O Capitão Nemo e Eu,
Crónica das horas aparentes, por Álvaro Guerra, Editorial
Estampa, 1973, representa a despedida do escritor das temáticas da guerra da
Guiné, território onde combateu e foi ferido. É uma obra injustamente
esquecida, muito provavelmente porque ainda está marcada pela corrente do Noveau
Roman, que tanto seduziu o escritor na primeira fase da sua carreira, hoje
atrai mais os estudiosos, desorienta profundamente o leigo que nela mergulha.
Álvaro Guerra despede-se e sai pela porta grande, vamos encontrar neste seu
romance páginas admiráveis, logo a abertura:
“Que perdi a memória – dizem. E logo
dão o nome a esta imunidade que pretendem retirar-me. Dizem isso com precaução
e manha como se quisessem disfarçar o despeito. Defendo-me. Só agora, na metade
do tempo em que a droga do sono se esgota e sei que é meu o que me circula nas
veias, só agora me visito: primeiro, o estojo duro e branco que esconde o
grande golpe na coxa direita, as ligaduras que encontro ao passar a mão pela
testa. Também procuro os resíduos invisíveis das anestesias e só me revelo um
estranho gosto na boca. É uma visita tosca e breve, que se cansa de mim ou me
recusa para repousar nas quatro paredes brancas e no teto branco e nos brancos
panos da cama, simetria nem ao de leve desfeita pelos retângulos da porta e da
janela velada por cortinas de cassa tão leves que, constantemente ondulantes,
me repetem existência do ar em movimento, ar sossegado, filtrado, prisioneiro e
puro, e não com partículas de sal lançadas em bátegas por um vento furioso
varrendo as duríssimas arestas das rochas...”.
É o ferido que retoma consciência em
ambiente hospitalar, e acrescenta: “Devo sujeitar-me aos horários dos remédios,
às injeções, a ser colocado sob as placas de vidro dos aparelhos de radiografia
e ao emaranhado de fios presos à cabeça, através dos quais é possível ler o meu
cérebro…”. E vemo-lo na Guiné, fala na língua Fula, há por ali crianças
acocoradas à nossa frente, ventres inchados entre pernas cruzadas, isto
passava-se sobre o cheiro adocicado da terra da Guiné, e tudo se articula com
outras histórias, num cosmopolitismo parisiense, que Álvaro Guerra conheceu,
pois ali estudou e trabalhou antes de vir professar o jornalismo em Lisboa, no
jornal República. Há reminiscências da infância, um pouco à semelhança
do que o escritor praticou em obras anteriores, um carrossel de imagens que
podem meter cenas taurinas, vida agrícola, a imensidão da lezíria. A memória
anda à solta naquele hospital onde o ferido se trata, e o autor lembra um
capelão militar que lhes procura incutir denodo e lançar para o bom combate:
“Irmãos, longe dos vossos lares, das vossas famílias, das vossas noivas, de
todos os entes-queridos, tendes por consolo e por razão o amor da Pátria e a fé
em Cristo que aqui vos trouxeram para defender a terra dos vossos antepassados
que vieram oferecer ao gentio selvagem, com suor e sangue, a verdade, a justiça
e a fé em Deus Nosso Senhor. Vós sois os soldados de Cristo que combatem os
infiéis, os ímpios. Vencereis, tal como São Jorge venceu o dragão. Que Deus
seja convosco, meus bem-amados irmãos”. Depois, suportando mal os 47ºC à
sombra, inundado num suor incrivelmente espesso, almoçava carne de vaca com
molho picante, na messe. Aplicado, ruidoso, tasquinhando o bife, sem se
distrair do apetite, lutava com a mão sapuda contra o permanente ataque dos
mosquitos”.
O doente já se passeia de muleta, no
jardim, à sombra de castanheiros e chorões, volta ao Forreá, a Contabane, de
novo conversa na língua Fula, o espírito anda num vaivém, as feridas se hão de
curar, há talvez feridas que nunca passem, e de novo o passado entremeado com
tudo o que se passou naquele Sul da Guiné que levou Álvaro Guerra ao hospital,
por ali ciranda um anjo branco que serve de ponte entre o passado e aquele
encaracolado presente.
