angulação das
janelas do transepto e desembocam as linhas de comunicação dos recessos
internos; um ponto exato à entrada do cruzeiro é, de facto, o centro da
construção perspética da igreja. Em confronto com ele, a capela-mor torna-se
insignificante, e quase passa desapercebida. Os braços do transepto criam
extensões laterais de valor equivalente a esse espaço central. Nos arcos-cegos
que se abrem cada topo – hoje vazios à exceção de um pequeno altar de talha –
deveriam talvez ter sido abertas as sepulturas de D. João III e D.ª Catarina,
nunca construídas”.
Obviamente que todo este
quadro de suposições implica o autor a questionar por que motivo D. João III
não ficou aí sepultado, deixando a sua capela panteão vazia. A resposta é
lapidar, é a própria História que o explica. “Passado esse fugaz momento de
apogeu do poderia imperial, soprando já os ventos da viragem tridentina, a
abertura às ideias humanistas cede lugar a um classicismo formal. O falecimento
súbito do monarca em 1557, sem lhe dar tempo sequer de fazer testamento
irregular o problema sucessório, deixou campo livre aos influentes grupos de
pressão que atuavam na corte e no alto clero, conduzindo o país a alinhar nas
novas correntes internacionalistas e centralizantes da Contrarreforma. Apesar
do apoio de D.ª Catarina, a Ordem de Cristo sofre violentos ataques e entra
rapidamente em recessão: o Cardeal-Infante D. Henrique tentará mesmo
extingui-la. Desta nova conjuntura que se afirma durante a regência de D.
Henrique (1562-68) é expressão emblemática o panteão real dos Jerónimos. Foi
ele, sem dúvida, quem decidiu a sua construção, com o consequente abandono das
obras de Tomar, só retomadas muitos anos mais tarde”.
E o artigo termina com
um comentário bem curioso, da autoria de Frei Bernardo da Costa: “Os magníficos
conventos e casas reais de Portugal, todos se enobrecem com os depósitos das
reais cinzas dos nossos monarcas. Assim S. Cruz de Coimbra, Alcobaça, Batalha,
Belém, S. Vicente de Fora. O convento de Tomar é privado desta honra”. Ao que o
autor contrapõe: “Mal saberia ele por pouco, se não estou em erro, essa
pretensão tinha estado para se realizar”.
Seja como for, a Ermida
é obra sem igual e não exagera quem já passou a escrito que é um dos mais belos interiores que existem no mundo. Digo-vos eu, plenamente convicto.
Mário Beja Santos
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