Estamos a caminho do parágrafo mais
admirável de toda a literatura da guerra da Guiné. O alferes recorda a viagem
de avião, tudo começou com uma manhã fustigada por vento gelado. “De tudo o que
espreitei lá de cima, nas longas horas desse voo, se devem referir três pontos
cruciais: a linha de espuma branca que separava o deserto do mar, uma ilha cor
de ferrugem, sem vegetação nem água, onde o avião pousou e levantou; e o
pântano onde o verde escuro do mato alternava com o quadriculado dos arrozais e
os minúsculos círculos das moranças. Foi no meio desse pântano que o avião
desceu e me deixou. Durante dois anos, por mais de uma vez, amaldiçoei os
fidelíssimos enviados do infante que se aventuraram até à foz do Geba.
Por lá chafurdei na lama das lalas,
debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase
invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e a meio como um danado aquela terra
que me injetou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor
é excessivo, nem a presença da morte o pode aniquilar”.
Aquele hospital ele sabe que a tudo o
que se passou foi arrancado, entre a vida e a morte e confessa a alguém: “Ao
princípio tinha medo de adormecer, porque chegavam os fantasmas, as explosões,
os tiros, o sangue, o sorriso de Safi, uma aldeia a arder e os gritos das
pessoas. Por fim, consegui olhar para a cicatriz, sem me lembrar de muitos
pormenores. Pois é. Tudo passa. Por fim, pensei que tinha perdido
definitivamente qualquer coisa que só agora julgo saber o que é”.
E segue-se a viagem a bordo do
Nautilus, com o capitão Nemo. Nem tudo ficou para trás esquecido, como o autor
adiantará: “Desmontar uma pistola metralhadora foi a tarefa mais complexa e
inquietante que até hoje executei, talvez apenas superada pelo trabalho de a
montar com correção. Experimentava depois uma falsa sensação de consciência em
paz, ao verificar que a culatra oleada deslizava impecavelmente. Até ao último
momento nunca me convenci que teria de puxar o gatilho, visando um homem,
porque nunca o instinto foi tão ferozmente como quando tudo isso aconteceu, ao
cair sobre mim uma chuva de balas. Se nenhuma delas me matou, alguma coisa
ficou liquidada para sempre, e nunca mais um dever cumprido trouxe paz à minha
consciência”. E o Nautilus prossegue viagem, mas o poder da memória é mais
forte, e de novo se regressa à Guiné por uma outra viagem que até pode ser de
caravela, e onde se guardam aspetos que maravilharam os primeiros descobridores
ou aventureiros, como o voo fulvo do faisão, os grus emigrantes sobre as
bolanhas, a gesticulação do macaco cão, e cruza-se com Mariama, à cabeça a
roupa de lavar – Tanaala? No pindá? E como se estivesse profundamente
angustiado, como criatura de Shakespeare, Álvaro Guerra interroga-se: “Se não é
esta a minha terra, para que me fizeram aqui vir? Aqui se fecha o livro da
memória guineense, ou quase, porque somos forçados a interpelar o que ali se
passou, como ele o faz e descaradamente naquele ano de 1973 em que pontificava
a censura:
“Perguntando nós que guerra era aquela, sempre ouvimos como resposta grandes palavras ocas e, muitos anos depois de termos escapado do pântano, quando tínhamos começado, há muito, a comer refeições quentes a horas certas, a fazer filhos legítimos, a pagar prestações, a passear de automóvel aos domingos, a ir ao Jardim Zoológico, ao cinema, a casa uns dos outros, muitos anos depois, dizia, a guerra ainda lá estava, feroz e persistente, perante o nosso absurdo esquecimento”. E tanto quanto me é dado saber, para meu pesar, este escritor vila-franquense a quem a sua terra natal lhe dedicou uma bela escultura perto da nova biblioteca à beira-rio, como se contrariasse as recordações dessa guerra feroz e persistente, não voltou à Guiné, pelo menos em literatura, ficou aquele parágrafo que é ímpar e tudo leva a crer que jamais será ultrapassado.
Mário Beja Santos
Não conheço a sua obra. Mas, confesso, é um livro que eu gostava de ler.
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Cumprimentos poéticos
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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